Ano VII

À Meia-noite…

segunda-feira set 10, 2012

À meia-noite levarei sua alma *

A todos aqueles que viram um velório, o rosto pálido de um

cadáver, a todos aqueles que não acreditam em almas penadas, aos que ao saírem deste

cinema e tiverem que passar por ruas escuras, sozinhos, ainda há tempo!

Não assistam a este filme! Vão embora!

Hahahahaha! Tarde demais! Vocês não acreditaram.

Querem mostrar uma coragem que não existe? Pois então fiquem! Sofram! Assistam…

 

Prólogo do filme À Meia-noite Levarei Sua Alma

 

Por Laura Canepa

Mais conhecido pelo público brasileiro por suas aparições – às vezes hilárias, às vezes patéticas – em programas de rádio e de televisão, José Mojica Marins é também um dos mais originais cineastas brasileiros. Estreante nas telas nacionais na década de 1950, causou grande polêmica em 1964, quando lançou, em São Paulo, seu terceiro longa-metragem finalizado, À meia-noite levarei sua alma, que viria a ser o primeiro filme de horror da  do cinema brasileiro a assumir-se como tal, trazendo à luz a figura do coveiro psicopata Zé do Caixão, uma espécie de alter-ego do próprio Mojica.

Seu filme, surpreendentemente bem sucedido nas bilheterias, daria origem à primeira onda consistente do gênero horror na mídia audiovisual brasileira, com quase uma dezena de filmes do gênero[1] lançados nos anos seguintes, inúmeros programas de televisão e de rádio, músicas populares, além de histórias em quadrinhos, anúncios publicitários, festas temáticas, peças teatrais e vários outros produtos e eventos que tinham como objeto a figura de Zé do Caixão, rapidamente absorvida e consagrada pela cultura midiática brasileira.

Nascido na sexta-feira 13 de março de 1936, na Vila Anastácio (hoje Vila Mariana), na cidade de São Paulo, José Mojica Marins é filho único de Antônio Marins e Carmem Mojica, descendentes de imigrantes espanhóis ligados ao circo e ao mundo do espetáculo. Seu contato com o cinema começou aos três anos de idade, quando seu pai se tornou gerente de um cinema no bairro do Brás. Alguns anos depois, o pequeno José, apaixonado por filmes e desinteressado pelos estudos (que concluiu apenas até o nível fundamental), começou a reunir amigos para fazer pequenas obras mudas em uma câmera 9,5mm que ganhara dos pais.

Os filmes eram estrelados por seus vizinhos e amigos, e exibidos em parques de diversões e em igrejas da capital paulista. Em 1953, aos 18 anos, ele fundou a Cia. Cinematográfica Atlas através de um sistema de cotas de participação pagas pelos amigos, e começou a ministrar aulas de interpretação com o objetivo de recolher fundos para a realização de projetos cinematográficos. Em 1955, conseguiu realizar, com a ajuda do comerciante de móveis Augusto Sobrado Pereira (que depois passaria a assinar Miguel Augusto Cervantes, tornando-se parceiro freqüente de Mojica), seu primeiro longa-metragem, um drama policial em 35mm chamado Sentença de Deus, que não chegou a ser finalizado. Dois anos depois, lançaria seu primeiro longa profissional, filmado em cinemascope: o faroeste A Sina do Aventureiro, que teve a colaboração, no roteiro, de Luis Sérgio Person (1936-1976), que então começava a despontar no cinema paulista. Person, porém, pediria para não ter seu nome mencionado nos créditos, só vindo a assumir sua participação no filme alguns anos depois. A Sina do Aventureiro estreou em 19 de dezembro de 1958, em São Paulo, e ficou três semanas em cartaz, obtendo sucesso razoável de bilheteria. Depois, fez o circuito suburbano durante dois anos, ganhando destaque por algumas sessões especiais realizadas com o strip-tease ao vivo da protagonista Tônia Eletra, o que garantiu o interesse do público por mais tempo. O longa chegou a receber alguma atenção da crítica, geralmente pela brutalidade das cenas de violência[2].

Após a estreia do filme, a escola de atores prosperou, e Mojica decidiu produzir um filme calcado no lacrimoso sucesso espanhol Marcelino Pão e Vinho (Ladislau Vajda, 1955), com o objetivo de retomar as relações com seus velhos parceiros da Igreja. O resultado desse novo projeto foi o longa-metragem Meu Destino em Tuas Mãos, estrelado pelo próprio Mojica e pelo cantor-mirim Franquito, conhecido como “o garoto da voz de ouro”. Tratava-se de um melodrama infantil em episódios que abordava temas como o alcoolismo, violência doméstica e pobreza. Com ajuda de bons profissionais (como o iniciante Ozualdo Candeias na produção, o montador Máximo Barro e o fotógrafo Ruy Santos), o filme teve um acabamento bom para os padrões de sua produção, mas acabou tendo uma fraquíssima carreira comercial, provavelmente em função da ingenuidade do roteiro, das dificuldades de distribuição e do fato de ter sido censurado para menores de 14 anos. Também a trilha musical, composta em parte por Mojica, não ajudou muito.

Meu Destino em Tuas Mãos foi lançado em junho de 1963, sem obter qualquer atenção do público ou da imprensa. Mas, pouco depois, a sorte do diretor e de seus parceiros mudaria radicalmente. Segundo Mojica contaria desde então, no inverno daquele ano, doente e frustrado com o pouco sucesso da parceria com Franquito, ele teria tido um pesadelo. No sonho terrível, vira-se carregado por um misterioso homem vestido de preto que o teria levado à sua própria sepultura. E este homem não era ninguém senão ele mesmo. Acreditando que o tal pesadelo tivesse sido uma revelação, ele decidiu realizar um filme: À Meia Noite Levarei Sua Alma. Em suas palavras, a primeira fita brasileira “de terror”.

