Diário – Parte 4
Diário – parte 4 (Holy Motors, O Som ao Redor)
Foram quatro filmes vistos no meu penúltimo dia no Rio de Janeiro. Dia à moda antiga, de quando ver quatro filmes era minha média diária. Agora está mais para 2, ou 2,5. No último dia, em compensação, só um, mas de quase três horas, e um senhor filme: A Doce Vida, de Federico Fellini. Neste texto falarei somente dos dois bons e contemporâneos entre essas últimas sessões do festival do Rio: Holy Motors e O Som ao Redor.
Holy Motors, o segundo da segunda-feira, é um réquiem para a película. Denis Lavant é um homem que vive pessoas diferentes em encontros possibilitados por limusines. Pequenos filmes que celebram os últimos dias da película (do motor). Tais limusines são conduzidas por outras pessoas. Pelos diretores? Pelos produtores? Essas limusines têm vida própria. Representam, no filme, as câmeras de 35mm que estão sumindo, e, com elas, somem também noções consideradas ultrapassadas de dramaturgia. O que surgirá daí é a barbárie, que já se insinua em alguns encontros de Lavant (concessões de um autor às necessidades da indústria).
Por força de sua própria estrutura, Holy Motors não evita certa irregularidade. Há momentos que se arrastam, e não podemos dizer que sejam desnecessários esses momentos. São como faixas insípidas de um grande disco de vinil, faixas que valorizam as pérolas que as cercam, que possibilitam um descanso na concentração, que constroem uma modulação. É a velha história do colar de pérolas. É preciso um barbante para segurá-las. Se só as pérolas existirem, não há colar. Em discos como em filmes, é necessário momentos baixos, tempos mortos ou planos de transição. Holy Motors é um disco de vinil. Cada história é como uma faixa repleta de sulcos em um disco bem eclético, mas no geral melancólico. Tem lado A e lado B, com o primeiro contendo os hits, o segundo lado trazendo as faixas mais introspectivas. O espaço para a mudança de lado serve como clipe para a banda folk-pop-metal capitaneada por Denis Lavant. Mais do que lamentar o fim da película, Carax registra o fim do analógico, enterrado definitivamente pelo digital (o disco, por não ser tão caro quanto a película, ainda volta para alimentar recentes modismos, mas ficou restrito a um punhado de bravos, ou loucos, que dizem não ao MP3).
De forma semelhante, O Som ao Redor não faz questão de evitar o que foi imposto pela estrutura escolhida: os momentos em que somos tocados pelo tédio, ou pela sensação de que houve um descuido. Nisso ele é corajoso, porque o tipo de narrativa pretendida por Kleber Mendonça Filho clama pelo desequilíbrio, no qual uma cena é o contraponto de outra, e se uma é empolgante, a outra pode ser apática, ou falsamente apática, porque é um registro de diversos cotidianos. A história do colar de pérolas se repete aqui, ou a do disco. Só que O Som ao Redor seria um disco duplo, e por isso ainda mais arriscado. Podemos reclamar, por exemplo, que a citação principal a Eletrodoméstica sofre na comparação porque é filmada de maneira mais tosca, a despeito da grande atriz que é Maeve Jinkings. Mas o equilíbrio do filme se alimenta dessa tosquidão que, suspeito, é proposital, e que retorna em outras cenas, espalhadas pelo filme cirurgicamente (o que deixa clara a construção por trás da narrativa fragmentada).
Kleber insere situações prosaicas da maneira mais natural do mundo. As meninas imitando dublagem de filmes na TV estão perfeitamente inseridas (e lembram aquelas que cantam na frente do ventilador em O Pântano, de Lucrecia Martel). O segurança interpretado por Irandhir Santos promove alguns ótimos diálogos com seus companheiros de vigilância. João, (o alter ego de Kleber – a semelhança entre o ator, Gustavo Jahn, e o diretor, é incrível), condômino de pose cool e coração que persegue a justiça, mas com certa preguiça ("acho escroto demitir o porteiro por justa causa, mas realmente tenho que ir"), é outro personagem que possibilita uma série de ricas situações prosaicas. Da mesma forma, o tal porteiro, que aparece logo depois que João sai da reunião de fascistas anônimos, vai espiar na câmera de segurança os amassos que João dá na garota dentro do elevador, quando se esperava um olhar piedoso para esse personagem. É a arte da câmera escondida que registra acontecimentos interessantes, e outros nem tanto. Mas é também a arte de ludibriar o senso comum e obrigatoriamente justo de uma nova geração de diretores. Kleber Mendonça Filho está muito mais interessado na observação do que na demagogia.
Duas revisões
Se essa segunda-feira se iniciou com o fraco Bye Bye Blondie, filme que aparenta coragem, mas revela-se covardemente maniqueísta (justamente o que Éden, de Bruno Safadi, consegue evitar), terminou com um dos faroestes de John Carpenter, desta vez travestido de horror e ficção-científica. Fantasmas de Marte não tem o rigor estético dos grandes filmes de Carpenter, mas o que tem dá para o gasto, e sobra. Ele não faz a menor questão de disfarçar que trabalha dentro de um registro de filme B, vagabundo e violento, com trilha – do próprio diretor – trash metal temperado por instrumentos eletrônicos.
E o que dizer de A Doce Vida? Vi pela quarta vez, e desta vez não tenho reservas (eram mínimas, mas existiam). Obra-prima absoluta que serve de ensaio para Oito e Meio. Ou seja, como ensaio para a obra-prima que viria, Fellini nos dá uma obra-prima anterior, diabolicamente construída em longos blocos dramáticos que ilustram uma descida de Marcello ao inferno. No caminho descendente, ele identifica numa bela garotinha que admira seus dotes para a datilografia, um anjinho (que por sinal se parece com outro anjo, Maria Schell). Uma vez no inferno, ele já não lembra mais desse anjinho, numa das cenas mais brilhantes da história do cinema, a que encerra este filme divisor de águas que mostrava, em 1960, que a publicidade já havia vencido.
Sérgio Alpendre
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br