Ano VII

Febre do Rato (Texto 2)

quarta-feira jul 4, 2012

 

Febre do Rato (2011), de Claudio Assis

Em tempos de imagens, histórias, ideias e corpos tão estandartizados, em tempo de filmes tão conservadores, moralistas e desideologizados, um novo filme de Cláudio Assis é sempre um grito contra a mesmice e caretice que impera no cinema brasileiro. E este grito, ainda que a plenos pulmões de Assis, soa neste Febre do Rato mais melódico, mais bem arranjado e orgânico no seu todo, no entanto, tal orquestração não atrapalha, inibe ou engessa a liberdade criativa do diretor e seu ardor.

Febre talvez seja o filme mais pessoal de Assis. Se nos dois anteriores, Amarelo Manga e Baixio das Bestas, este lidava com personagens com os quais nutria uma tímida compaixão ou no outro extremo um distanciado desprezo; em Febre fica claro o amor do diretor pelos seus personagens, sobretudo, pelo poeta Zizo, alguém que como Assis grita, a todos pulmões, ainda que por causa disso possa ser taxado de publicitário. Amor também por personagens que vivem numa outra Recife, à margem do sistema, no ponto cego dele. Personagens que como ratos, estão ali, presentes, vivendo nas sombras e nas frestas do sistema, sem serem percebidos e incomodados, desde que não se façam perceber ou incomodar.

Difícil não relacionar Cláudio Assis com tais personagens e não só ele, mas pensar que ali, de certa forma, há todo um retrato geracional, retrato de um grupo de artistas, de uma cena cultura vibrante que diretamente ou indiretamente bebia da música e ciência, como diz o filme, de Chico Science e da poesia de Josué de Castro, citado também no filme, e de Renato Carneiro Campos, citado em Amarelo Manga, entre outros que gritam por outra ordem, e pela desordem que dê vazão à alegria, ao desejo e ao viver não calculado, mas vivido.

Poucos cineastas no Brasil, Assis, Navarro – Febre remete a Superoutro -, Tonacci, Carlão; poucos conseguem levar para o cinema essa experiência que contém aquilo que pode ser chamado de uma verdade essencial, da experiência de vida e do processo de viver e filmar aquilo que se viveu. Colocar a verdade na tela, sem que esta se deixe contaminar a ponto de se esvair inteira do fotograma pela fabricação de uma imagem pré-concebida no roteiro, na luz, na direção de arte, sem estar esta carregada das verdades do sangue, do suor e do cheiro do corpo humano.

Ainda que o personagem principal do filme seja o poeta, numa interpretação fantástica de Irandhir Santos, esta expressão da verdade está ainda mais concentrada em Pazinha, e no olhar perdido e vago que Matheus Nachtergaele empresta ao personagem.  Olhar que aparece na cena em que Zizo lê para Pazinha no cemitério e esse busca com o olhar para dentro o lugar onde está Zizo e não encontra, mas busca. E em outro momento, sublime, o mais bonito de um filme cheio destes momentos, no qual Zizo pede colo a Pazinha e este diz que vai ao bar da galega. Neste momento, o olhar de Pazinho orbita em outro mundo, a câmera gira entre eles, mostrando toda a fraqueza daqueles dois poetas, um que grita e o outro que cala – no final do filme, sem Zizo, Pazinha quer se transformar em poeta também. Na sequência seguinte, no bar da galega, personagem, câmera, música e a montagem do filme dialogam de maneira intensa até para contrapor a humanidade frágil de Pazinha a de Vanessa, dialogando com as belíssimas elipses em flashback dos dois discutindo a relação com o texto montado a partir de outras crises anteriores.

Acerta, como sempre, Inácio Araújo quando diz que Febre é um filme sobre o amor, e amor não só do poeta, desmontando por Eneida, mas também de Pazinha e Vanessa, um casal do caralho como diz o poeta, e também amor que mantém aquela relação inebriada de todos os personagens que deliram com o poeta: a mãe, a velha, a vizinha, Boca e sua turma, além dos anônimos que por ali também gravitam.

Fica a questão se realmente não há mais espaço para a poesia neste mundo tão árido. No country for old man diriam os Coen? Se toda esta poesia transgressora precisa mesmo ser jogada no fundo de rios poluídos? E se, ser rato não é a solução ou a saída possível para este mundo beco?  Ainda que Eneidas receosas nem sempre vejam nestas questões, e quiçá apenas num primeiro momento como a personagem do filme, o que existe em Febre do Rato é uma verdade que vai muito além da quimera publicitária.

Cesar Zamberlan

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Texto de Leandro Cesar Caraça sobre Febre do Rato

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