A produção foi bastante precária. Sem um tostão, Mojica vendeu o carro da família, pagando somente a alguns técnicos pelo trabalho: ao fotógrafo que o acompanharia sempre, Giorgio Attili; ao montador Luiz Elias, que também continuaria trabalhando com ele até o final dos anos 1960; ao cenógrafo José Vedovato e aos assistentes Ozualdo Candeias e Osvaldo de Oliveira, que se tornariam, posteriormente, diretores de cinema. O restante do orçamento foi angariado num sistema de “cooperativa” com os alunos da escola de atores: para participar do filme, cada um deveria desembolsar cem mil cruzeiros. O filme, que acabou custando seis milhões de cruzeiros, foi terminado, mas o diretor estava atolado em dívidas. Ele acabaria vendendo o filme, pouco antes da estreia, ao ator Ilídio Simões, que ganhou muito dinheiro com o negócio ao revender sua parte, pelo triplo do valor, ao investidor Nelson Teixeira Mendes, após a muito bem sucedida estreia do filme em São Paulo, em 09 de novembro de 1964 (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 115).

A história de À Meia Noite Levarei Sua Alma, escrita por Mojica com a colaboração dos revisores Magda Mel e Waldomiro França, girava em torno do rico e violento agente funerário Josefel Zanatas, o Zé do Caixão (interpretado por Mojica, mas dublado por Laércio Laurelli). Temido e odiado pelo povo de uma cidadezinha do interior, Zé é obcecado por gerar “o filho perfeito” que dará continuidade ao seu sangue, legando-lhe o que considera ser a única eternidade possível. Para consegui-lo, não hesita em assassinar e torturar homens e mulheres que se colocarem em seu caminho – nem mesmo a própria esposa, Lenita, que não consegue engravidar, ou seu melhor amigo, Antonio, cuja noiva, Terezinha, lhe desperta o desejo. Esta última, violentada por Zé, acaba se suicidando, mas não sem antes jurar que sua vingança virá do além. Então, numa noite em que todos os habitantes da cidade evitam sair de suas casas com medo da “procissão dos mortos”, o descrente Zé, que afirma não ter medo fantasmas e nem acreditar em Deus, decide passear com uma moça recém-chegada. No caminho, uma cigana os interpela e anuncia que o destino trágico de Zé estará selado se ele não voltar para casa antes da meia-noite. Ele não acredita, mas, na volta, é abordado pelos mortos em procissão. Zé corre pelo mato até refugiar-se no cemitério, onde se depara com os cadáveres de suas vítimas. Apavorado, é encontrado pelo povo, morto e com os olhos esbugalhados pela visão do inferno…

 

Um personagem sem paralelo

Na opinião do escritor e roteirista Rubens Francisco Luchetti, que foi colaborador de Mojica do final dos anos 1960 até a década de 1980, Zé do Caixão foi um personagem verdadeiramente revolucionário:

 

Mojica conseguiu um milagre quando apareceu com o Zé do Caixão. (…) É o único grande personagem de horror do cinema latino. (…) Quando eu trabalhava com s em quadrinhos e no rádio, freqüentemente pediam pra que eu criasse personagens brasileiros. Mas, dentro desse universo fantástico e terrífico, eu achava impossível criar um personagem brasileiro. Até aparecer o Zé do Caixão. (LUCHETTI, Entrevista à Coleção Zé do Caixão, Vol. I[3])

 

Para criar o Zé do Caixão, Mojica parece ter absorvido referências tanto da tradição do cinema de horror internacional quanto do folclore nacional, trazendo também elementos de sua própria biografia, como a dificuldade de sua primeira esposa para engravidar.

Mas, se sua criação individual tinha força por si só, outro aspecto que ajuda a explicar a diferença de Zé do Caixão e seu impacto na ficção brasileira foi a forma como ele estruturou os elementos de sua história de horror, apresentando diferenças importantes em relação ao modelo canônico do gênero. Afinal, como descreve Piedade, Zé do Caixão é um monstro de horror, mas não um monstro sobrenatural como um vampiro, um lobisomem ou um saci-pererê:

 

Personagem que tem como característica relevante o fato de ser um sociopata, aspecto diluído pela qualidade quase sobre-humana a ele atribuída, Zé do Caixão, apesar de mortal, encarna aos olhos do espectador a figura do monstro, o “personagem extraordinário num mundo ordinário”, a que se refere Noël Carrol. Ou seja, as situações apresentadas, com seus abusos e decrepitudes, possuem palpabilidade cotidiana, mas o coveiro, enquanto agente desencadeador, encontra-se em outro nível. (PIEDADE, 2006. p. 123-126)

O que Piedade está afirmando é que Zé do Caixão, aos olhos daqueles com quem contracena, é um homem de verdade, mortal, e, ao mesmo tempo, um ente poderoso, pois, como coveiro e assassino, transita entre o mundo dos vivos e dos mortos, sendo temido e odiado da mesma forma que as maldições, as bruxas, as almas penadas e o diabo. O irônico é que tais figuras sobrenaturais vêm à cena, nas suas histórias, justamente para punir o próprio Zé. Nos filmes em que o personagem aparece, é sempre o sobrenatural, e não os homens comuns, que vencem o “monstro” sociopata, restabelecendo a vida normal e colocando o indivíduo desviante em sua posição humana e apavorada.

