Brasília – 1º Dia
1º Dia – A cidade e suas bolhas (Eles Voltam, Câmara Escura, Linear)
A imagem-síntese do estado amedrontado em que uma certa classe média brasileira vive está em Recife Frio. Nela, pessoas literalmente brincam dentro de uma bolha gigante, que se parece com o monstrengo de Carpenter em Dark Star. A bolha física está colocada na bolha metafórica na sociedade capitalista contemporânea – o shopping center, substituto artificial dos encontros na praça pública, nas ruas.
Há pelo menos três anos temos assistido a filmes decididos em falar sobre os que vivem dentro da bolha – corrigindo: filmes tem sido produzidos, mas não necessariamente vistos, pois nem sempre eles encontram janelas de exibição além dos festivais. O maior esforço tem vindo de Pernambuco em filmes que entre o panfleto e a ironia, preferem a segunda.
Eles Voltam e Câmara Escura, dois dos filmes da primeira noite da mostra competitiva do Festival de Cinema de Brasília articulam essa questão de maneira mais explícita, mas Linear, uma animação paulistana, também pode facilmente ser chamada para a conversa.
Em Câmara Escura o desconforto é maior. O diretor Marcelo Pedroso (Pacific, Aeroporto, KFZ 1348) é o homem com a câmera que sorrateiramente entrega uma câmera-olho nas portas de casas circundadas por muros altos. Ele toca o interfone, diz que tem uma encomenda – uma caixa com uma câmera pequenina e um bilhete propondo um olhar virgem, livre de preconceitos – e parte. No dia seguinte volta e diz que está fazendo um filme.
Uma ação tem sua reação e esta é o que torna o filme um comentário sobre a bolha. Quem recebe as tais câmeras imagina os piores cenários – que se trata de um plano disfarçado para roubar a casa, que é uma bomba e precisa ser tocada com o cabo de vassoura etc. Tem ameaças, polícia, conselhos paternais (“você já é crescidinho, meu filho”).
Pedroso questiona o olhar virgem e dá a resposta: impossível um olhar virgem na sociedade do medo. O que começa com uma definição de Leonardo DaVinci para a origem das imagens termina como um filme sobre a bolha. Mas como é um filme político, Pedroso devolve a fobia a eles, os da bolha.
O mesmo isolamento, que se reflete na ignorância sobre o outro, utilizando o medo como elemento fundamental para se manter o abismo, respinga em Eles Voltam, o primeiro longa de ficção Marcelo Lordello (Vigias, Nº 27). Pois é a partir de um evento bizarro – os pais largam Cris e seu irmão na beira de uma estrada qualquer em Pernambuco – que a adolescente fará o deslocamento da sua zona de conforto para o mundo.
À moda de um road movie, Cris passa uma boa parte do filme tentando voltar para casa. No caminho encontra um acampamento sem terra, é ajudada por uma faxineira, faz amizades e acaba parando na casa de praia de sua prima. É hora de iniciar a volta.
Na primeira parte o deslocamento e a troca de eixo – a percepção do tempo é outra, assim como da família, da sobrevivência. Numa sociedade em que o branco dirige o olhar desconfiado ao negro, Eles Voltam inverte a relação. Já na segunda parte, a da volta, Cris muda, mas nos detalhes – é preciso estar atento para ver. No momento mais bonito do filme, ela e uma colega de escola vão ao centro de Recife – a cena é embalada por Dalva de Oliveira cantando Tu Me Acostumaste. Cris cresceu. Resta incorporar as consequências desse crescimento, pois seu mundo já não cabe num iPhone.
O crescimento advém da consciência. É nesse registro que torna possível incluir a belíssima animação Linear, de Amir Admoni, na toada deste texto. Pois trata-se de uma linha que cansou de andar na reta, resolveu trocar o script e saiu andando.
A linha de Linear é como a Cris de Eles Voltam: abandonaram o roteiro que lhe deram para as suas vidas. Criaram outro.
Heitor Augusto
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