A Cidade, de Liliana Sulzbach
A Cidade, de Liliana Sulzbach
A Cidade é um achado. Simples assim. Um curta que, ao ter em mãos um assunto para lá de intrigante, consegue estar à altura dele, ressignificá-lo pelos mecanismos do cinema. Escrever sobre A Cidade já é minar um pouco de seu poder de surpreender, pois parte de sua força vem justamente da revelação das origens da tal cidade.
O filme de Liliana Sulzbach é dividido entre um antes e um depois. Na primeira parte, imagens de um lugar paradisíaco, de beleza natural de encher os olhos. Neste lugar, que estranhamente é povoado por casas de arquitetura antiga, vivem velhos. Apenas velhos. Acompanhamos a rotina: duas senhoras tomam café e falam sobre uma terceira, que não voltará por causa de um problema na mão. Alguns jogam bocha. Outro busca o pão. Um alimenta os animais. E por aí vai: uma rotina de aparente normalidade num lugar com idosos.
Mas quem está atento passa a perceber leves rachaduras na organização daquele mundo. Um diálogo atravessado, um enquadramento priorizando partes específicas dos corpos, um incômodo pela sensação de que não há agentes externos interagindo com aquele mundo. Então, numa cena com diálogos reveladores, o filme tem seu divisor de águas, cresce e diz a que veio.
Ao contar a gênese daquela cidade e o fator que une aqueles moradores, A Cidade deixa de ser um suposto registro sensível da vida na terceira idade para revelar-se como um filme sobre um mundo organizado a partir de um ato de extrema brutalidade. Brutalidade esta que estabelece um contraste com a paisagem – belíssima, calma, com sons de pássaros, ensolarada, com rio.
De filme frio, olhar distante, observador imparcial, o curta reposiciona seu discurso. Um filme de eventos melancólicos narrados (e tornados em imagem) com as mais bonitas palavras.
Nesse jogo de esconder-revelar, olhar-olhar novamente, o principal efeito vem da montagem. Após revelar as origens da cidade dos velhos, o filme devolve parte das imagens que acabamos de ver, mas que agora, por sabermos o assunto que se fala, ganham outro sentido.
Com esse truque, A Cidade propicia muitas inquietações: repetir as imagens nos faz lembrar de algo óbvio, mas fundamental: que a imagem não é neutra e seu sentido depende do olhar que a registra e do outro olhar que a observa no cinema; rebobinar o filme dentro do próprio filme, permitindo ao espectador olhar novamente e refletir se ele está vendo dois filmes dentro de um; rever o sentido de família (pois o que os une é um parentesco mais forte que o sanguíneo); tentar responder como aqueles moradores da cidade encontram momentos de tamanha comunhão quando há um passado de brutalidade.
Pois o diagnóstico que fica em A Cidade não é o de exploração melancólica, mas sim da superação de um passado lânguido. E nunca é demais lembrar a paisagem paradisíaca: é preciso olhar muito bem, com muita atenção, para perceber as raízes invisíveis daquela cidade.
Heitor Augusto
Sessões de A Cidade no Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo
Sábado (25/8), às 20h, no CineSesc
Domingo (26/8), às 15h, no CineOlido
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