Como observa Cid Vale Ferreira:

 

Você tem um personagem que é um coveiro. Não é uma criatura sobrenatural, não é uma criatura monstruosa, ele é um homem com certas obsessões, e é construído com um certo cuidado que o diferencia de todos os personagens que, na época, eram os ícones do horror cinematográfico. (…) E, junto com isso, ele tem toda uma raiz brasileira, supersticiosa, religiosa, que preenche as lacunas que você poderia supor que fossem um problema na criação de um personagem brasileiro de horror. (…) É engraçado a gente ver que, em À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA, filme de estreia do personagem, a questão daquilo que não pode ser, de uma ameaça sobrenatural, não existe em função do Zé do Caixão. Esse horror aparece justamente como uma confirmação de que tudo aquilo que ele desprezava realmente existe. Ou seja, todos os crimes que ele comete porque acredita que tudo é possível por não existir Deus são realmente punidos com a procissão sobrenatural de mortos. Essa contradição, e até um certo moralismo de punir aquele que duvida da existência do sobrenatural, é a tônica desse filme. (FERREIRA, Entrevista à Coleção Zé do Caixão, Vol. I)

 

Tal interferência moralizante do sobrenatural parece derivar principalmente dos melodramas religiosos, ainda muito populares na época em que Mojica realizou seus primeiros filmes, e que consistiam em histórias nas quais os poderes de Deus intervinham quando os heróis se encontravam no limite da tragédia. Afinal, numa cultura como a brasileira, em que o sobrenatural não é encarado como o elemento desviante, e sim como um dos elementos organizadores do mundo, seria difícil criar uma história realmente marcante em que o sobrenatural representasse o mal puro e simples. A genialidade da criação de Mojica, então, foi a de inventar um personagem que não crê no sobrenatural, e que, com isso, pode se espantar e se apavorar com sua interferência. Mas esse personagem, ao não crer e, assim, sentir-se autorizado a fazer uma série de maldades em nome do que considera ser “a razão”, é também um “herói” de Mojica, pois é a sua trajetória de desafios e descobertas que acompanhamos. Nesse sentido, em vez de um simples vilão, Zé do Caixão também se transforma numa espécie de herói trágico, que comete o erro trágico de desafiar os deuses com sua descrença, devendo ser punido exemplarmente.

Dessa forma, Zé do Caixão representa mais do que a figura de um sociopata descrente, sendo também, em certo sentido, um mártir que é aniquilado ao desafiar os poderes superiores. Essa curiosa reunião do pecador e do herói trágico talvez ajude a explicar o caráter mítico que o personagem adquiriu no imaginário brasileiro, especialmente por sua capacidade de “voltar do mundo dos mortos” sob várias roupagens, ameaçando e admoestando as pessoas comuns em programas rádio e de televisão, ou apavorando novamente o povo da sua comunidade na continuação de À Meia Noite Levarei Sua Alma, chamada Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (lançada em 1967). Neste filme, maior sucesso de bilheteria da carreira de Mojica[4], Zé do Caixão reaparece, ressuscitado e pronto para seqüestrar várias mulheres, em busca daquela que lhe dará o filho perfeito.

Tentando explicar o cinema de Mojica, Alexandre Agabiti Fernandez (2002, p. 117-118) explora a ideia de uma articulação específica de “demência e transcendência”. Para ele, o fascínio de Zé por questões para as quais não há respostas (como o sentido da vida e da morte, a existência do além-mundo e do sobrenatural) remetem facilmente ao sagrado, reforçando o aspecto mítico do personagem. De fato, é inegável que Mojica produziu um amálgama de referências sagradas e profanas que contribuíram muito para a forma ambígua como a sociedade brasileira o incorporou, fazendo com que sua figura pública navegue facilmente do demônio ao curandeiro. Esse dado também ajuda a compreender a desconfiança, em relação aos seus filmes, por parte de críticos mais engajados e comprometidos com a luta por mudanças sociais no Brasil, pois eles identificavam facilmente, na obra de Mojica, uma visão política reacionária, ainda que cinematograficamente ousada.

Seja como for, parece impossível compreender o seu trabalho sem colocá-lo em perspectiva, dentro do atribulado contexto social, político, cultural e cinematográfico brasileiro dos anos 1960/70, que teve a radicalização ideológica, a intervenção permanente da Censura, o esforço por um cinema nacional popular e a consagração do cinema erótico como algumas de suas principais características – todas elas implicadas no cinema de Mojica.

 

Um prodígio do cinema popular

Além de originar um personagem único, À Meia Noite Levarei Sua Alma é também um curioso amálgama de vários tipos de histórias de horror, reunindo um assassino em série particularmente blasfemo (é inesquecível a cena em que Zé do Caixão assiste a uma procissão de Sexta-Feira Santa comendo um enorme pernil), ataques de animais peçonhentos (como a aranha que mata a esposa de Zé), assombrações (com a procissão dos mortos, típica do folclore brasileiro e lusitano), cadáveres em decomposição (que só seriam vistos com os mesmos detalhes alguns anos depois, nos filmes de mortos-vivos de George Romero), violência sexual (num padrão de sexploitation cujas referências Mojica sequer conhecia), cenas gráficas de violência bem realizadas com os poucos recursos disponíveis (como a de um dedo decepado por Zé numa briga de bar), alem de efeitos especiais artesanais “a la Meliès” que incluíam intervenção direta na película e imagens em negativo – tudo num cenário absolutamente brasileiro, interiorano e conservador, mas inspirado na linguagem do rádio e dos quadrinhos, com a presença de narradores caricatos, música dramática e imagens fortes.

O filme acertou em cheio o gosto popular, oferecendo um tipo de ambigüidade que se revelou arrasadora. À Meia Noite Levarei Sua Alma era ambíguo, em primeiro lugar, por não se decidir como drama ou comédia – o público ria e se apavorava com igual intensidade ao longo da projeção. Também o aspecto “brasileiro” não deixava de lado elementos “importados”, como o traje capa-e-cartola de Zé do Caixão, inspirado em antigos filmes fantásticos, além do próprio gênero horror, até então relativamente inédito no cinema nacional. Mas, sobretudo, a ambivalência de À Meia Noite Levarei Sua Alma dizia respeito ao seu caráter ao mesmo tempo blasfemo e conservador, já descrito anteriormente. Afinal, tudo aquilo que, a princípio, parecia uma ironia do filme em relação à “ignorância popular” denunciada pelo endiabrado Zé, no final se revelava verdadeiro e inapelável, dando à história inegáveis toques melodramáticos e moralistas: Zé do Caixão, vilão descrente e pecador, seria eliminado justamente pela própria culpa e pelas forças sobrenaturais em que dizia não acreditar.

