Ano VII

7ª CineOP – Noite de Abertura – Pra Frente, Brasil e O Assalto ao Trem Pagador

sexta-feira jun 22, 2012

7ª CineOP – Noite de Abertura – Pra Frente, Brasil e O Assalto ao Trem Pagador

São dois momentos distintos. O primeiro surge no contexto de preocupação social. O segundo é um filme de urgência, cujo maior mérito é simplesmente ter sido feito e exibido.

Cinquenta anos nos separam de Assalto ao Trem Pagador, o terceiro longa-metragem de Roberto Farias, e 30 anos de Pra Frente, Brasil, o penúltimo filme do cineasta, que abriu ontem a 7ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Assalto sobrevive muito melhor ao tempo e é um exercício prazeroso redescobri-lo. É mais cinema, tem mais escolhas precisas na narrativa, mais coeso. Suas cenas relutam a largar a memória.

O argumento é sagaz. Em vez tornar o assalto o centro do filme, o roubo mirabolante ao trem pagador do título abre espaço para um enredo com comentários firmes sobre os porquês de um crime. Mais a fundo, Assalto ao Trem Pagador é uma lente de aumento nas relações raciais do Brasil. Tanto que na cena mais impactante do filme, Grilo Peru, o engenheiro do roubo, deixa claro para o espectador que, por aqui, ter dinheiro nem sempre é suficiente para se livrar de um estigma racial.

O começo do longa é inspiradíssimo. Uma demonstração do domínio de Roberto Farias sobre o cinema clássico. A panorâmica da estrada de ferro é alternada com planos-detalhe e travellings que descrevem a arquitetura do roubo (o trilho deslocado, a banana de dinamite, a carteira jogada, as garrafas de uísque importado, maço de cigarro). Esses planos são banhados por uma música misteriosa e enigmática de Remo Usai.

Os primeiros planos do filme não só criam um clima de tensão e o colocam o espectador nesse estado, mas apresentam, com mecanismos puramente cinematográficos, elementos fundamentais para o restante do roteiro: é justamente pelos objetos sofisticados espalhados pela estrada de ferro que os ladrões – todos vindos da favela, exceto Grilo Peru (Reginaldo Faria) – vão ludibriar a polícia por um bom tempo, fazendo-a pensar que se trata de uma quadrilha internacional. São planos e momentos que evocam na memória um ótimo filme de bang-bang, Matar ou Correr (1952).

Depois dessa abertura magnetizante, ora temos um filme policial, ora um melodrama social – ambos os registros se equilibram muito bem. É hora de os atores que interpretam os assaltantes se destacarem. Lembramos, com justiça, de Reginaldo Faria, que é do time dos grandes. Mas disso já sabemos, o restante de sua carreira provou o que ele pode como ator (como esquecer de Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia?).

Mas agora, cinquenta anos depois, nas homenagens e projeções possibilitadas pela CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, é preciso lembrar também que o filme traz Grande Othelo em mais uma performance inspirada como cachaceiro que, ao contrário de seus colegas de bando, olha tudo aquilo com um certo distanciamento irracional. É urgente recuperar também o que Eliezer Gomes faz na pele de Tião Medonho.

Um pouco do impacto de vê-lo em cena vem também da escolha acertadíssima de casting – colocar um ator grande, forte, com olhar marcante que esconde uma docilidade no personagem mais violento do filme. Existe, porém, algo na presença dele em cena que faz crer que somente ele poderia ter sido Tião. Talvez a cena em que, já depois do assalto, ele tenta repreender o irmão bêbado e irresponsável, indo da raiva à rendição ao afeto, mostre o que ele podia fazer.

