HITCH – FASE INGLESA
Chantagem e Confissão
Blackmail, 1929
Chantagem e Confissão é o primeiro filme sonoro de Hitchcock, muito embora ele tenha sido pensado desde o início para ser silencioso. O filme foi feito naquela época nebulosa e conturbada da história do cinema que foi a passagem do mudo para o sonoro, quando produtores e distribuidores ainda estavam inseguros com a nova tecnologia, uma vez que a equipagem das salas não se deu do dia para noite. Como resultado, assim como muitos outros filmes desta época, foi lançado em duas versões: uma silenciosa e uma sonora.
Entretanto, não é difícil notar que, apesar das cenas de diálogos inseridas na versão sonora, Chantagem e Confissão filia-se em sua essência à linhagem dos filmes silenciosos. Gestos enfáticos, maquiagens carregadas e expressões marcadas fazem parte da mise-en-scène. O que dá o tom do filme é justamente a performance física dos atores aliada à maestria dos movimentos organizados na cena. Os diálogos são claramente secundários e estão lá apenas para justificar a insistência do produtor.
Também por ser o primeiro filme sonoro de Hitchcock, Chantagem e Confissão é dos filmes mais lembrados como representante de sua fase inglesa. Seria, porém, injusto com a obra dizer que essa é a razão de sua fama. Afinal, este é sim um belo filme que ecoa o potencial do jovem diretor. Hitchcock ainda filmaria muito depois disso e suas muitas obras-primas invariavelmente ofuscaram filmes notáveis. Recuperá-lo é uma forma de reparar esse equívoco.
Liciane Mamede
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Juno e Paycock
Juno and the Paycock, 1930
Entre os filmes que Hitchcock dirigiu durante aquele complicado período onde a introdução do som obrigou o cinema a simplificar sua decupagem (final dos anos 20, início dos 30), Juno e Paycock é, certamente, o trabalho mais prejudicado. A isto soma-se o fato do roteiro ser uma adaptação de uma popular peça irlandesa, escrita por Sean O´Casey e encenada pela primeira vez em 1924. O resultado é , sem dúvida, um dos menos expressivos da carreira do mestre inglês.
A maior parte do enredo se desenvolve no pequeno apartamento da família, por onde – pelas janelas e portas – entram e saem Juno, a durona matrona; Capitão Boyle, o “Pavão” do título original; o casal de filhos e outros tantos arquétipos irlandeses: beberrões, brigões e (em bom português) estúpidos.
À parte a sequência de abertura e alguns outros poucos momentos, o que Hitchcock faz aqui é a mera transição de um formato (o teatro) a outro (o cinema). A ampla imobilidade de sua câmera privilegia os planos conjuntos, e os closes, sem muita eficiência, são estranhamente escassos. Ficamos assim, como poucas vezes na carreira do cineasta, na dependência de uma trama, e esta aqui, infelizmente, não é a mais contagiante de suas comédias de costumes: durante a Guerra Civil Irlandesa, em Dublin, uma humilde família recebe a notícia de uma herança de um parente distante. Sobem as cortinas e, no final do segundo ato, é revelado o embuste deste aparente golpe de sorte: interessado na filha do casal, um pretendente havia inventado a notícia para se aproximar da família.
À medida que a verdade vem à tona, o humor cede à tragédia, fazendo do que era ao menos um passatempo ligeiro uma frágil tragédia política. Não à toa – com seu texto reconhecido e a subtrama social – Juno e Paycock fora muitíssimo bem recebido em seu lançamento. Entretanto, hoje, é justamente pouco lembrado.
Bruno Cursini
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Assassinato, assim como quase todos os filmes de Hitchcock, é um filme cerebral e analítico, disposto a expor em imagens e trama um certo postulado. No caso deste filme, o cineasta procura dizer que o artista não pode se esquecer de que sua arte, além de usar a vida como matéria prima, pode também criticá-la. Ou seja, devolver ao mundo aquilo que lhe é roubado, oferecendo em contrapartida obras que ampliem consciências.