Diante de um filme tão incomum, a crítica brasileira se dividiu. Quando a fita estreou em São Paulo, em novembro de 1964, amou-se e odiou-se seu diretor/ator com igual intensidade. J. B. Duarte, da Folha de São Paulo, e Maurício Gomes Leite, do Jornal do Brasil, detestaram o filme, o qual julgaram pobre, ridículo e exagerado

 

J.B.Duarte: Aí temos o senhor José Mojica inaugurando o horror do cinema brasileiro, dirigindo a si próprio, interpretando o papel principal desta  abracadabrante, o personagem Zé do Caixão, numa atuação realmente inesquecível por seu ridículo e o grotesco da sua pretensão. (…) Em verdade, eu deveria ter seguido o conselho que uma feiticeira (a exemplo do prólogo de Macbeth) dá ao espectador, ao início do filme de Marins: ‘Se não acreditar em almas penadas, saia deste cinema’. (DUARTE apud BARCISNKI; FINOTTI, 1998, p. 117)

 

Maurício Gomes Leite: O desfile grotesco de À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA, que absolutamente não é cinema, acaba por encantar os que sentem a falta de uma espécie de pornografia (…) Não é um filme primitivo, é primário; não choca, imbeciliza; para o cinema do Brasil não é uma linha pioneira, é um atraso. A lembrança de Buñuel, levianamente chamado como testemunha da importância de Mojica, só pode ser considerada um desaforo. (…) Mojica faz o cinema do instinto, o cinema animal há muito tempo sonhado e nunca executado, dirão seus divulgadores. (LEITE apud Ibid, p. 118)

 

Já os críticos Tati Morais, d’A Última Hora, e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), saíram em defesa do trabalho de Mojica, apontando sua inventividade e ineditismo:

 

Tati Morais: Confessamos alguns pulos na cadeira enquanto assistimos a esse delicioso horror nacional, o primeiro do gênero a ser feito aqui no Brasil, e que é para ser visto metade a sério, metade rindo (o público reage na hora exata), fórmula ideal para o humor negro. No conjunto, é de uma inventividade estupenda, e com um sentido de cinema que não se encontra com facilidade nem aqui nem em outro lugar. (MORAIS apud BARCISNKI; FINOTTI, 1998, p. 118)

 

Stanislaw Ponte Preta (Sétgio Porto): Pois, meus camaradinhas, não vi outra coisa! À Meia-Noite Levarei Sua Alma é o maior filme que o sobrinho de Zulmira já assistiu, desde Frankenstein. É verdade que Frankenstein, quando vi, ainda não tinha 10 anos, e agora já sou maiorzinho, o que só vem reforçar a minha suspeita de que José Mojica Marins é um gênio do cine terror. (PORTO apud Ibid, p. 121)

 

O mesmo tipo de polêmica se repetiu entre os cinéfilos e o público em geral – mas não entre os mais rebeldes cineastas brasileiros, entre eles Glauber Rocha e Person. Esses cineastas dariam a Mojica uma tal reverência, que, junto do “oba-oba” de uma parte da imprensa e do intenso e criativo marketing pessoal do diretor, fariam do colega do Brás uma verdadeira celebridade. Como afirma o cineasta Carlos Reichenbach:

 

O Mojica (…) criou um dos dois personagens mais importantes da dramaturgia fílmica do Brasil (…): se Glauber Rocha criou Antonio das Mortes, Mojica Marins criou Zé do Caixão, que, curiosamente, são personagens irmãos. Não por acaso é notório o fato de que, no Rio de Janeiro, Glauber irrompeu numa sessão de À MEIA NOITE LEVAREI SUA ALMA (1964) para dizer: “Esse homem é um gênio”, e vários outros críticos, como Salviano Cavalcanti de Paiva, reconheceram a genialidade do seu trabalho. (…) Essas pessoas não estavam erradas: elas conseguiram ver com antecedência que estavam na frente de um artista impar. (REICHENBACH, Entrevista à Coleção Zé do Caixão, Vol. I)

 

O que impressionou a esses cineastas e a alguns críticos foi a radicalidade e a espontaneidade com que o jovem Mojica abordou diversos temas que causariam choque em qualquer cinematografia do planeta, como o sadismo, a violência sexual, a blasfêmia, a tortura, a escatologia e a fantasia, numa junção que, no restante do mundo, estava apenas começando a se combinar de maneira tão explícita no cinema de horror. Mas também temas candentes da cultura brasileira – o machismo, a prepotência das classes altas (Zé é um dos homens mais ricos da cidade, e veste-se como um aristocrata) e o racismo (possivelmente simbolizado na busca do “filho perfeito”) – apareciam como igualmente importantes, dialogando, ainda que de maneira ambígua, com as maiores preocupações do cinema moderno brasileiro naquele momento. Para completar, seu diretor, um jovem de pouco estudo e excelente tino publicitário, comportava-se como um autor-estrela, indo a programas de TV e espetáculos variados, sempre vestido como Zé do Caixão, praguejando, afirmando e prometendo as maiores barbaridades, rogando pragas e atraindo a atenção de fãs capazes de grandes loucuras para trabalhar com ele.

