Brasília – Balanço
Brasília: o que nos dizem os jovens?
Não faltaram filmes que, entre a acomodação e a busca, preferiram a segunda. O que, se olharmos sem romantismos, implica maiores dificuldades, caminhos mais esburacados. Por isso, saímos do Festival de Brasília sem um grande filme. Mas, por favor, não confundam essa afirmação com o que chegou a ser equivocadamente escrito, de que a “45ª edição do evento chega ao fim sem nenhum destaque com força para roubar os holofotes”. Desde quando cinema é ladrão de luz? Não sejamos levianos – ou cegos.
Grosso modo, os que mais instigam, os que ficam na memória, são as produções de realizadores que estrearam no longa de ficção aqui em Brasília. Tal recorte – metade das produções da mostra competitiva era de diretores estreantes – gerou o irônico comentário de que o festival candango havia abocanhado um grupo de filmes que facilmente poderiam estar competindo na Aurora da Mostra de Tiradentes, seleção dedicada a jovens realizadores.
Mas é justamente por conta desse recorte priorizado que o Festival de Brasília retoma seu posto de protagonista no extenso e abarrotado calendário de festivais no Brasil.
Na ficção, o único filme realmente redondo desde seu primeiro plano até o último é o de Marcelo Gomes, Era Uma Vez Eu, Verônica. Mesmo assim, não é este com maiores forças de permanecer na imaginação, na memória após a sessão. Eles Voltam, de Marcelo Lordello, Esse Amor que Nos Consome, de Allan Ribeiro, e Boa Sorte, Meu Amor, de Daniel Aragão são os longas que carregam os momentos que ficam.
Em comum, os três trazem personagens que saem da zona de conforto e caminham em direção ao outro – seja este uma pessoa ou um cenário desconhecido. Quem melhor realiza a jornada como personagem é a Cris de Eles Voltam, que sai da bolha, descobre o mundo e faz o caminho da superação. Depois de um longa fraco (Vigias) e um bom curta-metragem (Nº 27), Lordello entrelaça com habilidade as questões do Recife contemporâneo com uma trajetória particular, apontando para uma positividade, mas de resolução madura e sem muito romantismo – tal como Gomes com Verônica.
Já Boa Sorte, Meu Amor propiciou o maior alumbramento da experiência durante a projeção. Planos bonitos, boas atuações, música pujante, resolução engenhosa do roteiro. Ou seja, um salto qualitativo muito grande em comparação aos curtas de Daniel Aragão. Que este longa faça sua carreira e que Aragão realize outros projetos para que tenhamos real noção do seu tamanho como diretor.
Mesmo não sendo o que mais impressiona à primeira vista, Esse Amor que nos Consome, de Allan Ribeiro, é o que revela com mais clareza sua força com o passar dos dias. Muito em função da dramaturgia híbrida. É interessante como ele articula questões do real (a sobrevivência de uma companhia de dança) com elementos do fantástico/religioso (o Exu que protege a casa) e da poesia (os corpos que saem do espaço fechado e ganham as ruas, numa beleza que nos lembra da obra de Pina Bausch).
Sobre os outros dois longas de ficção que competiram – Noites de Reis, de Vinícius Reis, e A Memória que me Contam, de Lúcia Murat –, o segundo provoca mais. Não pelos seus méritos, mas justamente pelas imprecisões, que carregam a chave para entender o filme como o depoimento de uma geração, que parece finalmente reconhecer não só onde acertou, mas onde errou e faliu.
Ao contrário da Mostra de Tiradentes deste ano, em que um veteraníssimo (Edgard Navarro) foi quem trouxe as maiores inquietações em seu filme (O Homem que Não Dormia), em Brasília a busca veio dos jovens. Não pela vanguarda ou com filmes que se blindam no selo da “invenção” ou os de “experimentalismo estético arbitrário” como definiu Sergio Alpendre no balanço de Tiradentes. Trata-se de uma bem-vinda tentativa de instigar com filmes contados de outras maneiras. Nem cospem na dramaturgia clássica, nem fazem total adesão a ela.
Documentários e curtas
Neste ano, documentários e ficções tiveram mostras competitivas separadas. É compreensível o gesto do Festival de Brasília em dividir os gêneros para aumentar a janela para as produções. Todavia, em termos de linguagem, tal divisão denota um descompasso com o que tem sido feito de dramaturgia recentemente.
É até estranho classificar como documentário o melhor filme exibido em tal competição, Domésticas, de Gabriel Mascaro, pois ele é um híbrido: como rotular um filme em que ao diretor cabe a organização de um material (imagens de empregadas domésticas filmadas pelos filhos de seus patrões), não o seu registro?
Domésticas motiva o único comentário deste texto estritamente relacionado à premiação. Não dar um prêmio sequer para Domésticas é colocá-lo no único lugar onde ele não deve estar: o limbo.
Por conta das escolhas do júri ganharam o centro Otto e Elena. Ambos buscam partir de uma experiência pessoal – um de nascimento, outro de morte – e, a partir do subjetivo, falar a muitos. O primeiro é uma repetição do que Cao Guimarães já fez – torço para que, em seu próximo longa, ele recupere a força em deslocar o lugar do espectador. O segundo, estreia de Petra Costa no longa-metragem, consegue transformar o particular em universal – pena que não houve um olhar externo no processo mais duro para limar os exageros.
Kátia não consegue justificar seu formato como longa (teria mais força como média-metragem) e tem poucos momentos realmente cinematográficos – apesar da óbvia relevância do tema. Um Filme Para Dirceu é engolido pelo próprio personagem e não consegue responder questões básicas como o porquê do sanfoneiro enxergar-se como um injustiçado. Olho Nu não é nem um documentário musical (entendendo a definição como sinônimo de Loki – Arnaldo Baptista), nem um filme-ensaio à altura do que Joel Pizzin pode fazer.
Entre os curtas-metragens, competiram 18 filmes entre ficções, documentários e animações. Não serão comentadas uma a uma para não aumentar o enfado com este texto. Faço breves destaques. Câmara Escura é um gesto inteligente de fazer cinema político com inventividade; A Mão que Afaga apropria-se do humor negro para contar uma história de melancolia; A Cidade, neste corte exibido de 15 minutos, não é nem sombra da versão completa de 25, tornando-se um filme trivial; A Guerra dos Gibis é a prova de que os recursos de animação fazem muito bem ao documentário; A Onda Traz, o Vento Leva, selecionado como documentário, me parece muito mais uma ficção; Valquíria: quem é animador deve ter ficado feliz com as possibilidades técnicas que esse filme apresenta.
Paulo Emílio permanece?
Dos eventos e discussões paralelas ao filme, é preciso ressaltar a importância do seminário de três dias sobre a permanência dos escritos de Paulo Emílio Salles Gomes. Organizado pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), o evento certamente deixou lastros que serão perpetuados nos próximos anos.
Alguns deles: encarar com a frontalidade necessária o cinema brasileiro; rever a imagem estereotipada de Paulo Emílio como defensor intransigente e cego da produção nacional; a defesa de uma cena, ao mesmo tempo o necessário distanciamento crítico; clareza na percepção do cinema como um campo que envolve diversos atores, incluindo a crítica; a tensão entre arte e indústria e o entendimento do que é o público nessa equação.
Acima de tudo, o seminário nos lembrou de algo básico, mas que não raro perde-se de vista: não podemos dar as costas ao cinema brasileiro. Só não entendam isso como uma defesa incondicional e legitimação de certas cenas, pelo contrário: trata-se da inserção no presente e na frontalidade constante.
Na crítica, é preciso lembrar disso diariamente.
Heitor Augusto
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