É por isso que, mais uma vez, todos os elementos de um clássico melodrama estão dispostos no tabuleiro: um triângulo amoroso, um segredo que ameaça os tabus da sociedade, um crime, um engano. Sem prejuízo do potencial emotivo do filme, Hitchcock depura o potencial melodrama até o nível da observação distante (porém não fria), e esse grau de hiper-consciência do filme sobre si mesmo é, de novo, estruturado em torno do personagem do detetive, James, que além de investigar, na sua ambição de reconstituir o crime, na verdade trabalha mais como um diretor, aquele que encena.
Movido por amor, ele se dispõe a contrariar um sistema que com pouca reflexão condenou uma moça por assassinato. Para isso, começa a escrever a reconstituição do crime, convoca amigos atores e termina por escalar em seu elenco o principal suspeito de ser o verdadeiro assassino. Este último, sem saída, se suicida, ou seja, confessa. A moça inocente, antes condenada, encontra a liberdade. Conclusão: o artista, depois de vampirizar a vida para tecer as suas obras, deve depois agradecer ao mundo em forma de obras críticas que potencialmente interfiram nessa mesma vida. E isso só é possível quando se reúnem em um ser qualidades como firmeza, incorruptibilidade e amor.
Fernando Watanabe
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The Skin Game
Idem, 1931
Artista essencialmente visual, Hitchcock se sentiu inegavelmente tolhido com a chegada do cinema sonoro. A submissão à palavra e a crescente busca por fontes literárias ou teatrais nada tinha em comum com sua concepção de cinema, já delineada mesmo em tão curto tempo de carreira. Isso o leva a se sentir bastante desestimulado durante o início da década de 30.
Seu primeiro filme inteiramente sonoro, Juno e Paycock é retrato flagrante dessa limitação e desestímulo. Igualmente adaptação de um texto teatral de autor então consagrado – John Galsworthy, ganhador de um prêmio Nobel – The Skin Game corria sério risco de seguir o mesmo caminho. No entanto, a experiência positiva de Assassinato parece ter levado ao diretor um amadurecimento quanto ao domínio das técnicas a serem aplicadas no cinema sonoro.
Mesmo diante de um texto que se impõe de maneira bastante forte, Hitchcock consegue diversas vezes fugir da concepção então vigente de usar a câmera como uma mera reprodutora da visão de um espectador diante do palco. Com isso cria ao menos uma sequência inesquecível, filmando um leilão que seria um momento essencial para o desenvolvimento da narrativa através do ponto de vista do leiloeiro. O resultado é no mínimo desconcertante, com uma agilidade de movimentos de câmera rara para a época. A trama, que fala da disputa entre duas famílias (uma de burguesia ascendente e outra de nobreza decadente), guarda, em seu desprezo pelas rígidas convenções sociais provincianas, um parentesco com A Mulher do Fazendeiro, tendo, no entanto, a leveza cômica deste substituída por uma abordagem cruel que expõe sem meias palavras a frieza das relações humanas.
Gilberto Silva Jr.
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Ricos e Estranhos
Rich and Strange, 1931
Projeto bastante pessoal de Hitchcock, que propôs a ideia inicial do roteiro, adaptado de uma novela de Dale Collins, Ricos e Estranhos teve grande parte de suas cenas filmadas sem equipamento de som pelos diversos lugares por onde passam os personagens (Marselha, Porto Said). Esse aspecto semi-artesanal, além de nítido no filme, explica também o largo uso de recursos do cinema mudo (a começar pela cena inicial, em que Fred tenta voltar para casa em meio ao caos urbano). O ponto de partida é a mais comum das tramas sobre o amor e a vida conjugal: um casal recebe inesperadamente o adiantamento da herança de uma tia. Eles partem em uma longa viagem de barco rumo ao Oriente. Cegos pela circunstância excepcional do momento, os dois acabam afastados. No final, vem a lição: reunidos novamente, eles redescobrem a importância de sua vida conjugal ordinária.