E havia mais. Havia também a inegável qualidade de decupagem e de construção narrativa do filme de Mojica, em diálogo evidente com as os quadrinhos e com as novelas de rádio. Da mesma forma, soluções eficazes e baratas nos efeitos especiais e na maquiagem mostravam a inventividade rara da equipe comandada. E, sobretudo, as contradições de um cinema de gênero realizado de forma artesanal, a presença na tela das classes populares e o discurso ao mesmo tempo pomposo e simplório formavam, afinal, um autêntico prodígio do cinema popular brasileiro em plena década de 1960.

 

Um autor insano

Em 1978, quinze anos após a realização de À Meia Noite Levarei Sua Alma, o escritor Décio Pignatari definiria com as seguintes palavras a obra de Mojica:

 

O choque fascinante do primitivo encontra o cinema na era da viagem à Lua. (…) A descoberta de uma linguagem secreta, transfigurante, dos rituais de uma seita de pobres iniciados que lutam para sobreviver metendo a cara numa tela. (…) Vinte e cinco ou mais longas-metragens feitos com técnica alternativa fazem uma surpreendente cultura de pobre para pobre. Thanatos e Eros em uma criação exacerbada. É o cinema de terror brasileiro, um espantoso kitsch. (PIGNATARI, em texto feito para o documentário O Universo de José Mojica Marins, 1978, de Ivan Cardoso).

 

Alexandre Agabiti Fernandez, na tese Entre La Demence e La Transcendance – José Mojica Marins et le Cinema Fantastique, defendida no Instituto de Pesquisa em Cinema e Audiovisual da Sorbonne, em 2000[5], desenvolve ideias semelhantes sobre o cinema “de pobre para pobre” descrito por Pignatari:

 

Desmedida, horror e brutalidade são traços distintivos das rústicas fábulas cinematográficas de José Mojica Marins, as quais abordam temas como o sobrenatural, a violência e as pulsões sexuais. (…). Sua mise-en-scène combina pretensão, grandiloqüência, precariedade material e inépcia, o que torna seu “estilo” único e atraente. Os transbordamentos estão por todo lado: nos cenários grosseiros; na fotografia suja; nos diálogos inverossímeis que mesclam uma retórica ao mesmo tempo pomposa e simplória; no amadorismo dos atores, que adotam um tom declamatório, como se recitassem suas falas. A falta de comedimento prossegue nas situações excessivas propostas pelos filmes, nos quais canibalismo, mutilações, blasfêmias e sadismo são moeda corrente. Visto sob esse prisma, o cinema de Mojica parece algo totalmente artificial. No entanto, ele mantém uma relação estreita com o real, pois os excessos, apresentados muitas vezes com uma ingenuidade desconcertante, surgem com freqüência em situações caracterizadas por pretensões de verossimilhança. (FERNANDEZ, 2007)

 

Para Fernandez, a coexistência paradoxal da artificialidade e da espontaneidade, da convenção e da autenticidade, da imaginação e da realidade no cinema de Mojica permite dois modos de expressão: “O primeiro é o choque, caro aos surrealistas, em que a anormalidade, o excesso, o sonho, o irracional ou o sobrenatural surgem em um contexto estável e corriqueiro. (…) O segundo modo de expressão é a comicidade involuntária” (Ibidem). 

Equilibrando-se entre essas características vistas como geniais por alguns, e insanas ou ridículas por outros, Mojica teve a mais longa carreira dedicada ao horror no cinema brasileiro, com mais de 45 anos de atividade praticamente ininterrupta na produção cultural massiva. Mas, tendo despontado na cena cinematográfica no começo da década de 1960, Mojica e seus filmes também não poderiam ter escapado da influência das ideias relacionadas ao cinema de autor, conceito derivado da literatura e tantas vezes apresentado como oposto ao cinema de gênero e à cultura massiva. O chamado “autorismo” pode ser entendido como um modo de fazer e de “ler” filmes a partir da noção de uma escritura individual cujo domínio pertence ao diretor. Essa escritura, que pode ser reconhecida a partir da recorrência de certos temas, configurações iconográficas e posturas ideológicas, seria a chave para compreender os verdadeiros artistas e criadores cinematográficos, que deixam suas próprias marcas na superfície dos textos, a despeito das pressões e sanções do mercado e da indústria cultural.

Dentre os diversos títulos de horror produzidos no Brasil a partir da década de 1960, os primeiros a ganhar alguma notoriedade (e, hoje, os únicos a ser lembrados) foram justamente os realizados por esse cineasta de características autorais marcantes – encontradas não apenas nos seus filmes, mas também na forma peculiar como ele sempre se relacionou com o público e com a imprensa, despertando a atenção de jornalistas, cineastas e cinéfilos, mesmo numa época em que o gênero horror estava muito distante do projeto político, ideológico e estético que movia os diretores e os críticos brasileiros em plena vigência do Cinema Novo, com seu discurso altamente intelectualizado e seu indefectível panteão de grandes autores, como Glauber Rocha, Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos e outros.

Mas, ainda que o senso comum leve qualquer conhecedor de cinema brasileiro a relacionar facilmente a figura de Mojica à de um autor cinematográfico, parece necessário explorar mais os motivos desse reconhecimento, já que seu trabalho destoa completamente da obra de quaisquer outros autores do cinema brasileiro, tanto por suas opções estéticas quanto pelo capital social e cultural do diretor do Brás. Assim, é necessário que se discuta os traços que fazem de Mojica não simplesmente um autor cinematográfico, mas um autor de horror cinematográfico, que contribuiu para o desenvolvimento do gênero de forma específica, tanto no Brasil como, em certa medida, no cinema mundial.