Vale relembrar também como Assalto ao Trem Pagador cresce a partir da sua cena mais famosa, a que Grilo Peru, o engenheiro do assalto, é desmascarado pelo bando de ladrões. É nela que se tem um encontro feliz entre o embate de dois grandes atores (Reginaldo e Eliezer), a decupagem precisa e os diálogos. É um pouco extenso, mas merece ser citado integralmente:

“Não pensa que eu não vou pedir pra me matar não, Tão. Mas daqui a pouco tá todo mundo morto, na cadeia. Já preparei cama de vocês. E a polícia não é besta. Não nasci pra viver em favela não, Tião. Vocês vão me matar é por isso, não é porque eu comprei carro e desrespeitei o pacto não: é porque eu tenho cara de ter carro. Você tem inveja de minha inteligência… do meu cabelo loiro… do meu olho azul! Você pensava que dinheiro ia fazer você ficar bonito. Como você queria ter mulheres como as minhas, Tião? Você é feio. Fedorento. Não, Tião, seu destino é viver na favela, o seu e o de sua família, e dinheiro não vai tirar você de lá não, Tião. Você tem dinheiro e não pode gastar, Tião. Sua inveja está é aí. Eu tenho cara de ter carro. Tenho o olho azul. Você tem cara de macaco.”

Essa cena, que se tem um ponto de corte violentíssimo (“Vamos jogar ele dentro de um rio, pros peixes comerem os olhos azuis dele”), permanece como uma das melhores que o nosso cinema já vez.

A denúncia em Pra Frente, Brasil: 30 anos depois

O pôster original de Pra Frente, Brasil (1982) não poderia ter sido mais autoexplicativo: uma foto de Jofre, o protagonista, um pacato burocrata de classe média baixa, de cabeça para baixo e olhos arregalados. A gravata, antes um símbolo de respeito, na foto é quase um objeto de enforcamento.

Corajoso à sua época, o filme fala justamente de uma situação política em que tudo estava de cabeça para baixo. Início da década de 1970. Ditadura barra pesada de Médici. Tortura. Repressão que varreu quem estava pelo caminho (ou nas beiradas). E Jofre (Reginaldo Faria), acusado de ter relações com um militante, foi preso, torturado e assassinado. Morreu sem entender muito bem o porquê.

No argumento eu vejo muito de A Metamorfose, de Kafka, nesse roubo do empoderamento de Jofre sobre sua própria vida e o entorno. Ele deixa de ser sujeito e, sem entender as razões, torna-se objeto, o que fica explícito na cena em que ele, já sob tortura, mira a câmera e balbucia algumas palavras sem ter a menor ideia do tamanho do que se passava.

Reginaldo Faria, não só ator mas também coautor do argumento, acha que minha leitura é exagerada. “Não chegamos a tanto. Kafka nem foi lembrado. O personagem Jofre foi forçado a perder a sua soberania apanhando até a morte; os torturadores do personagem de Kafka não agiam fisicamente, eram o seu alter ego”, me disse.

Com ou sem Kafka (mesmo porque a permanência dos filmes depende das leituras e apropriações, sejam elas esperadas ou não pelos seus criadores), Pra Frente, Brasil tem sua grande força aí, na tomada de consciência dos personagens coadjuvantes (a família de Jofre que descobre que a tortura existe no Brasil, com destaque para o irmão, vivido por Antônio Fagundes).

Um bocado também do que o filme tem para oferecer é o fato de seu pioneirismo em abordar, ainda num período de tenra transição do regime ditatorial para um rascunho de democracia, a tortura dos tempos de Médici, construindo uma narrativa alternada entre o Brasil “real” (autoritário, abusivo e milico) e o “imaginário” (feliz, unido numa só voz, regozijante pelo tricampeonato da Seleção Brasileira em 1970).

Mas ao contrário de Assalto ao Trem Pagador, Pra Frente, Brasil não dá a mesma sensação de escolhas narrativas certas em praticamente todo o filme. Se é feliz no enredo de aprendizado dos personagens de uma situação que lhes foge do controle (e o aprendizado é compartilhado pelo espectador que descobre a real importância de personagens aparentemente coadjuvantes), é irregular demais no elenco.

As aparições de Natália do Vale como a mulher de Jofre estão sempre fora do tom, chatas, difíceis de acreditar. O mesmo com Elizabeth Savala, um arremedo de militante, dividida entre o amor e a luta.

Ao contrário de Assalto ao Trem Pagador ou também Cidade Ameaçada e Selva Trágica, o que ainda encanta na redescoberta de Pra Frente, Brasil é pensar como esse filme conseguiu não só ser produzido, mas estrear sem cortes no cinema numa época ainda com o ranço da censura. Mas, para mim, ele não desperta o mesmo encanto que os primeiros filmes de Roberto Farias.

Heitor Augusto

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