Se a trama parece banal à primeira vista, o filme é bem menos redondo do que se imagina. Hitchcock impõe um olhar bastante adulto sobre a relação conjugal – “O amor é algo muito difícil, senhor Gordon”, confessa Emily. Para um filme sobre a redescoberta do valor da rotina conjugal, o resultado é pouco romântico. As piadas não raro manifestam um sarcasmo bastante feroz. O caso é que os personagens de Hitchcock nunca são puros, mesmo aqui, neste filme de 1931. É notável, por exemplo, a tensão da cena em que Fred enfim se deixa seduzir pela Princesa: o filme acompanha a cena inteira, do seu nervosismo ao beijá-la pela primeira vez à ansiedade, depois, em se livrar de uma outra personagem para poder, enfim, chegar ao quarto da amante. O filme é sobre aqueles personagens, e é por isso que a trama jamais ganhará contornos arredondados pela moralidade. Mesmo o caminho épico de volta para casa, entre um naufrágio e uma embarcação repleta de chineses, não é suficiente para provocar a redenção completa: ao contrário, ele deixa um gosto estranhamento.
Calac Nogueira
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O Mistério do Número 17
Number Seventeen, 1932
Como na maioria dos filmes de Hitchcock, em O Mistério do Número 17 não é o filme que vai até os personagens, perseguindo-os por suas ações no mundo, mas o contrário, os personagens indo atrás do filme, perseguindo uma cena, instalando-se no jogo, sem saber que, na verdade, não conseguem controlá-lo. Já nos primeiros planos nos damos conta disso: com travellings que declaram a todo momento que são perfeitamente oniscientes, a câmera persegue de costas um homem que adentra cuidadosamente na casa do título. Ele invade um território desconhecido, mas que a câmera, acompanhando-o como uma espiã, parece já conhecer muito bem.
A partir deste momento, estamos dentro da casa e não se sai dela antes de passados dois terços do filme. De maneira quase irreal, os personagens vão aparecendo, saindo das sombras, do teto, de qualquer canto, como se o maior objetivo deles fosse o de se instalar naquele local, não importando tanto seus “papéis”. De onde veio o colar de diamantes que todos procuram? Quais são as relações dentro dos grupos dos bandidos ou dos detetives? Isso tudo fica um pouco confuso, um pouco arbitrário também.
Pode-se dizer que O Mistério do Número 17 é um exercício de articular as peças no tabuleiro – mais tarde, Hitchcock compreenderá melhor essa dinâmica, apostando com mais valentia em uma encenação farsesca e sabendo concluir com uma malandragem mais rasteira e cínica do que simplesmente recuperar um colar de jóias.
João Gabriel Paixão
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Valsas de Viena
Waltzes from Vienna, 1934
Peça obscura na filmografia de Alfred Hitchcock, Valsas de Viena nunca chegou a ser exibido no Brasil, além de ter sido a última das obras do cineasta inglês a sair no formato DVD (e, ainda assim, de forma bem restrita). O próprio Hitchcock fazia questão de aconselhar ao público a ficar longe do filme, anunciando que se tratava do ponto mais baixo de toda sua longa carreira.
Realizado somente para cumprir o contrato com a British International Picture, se está longe de ser a desgraça anunciada, também não desponta como pérola a ser redescoberta por novas gerações. Mesmo que Hitchcock não demonstre estar interessado em momento algum do filme, Valsas de Viena consegue segurar a atenção do espectador com a história de Johann Strauss (Esmond Knight) e a sua busca pela aprovação do Johann Strauss pai (Edmund Gwenn), músico consagrado e arrogante, que não é capaz de reconhecer o talento musical do filho.
Dividido entre o amor da ciumenta Rasi (Jessie Matthews) e os avanços da sua mecenas (e admiradora) Condessa Helga von Stahl (Fay Compton), o jovem Strauss precisa escolher qual rumo tomar: insistir na música e tentar sair da sombra do pai ou casar com Rasi e se contentar em ser um simples padeiro. A trama ingênua e boa parte dos (enfadonhos) números musicais podem ser o motivo para Hitchcock renegar o trabalho, mas junto a isso, o filme traz um humor despretensioso e bem colocado (especialmente na figura do marido ciumento da Condessa). O grande momento é reservado para a sequência na qual Johann Strauss (o filho) apresenta ao público sua obra-prima, O Danúbio Azul, composta meio por acidente enquanto o compositor trabalhava na padaria (outra boa sacada do filme).