O primeiro e mais evidente aspecto que faz da filmografia de Mojica um exemplo de autoria brasileira no gênero é o fato de ele ter sido, com À Meia Noite Levarei Sua Alma, o primeiro diretor no país a fazer filmes auto-intitulados “de terror[6]”, sendo reconhecido como tal pela crítica e pelo público, obtendo sucesso expressivo nas bilheterias e na mídia, provocando intensas polêmicas entre críticos e acadêmicos, e também influenciando uma geração de cineastas que trabalharam com o horror cinematográfico no Brasil ao longo dos anos seguintes, quando foram realizados dezenas de filmes desse gênero, principalmente no campo do cinema erótico.

Um segundo aspecto relevante e inovador de sua obra é que, conforme apontaram vários pesquisadores do cinema de horror (principalmente após o lançamento de seus principais filmes nos EUA, na década de 1990), Mojica foi um dos pioneiros mundiais na produção de filmes de horror explícito, sendo, hoje, considerado um dos “pais” do gore[7], juntamente com cineastas como o estadunidense Hershel Gordon Lewis (de Bloody Feast e 2.000 Maniacs, ambos de 1963) e o japonês Nobuo Nakagawa (Jigoku, 1960). Esse pioneirismo de Mojica na exploração do gore causou furor entre a crítica internacional quando seus primeiros filmes foram divulgados nos EUA e na Europa nos anos 1990. Os historiadores e fãs ficaram impressionados com o grau de violência presente nas obras do cineasta tupiniquim, e também com seu aspecto lúdico e artesanal, reconhecendo nele um estilo único de narrativa e mise’en’scene. Não por acaso, quando o longa-metragem A Encarnação do Demônio, última parte da trilogia de Zé do Caixão (iniciada com À Meia Noite Levarei Sua Alma e continuada em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver) foi lançado, em 2008, explorou-se abertamente o estilo contemporaneamente conhecido como “torture porn” (encontrado em séries cinematográficas como Jogos Mortais e O Albergue) do qual Mojica é obviamente um dos precursores.

E também a autoconsciência do cinema de Mojica a respeito do conteúdo altamente violento e explícito de seus filmes ajudou a legitimar esse seu reconhecimento como um dos inventores do horror gore. Afinal, suas cenas de torturas são sempre exibicionistas, feitas diante de plateias dentro do filme e endereçadas de maneira claramente performática à plateia do cinema. E tais cenas têm seu impacto reforçado por freqüentemente fazerem uso de um tipo de realismo brutal: de maneira recorrente, o cineasta constrói suas narrativas ficcionais submetendo seus atores a situações reais de violência, que incluem mutilações, ataques de animais e outras situações extremas, o que garante atuações bastante autênticas de intérpretes quase sem nenhum preparo.  

Por isso, como observa o pesquisador brasileiro Carlos Primati, a questão do olhar para a violência é tão central nas narrativas construídas por Mojica, nas quais o tema do “ver e ser visto” é um dos mais presentes. Segundo Primati, a posição de quem “vê”, nos filmes de Mojica, sugere tanto uma situação de poder (Zé do Caixão e os outros personagens são quase sempre grandes voyeurs) como de um sofrimento atroz. Em suas palavras sobre À Meia Noite Levarei Sua Alma:

 

A primeira vítima fatal de Zé é Lenita, sua esposa, incapaz de engravidar. "Terei a honra de vê-la morrer diante de mim", caçoa Zé ao colocar uma aranha venenosa sobre o corpo da moça indefesa. Com este ato, Mojica nos convida a fazer o mesmo: testemunhar as crueldades do vilão através da mais voyeurística das artes – o cinema. Em outra cena de grande impacto, Zé decide se livrar do médico da cidade (…). Ao confrontar o Dr. no consultório, Zé lê o relatório do médico e ameaça: "Como dizem: quem tem olhos, é para ver!". Em seguida, diante do desespero do doutor, o sádico sentencia: "Quero evitar que seus olhos vejam aquilo que não devem ver"; e então vaza as duas vistas do homem desferindo-lhe um golpe com suas unhas compridas. Nunca se vira num filme de horror cena tão grotesca e desconfortável. A câmera, claro, se coloca na posição da vítima, obrigando a plateia a sentir sua agonia. (…) Zé não acredita em Deus e justifica a ausência de fé pelo simples fato de não poder vê-Lo ("Sou um revoltado com os tolos como você, que temem o que não vêem"), mas no final, recebe o castigo, aterrorizado pela visão das almas penadas. Para Zé, ver é crer; portanto, num universo de violência, ver também é sofrer. (PRIMATI, 2006)

 

Além dessa exibição explícita, espetacular e excessivamente realista da violência, um terceiro aspecto da filmografia de Mojica que pode qualificá-lo um autor no gênero horror é o fato de que, entre os mestres do horror, ele é um dos únicos – e certamente o que mais ostensivamente – se apresenta nas telas (e mesmo fora delas) interpretando o próprio monstro, e assim produzindo, deliberadamente, tanto em seus filmes quanto em sua vida, uma confusão entre autor e personagem cujos limites beiram freqüentemente a insanidade.

Não por acaso, na época do lançamento dos filmes de Mojica na Europa, em 1993, o jornalista Horacio Higushi, da revista Monsters International, escreveria um longo dossiê sobre o cineasta, intitulado José Mojica Marins: The Madness in his Method (José Mojica Marins – A loucura em seu método) dando conta do fato de que Mojica, ao submeter tanto a si mesmo quanto a seus atores aos maiores riscos (desde riscos de vida até os de exposição pública vexatória) para realizar seus filmes, age como o próprio Zé do Caixão em relação às suas vítimas, produzindo um resultado cinematográfico altamente cruel e autorreferente.

O que complica a discussão sobre a autoralidade de Mojica, no entanto, é o fato de que, embora o cineasta tenha surgido na cena brasileira na época em que a noção de autoria exigia dos diretores não apenas filmes, mas também um discurso articulado para pautar a circulação social desses mesmos filmes, ele adotou uma estratégia circense – provocada, em certa medida, por sua necessidade de manter-se na mídia mesmo sem novos filmes para apresentar –, condição que tornou sua fala, quase sempre, ainda mais contraditória do que seu próprio cinema. Mas parece impossível encerrar este capítulo sem recorrer às suas próprias palavras.

