Cosmópolis
Cosmópolis (Cosmopolis, 2012), de David Cronenberg
Melhor filme de Cronenberg desde Marcas da Violência (o último produzido também nos EUA), Cosmopolis faz para Robert Pattinson algo parecido com o que A Cor do Dinheiro fazia com Tom Cruise em 1986. Há uma adaptação da canastrice do ator principal com o personagem que ele interpreta. No filme de Scorsese, Cruise interpretava um garotão abobado e convencido, uma espécie de Neymar da sinuca. Em Cosmopolis, Pattinson tem uma performance estranhíssima como o bilionário Eric Packer, pessoa insuportável que vive em uma bolha móvel, sua limusine – lugar de escape, o único em que o capitalismo, aparentemente, deu muito certo. A estranheza de sua interpretação casa perfeitamente com o clima imposto por Cronenberg.
Tudo no filme é estranho. A primeira transa do bilionário é com Juliette Binoche. Transa vulgar, daquelas que escancaram o poder financeiro que compra tudo. Os cabelos inicialmente escondem o rosto de Binoche, como se ela estivesse envergonhada de tal ato. Depois do gozo, a liberação. Está num filme de Cronenberg, afinal. Deve se preparar para tudo. A atriz finalmente mostra seu rosto e inicia o primeiro de muitos diálogos estranhos que Eric terá dentro ou fora da limusine. Diálogos que nem sempre são compreensíveis, e quem tentar acessá-los pode perder o que o filme tem de melhor: a sensação de que nada mais faz sentido, de que o mundo atravessa uma espécie de buraco negro, cheio de caminhos de desfechos incertos.
A limusine é o lar de Eric, o menino da bolha, Travolta contemporâneo de um diretor muito superior a Randal Kleiser (o autor do sucesso televisivo de 1976: O Rapaz na Bolha de Plástico, que revelou John Travolta para o grande público da telinha). Dentro da limusine, Eric mantém-se atualizado da crise financeira, dos protestos de rua, dos ratos ameaçadores que fomentam a economia causando, de dentro, a falência do sistema. Protege-se, também, da hostilidade das ruas de Nova York (numa versão igualmente estranha e fake, uma vez que Cronenberg filmou em Toronto), dos manifestantes que picham o carro e batem no vidro, do mundo, em suma. Aparelhos de última tecnologia o auxiliam. Uma privada portátil permite o alívio urinário no meio do trânsito. Um segurança trata de atualizá-lo em tudo, sendo ao mesmo tempo sua consciência crítica e seu incentivador – e passando depois a ser vítima de um assassinato arbitrário.
Os personagens invadem a limusine desestabilizando aos poucos esse mundo protegido: primeiro Juliette Binoche, depois Samantha Morton, outros atores conhecidos aparecem na trama (Mathieu Amalric, Paul Giamatti), sempre com um tipo de interpretação que reforça a estranheza das situações. Eric começa o filme impecavelmente vestido e penteado, com classe e frieza em relação à violência das ruas. Aos poucos vai se tornando um farrapo, deixando de lado o terno impecável, conseguindo um corte de cabelo incompleto que o deixa com a aparência de um presidiário (ou um punk), e com a feição perdida e desnorteada. Sua jornada foi do céu ao inferno, com diversas e inusitadas escalas. Em uma delas, vê dois jovens jogando basquete, mata seu segurança a sangue frio (depois de mais um diálogo estranho) e joga a arma para os jovens, sem se preocupar com o fato de poder ser reconhecido. Experimenta a arma do segurança, que se carrega por um comando de voz.
No tom, Cosmopolis está mais para Gêmeos – Mórbida Semelhança do que para qualquer filme que Cronenberg tenha realizado neste século. Há uma certa altivez que insere o filme também dentro de uma bolha, transforma-o em um alienígena dentro da produção atual, um correspondente deste lado do Atlântico a Filme Socialismo, de Godard.
Sérgio Alpendre
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O melhor de Cronenberg (10 filmes essenciais do diretor canadense) *
Calafrios (Shivers, 1975)
O primeiro de uma trilogia B que homenageia os filmes que encantaram Cronenberg na infância. Uma autêntica obra-prima de ironia e desespero, com o herói impotente cronenberguiano, que seria retomado em vários filmes posteriores, finalmente dando as caras.
Os Filhos do Medo (The Brood, 1979)
Derradeiro ato da trilogia, e um de seus melhores e mais perturbadores filmes. Poucos resistem à cena em que Samantha Eggar lambe um filho monstrengo que acabara de parir, frente ao olhar incrédulo de seu marido. O mundo está prestes a ser dominado por personificações da raiva humana.
Scanners – Sua Mente Pode Destruir (Scanners, 1981)
Uma cabeça explodindo logo no começo do filme faz com que todos achem que a cada ação dos Scanners uma nova cabeça irá explodir. Toque de gênio. A cena de uma scanner sendo “escaneada” por um bebê ainda na barriga da mãe já é um clássico do horror psicológico.
Videodrome – A Síndrome do Video (Videodrome, 1983)
A transmutação do corpo humano em uma nova forma de comunicação. O apocalipse segundo Cronenberg, via domínio das ondas televisivas. James Woods e Deborah Harry atuam neste que é considerado um dos grandes filmes do diretor.
Na Hora da Zona Morta (Dead Zone, 1983)
Um acidente, um poder paranormal, o mundo a salvar. Tipicamente cronenberguiano, mas baseado em romance de Stephen King, com Christopher Walken no papel principal. A seqüência final é digna de antologia.
A Mosca (The Fly, 1986)
Jeff Goldblum pode causar estranheza a muita gente, mas ele está muito bem como o cientista que falha em um experimento e vai, gradativamente, se transformando em uma mosca. A solução final é tocante e muito triste.
Gêmeos – Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988)
Basta um plano, já no final, com os instrumentos que os doutores gêmeos haviam criado, para fazer gelar o corpo de qualquer um que esteja assistindo ao filme. O rosto pétreo de Jeremy Irons ajuda a conferir aos doutores uma aura de anjos caídos brincando de alterar a anatomia humana.
M. Butterfly (1993)
Um homem se apaixona perdidamente por outro, pensando que este outro trata-se de uma mulher. Faz sexo com ele, e acredita depois que o engravidou. O que seria isso senão a verdadeira reconfiguração do corpo humano? Poucos perceberam que o personagem interpretado por Jeremy Irons é um romântico incurável, e que seus desejos podem, sim, se materializar.
Crash – Estranhos Prazeres (Crash, 1996)
Após um forte acidente de carro, o marido (James Spader), pergunta à esposa (Deborah Kara Unger): “Você se machucou?”, ao que ela responde negativamente. Ele, então, acrescenta: “Na próxima você consegue, amor”. Precisa dizer mais? Prazer associado à dor. A mente humana sendo dissecada pelo mais implacável dos cirurgiões: David Cronenberg.
Marcas da Violência (A History of Violence, 2005)
No maior filme de Cronenberg no século 21, Viggo Mortensen desempenha o grande papel de sua carreira como um pacato dono de bar que se revela um ex-gangster violentíssimo e implacável quando alguns bandidos aparecem tocando o terror em seu estabelecimento. O filme é também um momento mágico de Howard Shore, principalmente na ceia final, um dos melhores momentos do cinema do diretor.
(SA)
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* Comentários publicados originalmente na Revista Paisà # 0, em 2005.
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