Leandro Cesar Caraça
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O Homem Que Sabia Demais
The Man Who Knew Too Much, 1934
É covardia comparar esta versão inglesa de 1934 com a versão americana de 1956. Hitchcock era o tipo de diretor que só aceitava fazer um remake caso tivesse a certeza de que poderia melhorá-lo, e foi o que aconteceu neste caso. Mas esta primeira aventura, embora longe dos melhores momentos do diretor na Inglaterra, não é desprovida de encantos.
Os alpes suíços foram trocados por Marrocos na refilmagem. A filha raptada virou o filho raptado. A mulher participa mais na segunda versão, e a famosa sequência no Royal Albert Hall deste primeiro filme empalidece frente à mesma sequência no segundo, tratada como cinema mudo.
Há, porém, ao menos uma vantagem clara neste longa de 1934: Peter Lorre. Ele tem a classe necessária para criar um vilão político que cause impacto. Na cena em que ele explica para o atirador em que momento da música este teria de dar seu tiro fatal, acreditamos tratar-se do assassino mais elegante e sofisticado do cinema. Mesmo quando lembramos que três anos antes Lorre havia feito um outro assassino, o homem problemático de M – O Vampiro de Dusseldorf.
Sabemos que Fritz Lang é uma das maiores influências de Hitchcock, e que certamente Hitch havia visto a interpretação tocante de Lorre naquele filme. O que destaca ainda mais a coragem do diretor em colocar o mesmo ator como um vilão de inteligência excepcional.
Sérgio Alpendre
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Os 39 Degraus
The 39 Steps, 1935
O apito de um trem que se funde ao grito da camareira num dos momentos iniciais de Os 39 Degraus é muito mais revelador sobre tudo que se seguiria na obra de Alfred Hitchcock do que uma mera fusão de sons e imagens, esta genial por si só, poderia demonstrar. Não é somente Richard Hannay que parte rumo a provas para sua inocência. É toda a carreira de Hitchcock que deslancha acelerada para rumos cada vez mais elevados e imprevisíveis. Poucas vezes na história do cinema um filme tão curto (86 mim.) foi antecipação de toda uma obra que se estenderia por mais de 40 anos. Praticamente todos os elementos, sejam temáticos, sejam de estilo, já estavam, de alguma maneira, esboçados em Os 39 Degraus. E todos esses elementos podem ser sintetizados na figura do trem. Esse veículo em movimentação constante, onipresente em quase todos os filmes de Hitch, mesmo quando substituído por similares – carros, ônibus, aviões – pode ser o símbolo para a inquietude de um gênio sempre propenso a explorar novos caminhos sem que houvesse limites.
Da mesma forma, podemos pensar no ritmo acelerado como uma característica essencialmente intrínseca a Os 39 Degraus. O filme se desenvolve numa sucessão de sequências climáticas, com uma presença mínima de momentos de ligação ou explicação entre elas, como se o roteiro tivesse sido enxugado de tal forma a preservar somente as partes mais interessantes. Com esse dispositivo ousado, que manda às favas qualquer noção de lógica e verossimilhança, Hitchcock prende o público com as mesmas algemas que unem Robert Donat e Madeleine Carroll.
Gilberto Silva Jr.
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Agente Secreto
Secret Agent, 1936
Um famoso escritor inglês (John Gielgud) acaba recrutado pelo serviço secreto britânico para trabalhar como espião. Após um falso funeral arranjado em que colocou um ponto final em sua antiga vida, ele agora assume identidade de Richard Ashenden. Sua missão será encontrar um agente alemão em Viena e eliminá-lo antes que este parta de trem para a Turquia. Para ajudá-lo, terá a companhia dos agentes aliados Elsa Carrington (Madeleine Carroll) – que se passará por sua esposa – e o General (Peter Lorre), um assassino profissional tão galanteador com as mulheres quanto implacável ao exercer seu peculiar ofício. Posicionado em Viena, o trio precisa localizar o alvo antes de despachá-lo, mas uma peça pregada pelo destino pode colocar os agentes na direção errada.
