La Vida Útil
La Vida Útil (2010), de Federico Veiroj
A primeira cena de La Vida Útil mostra dois homens abrindo um pacote com DVDs para um ciclo do cinema islandês. Estamos na Cinemateca do Uruguai. Os dois homens, Jorge, um gerente de programação (ou coisa que o valha) e Martínez, o diretor da Cinemateca, separam os filmes de acordo com as preferências de cada um, provavelmente para escrever as sinopses ou selecionar os que serão exibidos. O enquadramento fechado e em sóbrio preto e branco mal deixa ver as capas dos DVDs. Vemos na maior parte do tempo os semblantes sérios desses homens, operários da cinefilia minguante das cinematecas. A sala está na penumbra, iluminada apenas por um pequeno abajur localizado na mesa em que se encontram.
A segunda cena de La Vida Útil mostra sete gatos pingados entrando na sala 2, onde será exibido Ouro e Maldição, de Stroheim. Vemos o início da projeção e percebemos um borrão no lado esquerdo da tela. Mais adiante, há uma reunião em que se informa a necessidade de reformas nesse mesmo projetor, e a falta de dinheiro para realizá-la. Numa outra sessão, em outro dia, um filme uruguaio recente que, segundo nos informa Jorge, fez grande sucesso em circuito comercial, é exibido para número igualmente pequeno de espectadores, com a presença do jovem diretor. As palmas iniciais chegam a doer.
Está dada a situação em que se encontram cinéfilos uruguaios, brasileiros e de demais países periféricos. O que faz sucesso, dentro de um panorama mais nobre, ou o clássico, o essencial, é (re)visto por um público muito pequeno, formado principalmente de intelectuais e idosos. Os estudantes, aliás, mal aparecem no filme, e quando aparecem estão geralmente fora do ambiente cinematográfico. Vemos um país em que os mais velhos se interessam por arte, enquanto os mais novos devem estar na paquera enquanto tomam o mate sagrado das tardes. Uma minoria faz avançar o cinema, mas não vê os filmes, não frequenta a Cinemateca. É muito pouco para mudar um estado de coisas desanimador.
Porque a cinematografia uruguaia é marcada pela descontinuidade. Ciclos de produtividade acontecem, duram alguns anos, depois acabam, dando lugar a longos hiatos nos quais nada ou quase nada acontece. O ciclo atual, dentro do qual estão Veiroj, Pablo Stoll e poucos outros, é dos mais duradouros. Mas o fantasma da descontinuidade está à espreita, e pode ser vislumbrada em alguns setores: na crise da Cinemateca, na ausência de público interessado, no descaso do poder público e das empresas.
La Vida Útil é o segundo longa de Veiroj. O primeiro é o simpático Acne, exibido na Mostra SP de 2008, sobre um adolescente que se apaixona por uma colega de classe (na trilha, uma balada do Europe). Os dois filmes são bem diferentes. Enquanto Acne capta em cores as dúvidas amorosas e conquistas sexuais de um garoto, o segundo registra a crise econômica (da Cinemateca) e existencial (de Jorge), em preto e branco e quadros descentralizados, que captam o vazio de um templo cinematográfico de maneira semelhante (no aspecto melancólico) à que Tsai Ming-Liang conseguiu com o avermelhado Adeus, Dragon Inn.
La Vida Útil é muito feliz em conjugar os tempos mortos que envolvem Jorge com essa descontinuidade do cinema uruguaio. Os silêncios e músicas são solenes, e embalam a tocante solidão de Jorge. Há uma sutil melancolia correndo o filme como uma espinha dorsal. Tão sutil que nem podemos dizer que se lamenta um fim, ou uma decadência. Há, acima de qualquer outra coisa, a constatação. Depois que um grupo financeiro retira o apoio que sempre dava à Cinemateca porque esta não possibilita o lucro, Jorge percebe que seus dias na instituição terminaram. Passa a pensar então em conquistar uma professora universitária que era espectadora da Cinemateca. O filme então mostra sua preparação para convidá-la a uma sessão de cinema (num outro cinema, provavelmente de circuito comercial, onde a relação profissional não mais o atrapalhará). Vemos seu andar sem rumo pela rua, seu reflexo na pequena fonte que se encontra no pátio da universidade, que ilustra sua falta de horizonte momentânea, seu olhar melancólico para a mala onde carrega os apetrechos da Cinemateca. São momentos em que Jorge se vê sem eira bem beira. Um "não" ao convite que pretende fazer poderá ser aniquilador.
É brilhante a cena em que Jorge é confundido com um professor substituto e começa a discursar sobre a mentira para os alunos, inspirado em Mark Twain. Ao ser desmascarado pela chegada do verdadeiro professor substituto, sai da sala andando em zigue-zague, como o protagonista de O Alucinado, de Buñuel (em mais uma das inúmeras referências cinematográficas plantadas por Veiroj).
Mentiras, cinema, realidade, fim de um sonho. A configuração atual da vida social não favorece as cinematecas. La Vida Útil é muito perspicaz ao registrar esse momento e refletir a solidão que se aproxima dos cinéfilos conforme a aventura de ver um clássico migra das telas grandes para outras cada vez mais diminutas. Mas é na vida pessoal de Jorge, num "sim, por que não?", na possibilidade de um novo relacionamento e na inevitável mudança que lhe foi reservada, que o filme termina por se concentrar, afinal.
Sérgio Alpendre
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