Cine Holliúdy
Cine Holliúdy (2012), de Halder Gomes
Memórias do Subdesenvolvimento
Alguns tentam ser cinema popular (leia-se Família Vende Tudo). Outros genuinamente o são. Este é o caso de Cine Holliúdy, um desavergonhado e cômico escancaramento da precariedade em se fazer cinema no Brasil.
É fácil enxergar a tradição da chanchada na qual o filme, voluntariamente ou não, se insere – esse jeito de fazer comédia que parece imortal, vide o que até a novela Guerra dos Sexos tem tentando executar. Além do quê cômico, Cine Holliúdy fala também do próprio cinema. É este seu aspecto mais interessante.
Num momento de ultrarrealismo cultivado por ágeis avanços tecnológicos, sempre há o choque, para um espectador desavisado, com a precariedade. Já foi assim com Na Carne e na Alma, derradeira obra de Alberto Salvá, repleta de coragem e carente de dinheiro. Invariavelmente será assim durante a trajetória de Cine Holliúdy por festivais e, posteriormente, circuito comercial.
Mas por trás da falta de recursos e da engenharia em se fazer um filme de época, ambientado nos anos 1970 no sertão cearense, existe um potência, um discurso e momentos eficazes. Halder Gomes, que recentemente produziu longas bem ruins como As Mães de Chico Xavier e Bezerra de Menezes, mostra um domínio do tempo e do texto cômico. O dialeto “cearencês” e suas expressões bastante atípicas para quem não vem do Ceará é um convite ao riso.
Há também uma precisão chanchadeira em caracterizar a cidade/bairro e seus tipos (a gostosa, o galã, o gay, a fofoqueira, o riquinho etc), assim como uma incorporação interessante do cinema de gênero, em especial os filmes de kung fu, na textura do filme.
Esses aspectos, porém, mesmo que suficientes para se assistir a um filme, encerram-se numa conversa de canto, numa recomendação “vá vê-lo porque é muito divertido”. O que interessa mesmo é que Cine Holliúdy tem um quê de alegoria sobre o cineasta brasileiro, esse misto de artista e bobo da corte, criador e animador de torcida: aquele que tem um discurso para reconstruir a realidade com a arte, mas que tem de se desdobrar para produzir e, quando feito o filme, rebolar para que seja visto, notado.
Pois é isso que representa Francisgleydisson na sua luta em tentar manter seu cineminha enquanto a televisão se alastra até por locais remotos. A película que se arrebenta em Cine Holliúdy e o personagem que tem de reinventar a história do filme dentro do filme pode ser lido como um edital que não se concretiza, por que não? É um reflexo do contexto brasileiro, misto de aspirações industriais e realidade artesanal, ação entre amigos.
Só que o filme não é romântico. Não há catarse, solução mirabolante e irreal. Não é um filme para se fugir da realidade, apenas para tomar fôlego e voltar para a briga. Com clareza, percebe que viver das brechas é algo ontológico do ofício de cineasta aqui – o subdesenvolvimento é um estado, não um estágio, provocaria Paulo Emillio Salles Gomes há quatro décadas.
Talvez sem saber, Gomes realizou o espelho do nipo-iraniano Cut, um dos melhores filmes da Mostra no ano passado. Misto de filme de mafioso com declaração de amor ao cinema, Shuji, o protagonista, literalmente apanha para viver, com o corpo, sua paixão. Seu alimento não é a comida, mas os clássicos – Welles, Ford, Ozu, Mizoguchi.
Francisgleydisson somos nós.
Heitor Augusto
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