Se Agente Secreto não se coloca no mesmo nível das melhores produções feitas por Hitchcock na época, é por causa de seu ritmo inconstante e do roteiro, que pretende unir suspense, comédia e romance na mesma medida. Mesmo que o cineasta ainda não fosse o mestre que ele se tornaria mais tarde, esses três elementos conseguem bons resultados quando apresentados separadamente. O humor se faz presente na figura do General (“um mexicano cabeludo”), uma solução encontrada para Peter Lorre, na época ainda com dificuldades em falar inglês sem sotaque. O ator austro-húngaro se esbalda com personagem histriônico e perverso, que não se furta de rir quando descobre ter matado a pessoa errada, um pobre inocente.
Com Hitchcock fazendo bom uso do som, Agente Secreto atinge seus pontos altos nas sequências do assassinato nos Alpes (com o cachorro uivando ao sentir seu dono em perigo) e perto do final, com o descarrilamento do trem após um ataque aéreo.
Leandro Cesar Caraça
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O Marido Era o Culpado / Sabotagem
Sabotage, 1936
O título brasileiro original de Sabotage entrega ao espectador a identidade do vilão do filme, antes mesmo que Alfred Hitchcock tenha oportunidade de fazê-lo – o que acontece logo nos primeiros minutos. Karl Verloc (Oskar Homolka) é membro de uma organização criminosa que pratica atentados terroristas em Londres. Os motivos reais nunca são explicados no filme, embora possamos ter uma ideia a partir do livro de Joseph Conrad (que serviu de base para os roteiristas), no qual os sabotadores são espiões alemães infiltrados. Como parte do disfarce, Verloc gerencia um pequeno cinema ao lado da esposa Sylvia (Sylvia Sidney) e do irmão dela, o jovem Stevie (Desmond Tester). Ambos desconhecem as atividades secretas do sabotador. Investigando o caso está o Sargento Ted Spencer (John Loder), da Scotland Yard, que trabalha disfarçado como verdureiro próximo ao cinema de Verloc.
Alfred Hitchcock dizia que não gostava de filmes que escondiam a identidade do assassino até o último momento, e preferia jogar com o público, compartilhando com este a informação que os protagonistas desconhecem. A traquinagem do cineasta chega às raias do sadismo quando Verloc pede a um personagem que faça uma entrega para ele, sem é claro, informar que existe uma bomba-relógio dentro do pacote. Repleto de tinturas expressionistas e momentos marcantes, como na citada sequência da bomba no pacote ou quando a cidade parece derreter diante do olhar de Verloc, O Marido Era o Culpado se apresenta como um dos grandes filmes de Alfred Hitchcock realizados na década de 1930. Coisa que nem mesmo o seu forçado final feliz consegue atrapalhar.
Leandro Cesar Caraça
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Jovem e Inocente
Young and Innocent, 1937
Gaivotas voando numa câmera lenta estranha, captadas de perto, anunciam aos berros um assassinato e um falso culpado. Hitchcock mesmo já havia anunciado, na sequência anterior, o verdadeiro culpado. Estão estabelecidas, no início do filme, a cumplicidade e a relação de sadismo com o espectador. Este será cúmplice do jovem injustamente perseguido, ao mesmo tempo que sentirá parte da tensão que perpassa a trama e os caminhos do protagonista. Hitchcock, esse doutor maluco, se encarrega de manipular os sentimentos do espectador exigindo dele apenas duas coisas: paciência e devoção. O bem-aventurado capaz de lhe dedicar esse pequenino esforço será recompensado com uma busca emocionante por um homem que pisca; mas também com um dueto desequilibrado – mas genial – entre um mocinho com rosto de menino e uma loira com pose de mulher fatal, e por um dos movimentos de câmera mais marcantes do cinema: o travelling que atravessa o salão para revelar o rosto do assassino disfarçado de baterista negro, e nesse rosto o tique nervoso que tornaria seu crime imperfeito.
Jovem e Inocente ainda oferece o humor hitchcockiano em sua plenitude, especialmente quando o assassino percebe que a polícia está por perto e começa a desandar o andamento do suingue.
Este filme belo e tortuoso, que contém algumas metáforas visuais interessantes sobre o ato sexual, é, a meu ver, o melhor Hitchcock feito na Inglaterra (com Os 39 Degraus logo atrás), o que melhor mistura os ingredientes que fariam dele um dos maiores diretores de cinema nos EUA.
