Ano VII

Moonrise Kingdom

quarta-feira out 17, 2012

 

Moonrise Kingdom (2012), de Wes Anderson

Quando lidamos com um cineasta cujo modus operandi já está tão cristalizado quanto o de Wes Anderson – em seu sétimo longa-metragem –, ensaiar a distinção de seu último trabalho em relação à sua filmografia parece, em si, carregar inerentemente consigo um juízo valorativo. Trocando em miúdos: se salientarmos o que, no caso, Moonrise Kingdom  traz de novo às idiossincrasias de tão orgulhosamente idiossincrático cineasta, faríamos, aparentemente, uma adesão irrestrita ao seu mundo – o que, convenhamos, de outra maneira, poderíamos chamar de adesão a seus artifícios e atalhos, enfim.

Tais instâncias parecem misturar-se na cabeça do espectador ao acompanharmos essa aventura de inegáveis simpatia e honestidade, na qual a imaginação beneficia-se suavemente das armadilhas próprias do faz-de-conta, sem jamais estragar a força da fábula. Como sempre, em Anderson  temos personagens em fuga literal e figurativa: luminosos frutos de uma frágil árvore envergada sobre o abismo.

Sam (Jared Gilman) e Suzy (Kara Hayward) são pré-adolescentes de 12 anos, já combalidos com suas próprias existências. Juntos, tentam escapar desta ilha na costa da Nova Inglaterra: zona aparentemente tão abstrata, suspensa e infindável quanto a mansão dos anjos burgueses de Buñuel ou a floresta dos canibais de uma das mais insólitas obras-primas de Raul Ruiz, O Território.

No entanto, eis que entra um elemento pouco explorado na carreira do cineasta, pois aos poucos nota-se uma preocupação em contextualizar esse conto em um local e tempo bastante precisos: Estados Unidos, 1965. E é nesta ocasião que podemos encontrar outra singularidade do filme e de seu autor: se a trilha-sonora (me referindo às canções populares, particularmente) sempre fora fundamental em seu cinema, agora ela também o é; no entanto,  de uma maneira mais enviesada, partindo diegeticamente, nos lembrando de que, mesmo em um momento de convulsão cultural como aquela década, a maioria das pessoas, aqui, americanos habitantes de cidades pequenas – mínimas, na verdade, tornando as maquetes de Anderson mais do que apropriadas –, não gastavam as agulhas de suas vitrolas com Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited, mas escutando, pelo rádio, músicas de tempos já longínquos, mas não de todo suplantados.

É o caso do triste xerife interpretado por Bruce Willis, que sai (junto à dezena de moradores e visitantes que constituem a população do local) em busca pelo casal de enamorados. Das caixas de sua viatura, Hank Williams impera absoluto e é aí que um aceno de Anderson ao Peter Bogdanovich de A Última Sessão de Cinema parece inegável. Como naquela produção do início dos anos 1970, somos expostos aos perigos surdos da vida em uma pequena cidade, às incertezas da juventude e ao desencanto da vida adulta.

Igualmente desestabilizadas ficam as rotinas enfadonhas dos pais de Suzy, interpretados por Frances McDormand e Bill Murray, e do escoteiro-chefe (Edward Norton), responsável pelo acampamento do qual Sam fugira. Por melhores que sejam estes atores e suas caracterizações, contudo, é evidente que o coração do filme é o casal  e é devido à cumplicidade da dupla que ele permanece na memória.

À parte  um cortante diálogo entre McDormand e Murray, deitados em seu quarto, em camas separadas, cuja distância afetiva entre ambos será salientada pela obsessão simétrica das composições de Anderson,  quanto mais personagens passam a habitar o enredo, e seu ritmo gradativamente aproxima-se mais àquele de alguma matinê, mais atrapalhada e menos eficiente torna-se sua condução (o mesmo pode ser dito de sua stop motion, O Fantástico Sr. Raposo).

Fica-se nítida a impressão de que seu ápice (deste filme, destes garotos) já fora atingido na antológica sequência na qual o jovem casal, após divertir-se no mar, troca seu primeiro beijo, num primeiro momento da efetivação de sua suposta maturidade. Esse é o ponto chave da história, aquele cujo quadro Sam irá tentar eternizar quando, mais tarde, na casa de sua amante – uma vez que, como a mãe da garota, em seu caso extraconjugal com o xerife, que agora (veja lá) adotara Sam, seu relacionamento não poderá dar-se às claras –, desenha numa pequena tela o cenário daquele instante, provavelmente a imagem que ambos irão carregar para o resto de suas vidas. Assim, Anderson não deixa muito espaço para pensarmos ser a futura trajetória de seus heróis muito diferente do passado que moldara essas suas apagadas e frustradas figuras adultas, as quais, de fato, representam a razão da desesperada tentativa de dispersão de Sam e Suzy.

Impossível não lembrarmos de Sam the Lion, interpretado por Ben Johnson às margens de um fleumático lago, narrando aos adolescentes daquela fantasmagórica cidade texana retratada por Bogdanovich, o dia em que, há mais de 20 anos, nadou pelado com aquela que talvez fosse o amor de sua vida, sua louca paixão. Quando lhe perguntado o porquê da não manutenção do relacionamento, o doloroso personagem, na pele do agora envelhecido astro de Caravana de Bravos, responde que isso não seria possível, uma vez que ela cresceu e, além disso, era casada, infeliz, como tantos casais o são.

Ao menino e à menina de Moonrise Kingdom, em uma situação análoga, daqui a muitos anos, certamente a resposta exata seria outra, mas Anderson nos deixa temerosos de que a profunda tristeza no olhar de seus protagonistas, não.

Restará com eles – e a nós – a beleza singela daquela tarde fugaz.       

Bruno Cursini

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