Das centenas de declarações dadas pelo cineasta ao longo de sua vida, não se pode encontrar nenhuma que ofereça uma “chave” para compreensão de um possível “projeto cinematográfico”. Tal compreensão, se é que existe, está dispersa em inúmeras declarações, muitas delas inverídicas, e sobretudo nos longos monólogos de seus filmes, verdadeiras obras-primas do discurso dialético vazio de Mojica. Num dos mais famosos, escrito por Luchetti para O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), o ator/cineasta, encarnando um anjo da morte, promete explicar a que veio, mas logo desiste:

 

Quem sou eu? Não interessa. Como também não interessa quem é você. Ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que importa é saber o que somos. Não se dê ao trabalho de pensar, porque a conclusão seria a loucura. O final de tudo, para o início de nada. A coragem inicia onde o medo termina. O medo inicia onde a coragem termina. Mas será que existem a coragem e o medo? Coragem para quê? Medo do quê? De tudo? O que é tudo? Do nada? O que é nada? A existência. O que é a existência? A morte? O que é a morte? Não seria a morte o início da vida? Ou seria a vida o início da morte? Você não viu nada e quer ver tudo. Você viu tudo, mas não viu nada. Teme o que desconhece e enfrenta o que conhece. Por que teme o que desconhece e enfrenta o que conhece? Sua mente confusa não sabe o que procura, porque o que procura confunde a sua mente. E nasce o terror. O terror da morte. O terror da dor. O terror do fantasma. O terror do outro mundo. Agora vê: no terror, nada é terror, não existe o terror. No entanto o terror o aprisiona. O que é o terror? Ah! Não aceita o terror porque o terror é você! (Prólogo do filme O Estranho Mundo de Zé do Caixão)

 

O fato de Mojica poucas vezes ter sido capaz de articular um discurso próprio para além dessas diatribes parece ter contribuído muito para a sua fama de louco e inconsistente. Mas, além da dificuldade de Mojica de constituir um discurso mais elaborado e melhor contextualizado sobre sua obra – algo que poderia tê-lo auxiliado em sua luta para obter reconhecimento artístico e oportunidades menos indigentes para realizar seus filmes – há que lembrar, também, sua tendência a associar-se a pessoas, empresas e políticos de conduta (no mínimo) duvidosa, envolvendo-se na divulgação de produtos e idéias que apenas reforçaram a impressão de picaretagem e incoerência.

Porém, como já apontara Higushi, talvez o grande complicador do discurso de Mojica tenha sido mesmo a confusão entre o cineasta e seu mais ilustre personagem. De fato, a confusão começou com o próprio Mojica e seu hábito de vestir-se como o personagem, usando sua capa e deixando crescerem enormes unhas em vez de usar modelos postiços. Tal fusão de autor/ator/personagem chegou a atingir níveis absurdos, como se pode verificar em no texto escrito para a Mostra José Mojica Marins – Retrospectiva da Obra, organizada por Eugenio Puppo, em 2007, no qual Mojica “revela” uma de suas aventuras tentando combater sua criatura hedionda:

 

A minha visão pode ajudar os seres deste planeta a banir do nosso convívio um imprestável. Sim, ele é como uma laranja podre que pode contaminar as outras ao seu redor, por isso merece ser odiado como os romanos que levaram Cristo à crucificação; ou como os hipócritas e carrascos que mataram a guerreira Joana d’Arc nas horrendas dores de ser queimada viva. (…) E, agora, com tantas perversões que eu sinto em seu ser, assumo a missão de tirar um monstro perigoso e sanguinário da nossa querida Terra. (…) Ah…! Que bom. Finalmente, a justiça divina. É isso mesmo, o mal se corta pela raiz. Com sua audácia, ele foi castigado, caiu na mão de um bando de marginais. Há… Há… Há… Há…, vai ser capado! Que coisa maravilhosa! É aí que começa a minha recompensa por desmascarar um falso ídolo. Não, não… Isso não pode estar acontecendo… Com sua esperteza, ele conquista os violentos marginais, ajudando no parto do filho do assustador líder dos bandidos. (…) Não há palavra para descrever a sorte desse parasita, que … segue à risca o ditado tão conhecido de que “Deus escreve certo por linhas tortas”. (MOJICA MARINS, A Última Crônica, 2007)

 

No entanto, muito da inconsistência discursiva de Mojica também pode ter uma explicação que lhe é externa: a demanda freqüente para que ele justifique o tema que elegeu e o personagem que criou independentemente do que estes signifiquem no contexto do horror cinematográfico. Neste caso, a própria demanda revela uma visão distorcida, pois a compreensão da obra de Mojica depende, em parte, da aceitação do horror como um gênero com valores e regras próprios que não precisam corresponder às preferências de seus realizadores fora das telas. Se, em sua juventude, Mojica parece ter se apropriado dessas regras e valores específicos do gênero, enxergando-os com olhos livres e conjugando-os com suas experiências pessoais e seu repertório cultural, isso certamente se perdeu à medida em que público, imprensa, cineastas, cinéfilos, pesquisadores e (sobretudo) o próprio Mojica assumiram uma visão freqüentemente deslocada do seu trabalho, tratando sua escolha estética pelo cinema de horror como traço messiânico ou insano. Assim, a despeito de tentativas específicas para recolocar a questão do personagem e dos filmes de Zé do Caixão em sua origem de gênero, o que se viu foi a transformação de uma experiência cinematográfica única, agressiva e inegavelmente representativa da cultura brasileira numa obra ainda hoje considerada, pela maioria dos brasileiros, muito mais significativa pelo seu valor anedótico do que por suas possíveis qualidades cinematográficas e culturais. Mas, se conseguirmos assistir a Á Meia Noite Levarei Sua Alma sem levar em consideração essa visão construída ao longo de décadas, conseguiremos ver um filme ainda longe do esgotamento no que se refere às suas potências estéticas, políticas e culturais.