Sérgio Alpendre
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A Dama Oculta
The Lady Vanishes, 1938
Penúltimo filme da fase inglesa de Hitchcock, A Dama Oculta é um dos filmes mais bem humorados do cineasta, com uma galeria bastante rica de tipos e diálogos extremamente irônicos.
O filme se desenvolve basicamente em dois espaços: num hotel, ao lado de uma estação numa aldeia nas montanhas austríacas, no qual diversas pessoas esperam para embarcar, visto que uma avalanche interrompeu o fluxo de trens, e depois no próprio trem.
A intriga se relaciona ao desaparecimento de uma velha senhora durante a viagem de trem e ao esforço de uma jovem para entender o motivo do sumiço da inofensiva velhinha, tentando encontrá-la, ainda que todos no trem a contradigam, dizendo, de maneira bastante suspeita, que a tal velhinha jamais esteve entre eles.
Hitchcock desenvolve neste filme algo que já aparece nos seus primeiros filmes e será a tônica de sua fase mais madura: a ideia de uma realidade dupla e a tentativa de, a partir desta ambiguidade, encontrar uma verdade e um sentido. A solução deste enigma, como sempre, cabe a uma personagem que, por força das circunstâncias, está incapacitada para agir na plenitude de suas funções. Neste caso, diferente da perna quebrada de Janela Indiscreta e da vertigem de Um Corpo que Cai, a personagem, atingida na cabeça por um vaso, não sabe se aquilo que viu e vivenciou é verdade ou fruto de sua desorientação.
Neste contexto, que inspirou ensaios filosóficos fundamentais como o do francês Clèment Rosset sobre a questão da identidade pessoal e social, Hitchcock constrói um filme saboroso; primoroso, como sempre, do ponto de vista técnico, com soluções visuais criativas, vide a vertigem da personagem, a inscrição na janela do trem, entre outras inúmeras cenas; além de misturar com maestria romance, suspense e humor.
Para muitos um filme menor do diretor, mas ainda que o seja, dada a grandiosidade da obra, não deixa de ser, além de um filme laboratório para o desenvolvimento de ideias futuras bastante interessantes, um filme muito divertido.
Cezar Zamberlan
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A Estalagem Maldita
Jamaica Inn, 1939
O que se poderia esperar da dupla formada pelo diretor inglês Alfred Hitchcock e o lendário produtor alemão da Decla Bioscop, Erich Pommer, num sombrio filme de piratas? Certamente algo melhor do que o (no mínimo) irregular Estalagem Maldita. Último longa de Hitchcock filmado em seu país natal, o filme foi também sua primeira adaptação de uma obra da escritora inglesa Daphne du Marier, que teria seu romance Rebecca adaptado por ele no ano seguinte, nos EUA, num dos melhores filmes de sua parceria com o produtor David O. Selzink.
A Estalagem Maldita conta a história de uma jovem voluntariosa (interpretada por Maureen O’Hara, estreando no cinema) que, após a morte da mãe, muda-se para o litoral da Inglaterra com a intenção de viver com familiares na estalagem Jamaica Inn. Lá chegando, porém, ela logo descobre que sua tia está casada com um pirata terrestre, que, junto com um bando de malfeitores, atrai embarcações para uma região perigosa e, lá, provoca naufrágios, rouba e mata covardemente as tripulações. E isso não é tudo: a jovem também se vê compelida ajudar um dos bandidos, que logo se revela um policial infiltrado (Robert Newton, já então longe de ser um galã), e ambos precisam se ver livres do perigoso chefe da quadrilha, o juiz Humphey Pengallan (interpretado Charles Laughton).
A história é contata de maneira apressada em uma hora e meia de filme, e para isso acaba trazendo personagens caricatos e um excesso de diálogos explicativos. Consta que a produção também sofreu com a interferência de Laughton, que criara, com Erick Pommer, a sua produtora Mayflower, em 1937, como uma espécie de veiculo para seu próprio brilho. Também a precariedade visível de alguns cenários parece ter limitado as soluções para o diretor, que se sai bem especialmente nas cenas dos naufrágios.
Laura Cánepa
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