Ano VII

Cara ou Coroa

terça-feira set 11, 2012

Cara ou Coroa (2012), de Ugo Giorgetti

Cara ou Coroa não deixa de ser uma continuação de O Príncipe (2002). Ou melhor, um prólogo, se contarmos que capta uma época anterior. A desilusão é a mesma, assim como a postura crítica diante dos acontecimentos e do entorno moralmente pantanoso, desta vez em um ano distante, 1971, tendo como pano de fundo a ditadura militar e a passagem do Living Theatre pelo Brasil (e a consequente prisão dos membros do grupo em Ouro Preto).

Em uma entrevista para o jornal Valor Econômico, Giorgetti sugere que Cara ou Coroa forma com O Príncipe e Festa (1989) uma espécie de trilogia sobre "o fim do pessoal dos anos 70". Cara ou Coroa iniciaria a trilogia com ares joviais. O Príncipe a encerraria de forma bem negativa, com um personagem que reencontra o país em farrapos. No meio deles, Festa retrataria os subempregos de pessoas de sua geração, com o qual ele compartilhava anseios e dúvidas de juventude. Faz todo sentido. Uma vez que o olhar do diretor aponta para a falência das utopias dos anos 60, dos desejos que encontravam na década seguinte uma parede contra a qual era quase impossível de se debater, a trilogia reflete o caminho da esperança para a resignação, e daí para o desencanto.

Cara ou Coroa, ao contrário dos outros dois, vai direto à época em que Giorgetti era jovem, paulistano de classe média, cheio de ideais, mas nunca com armas na mão. Um filme pessoal, que mostra pessoas comuns em gestos comuns ("gestos pequenos", como ele próprio diz). Quase um filme diário, como indicaria a narração que o abre e encerra.

A sagacidade no retrato dessa época conturbada faz com que sobrem farpas para todos os lados, para os artistas engajados, para os velhos comunistas, para os militares da ditadura que desonram os códigos do soldado, para a classe média anti-comuna e até para o soldado absoluto que se recusa a sair de seu conforto para tentar botar ordem na casa militar. São poupados da mira do diretor um dos refugiados, justamente aquele representado pelo ator que fez o príncipe do outro filme, Eduardo Tornagui, e os jovens namorados que embarcam na aventura de esconder tais refugiados num lugar inusitado, um depósito localizado no casarão do avô militar. Tudo nos é apresentado com uma postura crítica e questionadora, típica de alguém que, parafraseando Inácio Araujo em um de seus textos clássicos, ainda apresenta um espírito de recusa.

Tal espírito não impede o olhar sensível de Giorgetti, sua tentativa de compreender todos os lados, de ouvir o que as pessoas têm para contar, de atentar para as pequenas histórias (a empregada testemunha de tudo e participante de nada, o maluco que sempre chega procurando agitação, o solitário e veterano esquerdista), os detalhes significativos (uma pessoa lendo o Pasquim, um cabeludo querendo denunciar o taxista preconceituoso para a polícia – espécie de contrasenso delicioso que o filme geralmente abraça), de inserir piadas espirituosas (o taxista mostrando admiração por um jovem político em ascensão – Paulo Maluf – reverberando a velha história de que taxistas paulistanos obrigatoriamente votavam em Maluf), ou gestos de pura generosidade de quem menos se espera (o taxista dá dinheiro para o sobrinho que durante o filme todo ele chama de comunista) ou ainda retratar militares do bem, como aquele que vai ao aposentado clamar por um passado honroso que se perdeu com a ditadura. É esse olhar que faz a força do filme, torna-o um dos melhores retratos brasileiros da época.

É necessário dar vivas para dois atores brilhantes que engrandecem o filme: Otávio Augusto como o taxista conservador, futuro eleitor de Maluf e odiador de comunistas, e Walmor Chagas como o militar aposentado.

Sérgio Alpendre

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