 

Referências bibliográficas

BARCINSKI, André; FINOTTI, Ivan. Maldito – a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998. 446 p.

CÁNEPA, Laura Loguercio. Medo de quê? – Uma  do Horror nos Filmes Brasileiros. Campinas: Instituto de Artes da Universidade de Estadual de Campinas, 2008. Tese de Doutorado em Multimeios, 499 pp.

FERNANDEZ, Alexandre Agabiti. Entre la demence et la transcendance – José Mojica Marins e o cinema fantástico. Cinemas d’Amerique Latine, Toulouse, n. 10, p. 117-128, 2002.

______. Um arranjo prosaico e extravagante. Dossiê José Mojica Marins. Portal Heco. Disponível em: <http://www.heco.com.br/especiais/06_01.php>. Acesso em: 20 nov. 2007.

FERREIRA, Cid Vale. Depoimento do pesquisador sobre a obra de José Mojica Marins. Transcrição de Laura Canepa. In: Coleção Zé do Caixão. 50 anos do cinema de José Mojica Marins. Direção e produção: Paulo Duarte; Carlos Primati. Jundiaí: Cinemagia, 2002. 6 DVDs (521 min.), vols. I, II, III, IV, V, VI, son/color.

HIGUCHI, Horatio. José Mojica Marins (1963-1993): the madness in his method. Monster! International, Berlim, p. 18-37, out. 1993.

LUCHETTI, Rubens Francisco. Depoimento do escritor e roteirista sobre sua parceria com José Mojica Marins. Transcrição de Laura Canepa. In: Coleção Zé do Caixão. 50 anos do cinema de José Mojica Marins. Direção e produção: Paulo Duarte; Carlos Primati. Jundiaí: Cinemagia, 2002. 6 DVDs (521 min.), vols. I, II, III, IV, V, VI, son/color.

PIEDADE, Lúcio F. dos Reis. A cultura do lixo: horror, sexo e exploração no cinema. 2002. 150 p. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas 2002.

PRIMATI, Carlos. Visão e agonia no cinema de José Mojica Marins. Revista Carcasse. Arte e Cultura Obscura. São Paulo. Disponível em: <http://www.carcasse.com/revista/phenomena/os_olhos/index.php>. Acesso em: 30 set. 2006.

REICHENBACH, Carlos. Depoimento do cineasta sobre À meia noite levarei sua alma, de José Mojica Marins. Transcrição de Laura Canepa. In: Coleção Zé do Caixão. 50 anos do cinema de José Mojica Marins. Direção e produção: Paulo Duarte; Carlos Primati. Jundiaí: Cinemagia, 2002. 1 DVD (81 min.), v. I, son./color.

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[1] O filme teve duas continuações (Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, 1967; Encarnação do Demônio, 2008) e mais cinco obras do próprio Mojica que exploraram, de diferentes maneiras, a figura de Zé do Caixão e de sua relação com seu criador: O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968); Trilogia de Terror (1968); O Despertar da Besta (1970).; Exorcismo Negro (1974); Delírios de um Anormal (1978). Além desses filmes, uma infinidade de outras obras cinematográficas brasileiras realizadas por outros diretores tiveram a participação especial do personagem Zé do Caixão ou apenas do ator José Mojica Marins.

[2] Sobre isso, v. BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 81.

[3] Box de DVDs “Coleção Zé do Caixão: 50 Anos do Cinema de José Mojica Marins” (2002), produzido por Paulo Duarte e Carlos Primati para a editora Cinemagia. Além dos filmes, a coleção inclui entrevistas com amigos, admiradores e estudiosos de Mojica, espalhadas ao longo dos seis volumes da coleção. Tais entrevistas serão citadas como referência neste capítulo da tese, em função de não terem sido publicadas em nenhum veículo impresso ou na Web, mas conterem análises fundamentais sobre o trabalho do diretor.

[4] “Hoje, é impossível saber com exatidão o público do filme, já que as empresas distribuidoras não guardaram os borderôs, e 70% dos cinemas … não existem mais. É possível, no entanto, fazer um cálculo aproximado (…) Um dos chefes da fiscalização do filme, Virgilio Roveda, garante que ESTA NOITE foi exibido em 186 cinemas no estado de São Paulo, para um público de 1,5 milhão de espectadores. Dados do INC mostram que São Paulo representava entre 25% e 30% do total de público do país. Sabendo que o filme de Mojica foi um sucesso em todo o país, lotando salas em Vacaria (RS) e Manaus (AM), pode-se calcular – de forma aproximada… – que ESTA NOITE… foi assistido por um público de 5 a 6 milhões de brasileiros”. (BARCINSKI; FINOTTI, 1998, p. 117.

[5] É curioso que a primeira tese de doutorado relevante sobre o cinema de Mojica tenha sido defendida fora do Brasil.

[6] Termo mais usado, popularmente, no Brasil, para identificar filmes do gênero horror.

[7] O termo significa, literalmente, “furado com chifre”, e identifica filmes que privilegiam a violência extrema e dirigida frequentemente à sexualidade. Hershel Gordon Lewis é tido como o pioneiro “comercial” do gore, mas Nakagawa e Mojica Marins trabalharam ideias parecidas exatamente no mesmo período (início dos anos 1960).

 

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* O texto foi originalmente publicado no livro "O Cinema como Itinerário de Formação", organizado por Rogério de Almeida e Marcos Ferreira-Santos. Editora Képos, São Paulo, 2008.

 

 

 

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