La Maison des Bois (1971)
La Maison des Bois
1971
Pialat disse em entrevistas que prefere La Maison des Bois entre todos os filmes que realizou. Não é difícil entender por quê. São seis horas filmadas em 16mm para a ORTF, televisão pública francesa, e exibida em sete partes de 50 minutos aproximadamente. O universo pialatiano é delineado com calma, abrindo espaço para novos personagens e para se entender a França rural durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). São tantos personagens, aliás, que demoramos para perceber quem é parente de quem, quem protagoniza, quem é secundário, o que no fundo não importa. Somos jogados no campo para vermos pedaços de histórias encantadoras, tendo que montar em nossas cabeças as personalidades que nos são apresentadas.
Começa como uma pintura impressionista: um soldado volta para casa ao som da música de Maurice Ravel (músico chamado de impressionista, por sinal). Logo somos apresentados ao professor (personagem que não aparece em todos os episódios, e é vivido pelo próprio Pialat) e a seus alunos, dos quais três acompanharemos com mais proximidade: os meninos Hervé, Michel e Bébert. A pedagogia pialatiana nessa primeira cena na pequena sala de aula é clara: é preciso entender a história da França, o porquê das cores na bandeira, o que representam, a importância do país. Conforme escreveu Mathieu Darras no dossiê que a Positif dedicou ao diretor em 2004, La Maison des Bois "oferece a chance única de visitar os lugares de memória que fundam a pátria: a igreja, e escola republicana, o café da aldeia, o marquês e seu castelo, o exército em guerra, etc. Esse mergulho no coração das mentalidades da época é apaixonante". O tempo da minissérie permite a Pialat deter-se nas pequenas coisas do cotidiano – as brigas pueris de adolescentes que vão para a guerra; as crianças se envolvendo nas pequenas aventuras do cotidiano, tomando banho de balde, brincando de guerra ou de imitar animais; Hervé dançando com um soldado veterano, mulheres se divertindo no campo, uma família matando tempo em um piquenique – como também permite a atenção aos momentos marcantes, como a despedida dos que vão para a guerra, o trem se afastando aos poucos, familiares acenando suas mãos. Não há hierarquia entre esses momentos triviais e os marcantes. Tudo nos é apresentado com interesse, para observarmos da mesma forma.
O uso do zoom, entre o indeciso e o cirúrgico – e bem mais presente do que nos outros filmes de Pialat -, lembra bastante o trabalho histórico de Rossellini (de Era Noite em Roma, de 1960, em diante), da mesma maneira que a agonia da mulher doente de La Gueule Ouverte lembraria, pela forte respiração que é acentuada pelo áudio, a agonia do filósofo em Blaise Pascal, filmado por Rossellini em 1972 (não é bem novidade a ligação Pialat-Rossellini). O uso do zoom atinge o sublime, em La Maison des Bois, num plano formidável que capta a chegada do marquês à casa de Albert, personagem adorável que na noite anterior havia recebido bala de chumbo no traseiro por tentar roubar parte dos mantimentos que devia proteger. A recepção é feita fora da casa por Jeanne, esposa de Albert. A câmera acompanha o marquês em sua caminhada em direção à entrada da casa, recua perto da porta, como se fosse impedida de entrar por alguma instância, move-se rapidamente para a direita em direção a uma janela, para possibilitar um zoom que enquadra o interior do quarto onde está Albert. Impedidos de entrar na casa nesse momento, observamos a conversa do lado de fora. Tudo isso em um único plano (rosselliniano pelo uso do zoom, mizoguchiano pela câmera persecutória). O espaço é descortinado pela olhar de Pialat (e pelo nosso) como um dos aposentos da antiguidade em Atos dos Apóstolos, um dos grandes do Rossellini televisivo. Na saída do marquês, a câmera faz o caminho inverso, persegue o marquês até sua saída à cavalo, após ter conversado com dois oficiais que guardavam a casa do então culpado (e inocentado pela lábia do marquês). O corte só acontece quando o marquês se retira de cena. A conversa entre Albert e essa figura nobre é merecedora de um plano com três minutos de precisão e rapidez nos movimentos e no zoom. É certo que Pialat não tem a mesma preocupação com o plano que o diretor italiano mostrava em seus trabalhos históricos para a televisão. Seus enquadramentos são mais livres, propositadamente imprecisos. Mas há muito em comum com o estilo do mestre italiano. Rossellini usava o zoom como uma maneira de acompanhar de perto a ação sem utilizar o corte., e é precisamente o que Pialat faz nesse plano com Albert e o marquês, e em outros momentos da minissérie. Só o faz de maneira mais parcimoniosa, e raramente chamando a atenção para o demorar de um corte ou para a aproximação do zoom. O trabalho com as teleobjetivas, por sinal, reforça o impressionismo, já que elementos do fundo do quadro quase se misturam em muitos planos, ficando sem contornos bem definidos.
Num filme de seis horas como esse, dirigido por um cineasta singular como Pialat, momentos de gênio obviamente se acumulam. E é curioso notar como mesmo dentro de um registro econômico, com secura de meios e ausência de música nos momentos mais emocionantes, uma cena como a da chegada da notícia da morte de Marcel para sua mãe, Jeanne, seja de cortar o coração, fazendo com que o capítulo se encerre de maneira diferente, com uma cartela negra e a indicação "fim do episódio" no lugar da habitual paisagem impressionista. Luto.
O plano final do quarto episódio é igualmente primoroso. Um soldado solitário vela o corpo morto de um piloto. O zoom é lento, faz com que nos aproximemos aos poucos, sob a música melancólica de Ravel: um homem de pé, um avião batido, um corpo estendido sobre o avião. Com o fechar do plano, a câmera detém-se no soldado que vela. Ele não sabe muito bem o que fazer ali, mas deve esperar. O olhar de Pialat observa a morte com interesse, mas fica com os vivos.
Sérgio Alpendre
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