Primeiros passos
MAURICE PIALAT: PRIMEIROS PASSOS
Sempre que somos expostos ao período de formação de um artista cuja obra posterior nos é familiar, é improvável escaparmos de buscar ali (em seu início) os elementos que, futuramente, irão caracterizar o realizador em questão. No caso de Maurice Pialat, tal investida surge particularmente incerta.
Nascido em 1925 (portanto, mais velho do que, por exemplo, a maioria dos cineastas da Nouvelle Vague), inicia sua carreira, em longa-metragem, apenas em 1968, com Infância Nua. Depois disso, dá continuidade ao seu trabalho numa propagada – porém pouco conhecida – ocupação nas artes plásticas, algumas atuações em peças, sobretudo amadoras, e uma considerável produção de curtas-metragens, indo de convencionais trabalhos de encomenda para a televisão a curiosas experimentações com a linguagem e gêneros.
Não ignorando a importância da pintura em sua biografia – e, consequentemente, em seu trabalho –, é em seus primeiros filmes (em todos aqueles que conseguimos obter) que iremos nos deter, buscando jogar um pouco de luz nestes primeiros passos de um artista que irá conseguir atingir a plenitude de suas intenções e criar uma filmografia de coerência e força inestimáveis. E se no percurso conseguirmos esbarrar naquela que seria a gênese deste legítimo mestre de sua arte, muito bem. Se não for o caso, teremos ao menos conhecido um pouco mais de Pialat, ou seja, do próprio cinema.
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Isabelle aux Dombes (1951). 8 min
Podendo servir como um exemplo de tudo aquilo pelo qual o cinema de Pialat não seria reconhecido, Isabelle aux Dombes é uma parábola sobrenatural sobre a morte. Um homem civilizado e violento chega ao campo ao encontro de uma mulher; um intruso na natureza, em um universo desconhecido.
Segue-se uma sucessão de imagens perturbadoras, abstratas, das quais a mais memorável é aquela de moscas – paradas e sobrevoando – nos olhos impassíveis de um cavalo. Um trabalho enigmático, ainda mais obscuro pela ausência absoluta da banda-sonora.
Em seu primeiro curta-metragem, o diretor francês compôs quadros inusitados, recorrendo a uma primitiva e escura fotografia, que busca distorcer a imagem (ora em negativo, ora através de reflexos), com uma câmera móvel, trêmula, ainda mais delirantemente evocativa pelos cortes súbitos e inesperados.
É o ponto de partida de Pialat. Não estaria fora de lugar, fosse o de Carl Theodor Dreyer, cuja relação com os atores não é mais lendária do que a do próprio cineasta francês.
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Congrès Eucharistique Diocésain (1953). 8 min
Interessante como neste documentário, que poderia ser um simples registro sobre a celebração do Congresso Eucarístico Diocesano, Pialat consegue dar continuidade aos temas e à abordagem de seu filme anterior.
Vemos, no início e no final, como naquele, um carro que vem e parte. Antes, no entanto, a imagem que hoje podemos chamar de tarkovskiana, de um sino badalando. Se Pialat, assumidamente, reviu quatro vezes O Sacrifício, durante a produção de Sob o Sol de Satã, encontramos um improvável e fugaz diálogo involuntário entre ambos.
Também o som faz-se ausente, deixando-nos com as imagens campestres de animais, água, ovelhas, crucifixo, velhos e crianças. Durante a cerimônia, no entanto, o ritmo desacelera-se, e temos um registro que lembra-nos um momento que precede as vanguardas do cinema: se a relevância de Louis Lumière sempre fora declarada por Pialat, podemos dizer que está aqui a primeira manifestação em sua obra.
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Drôles de Bobines (1957). 17 min
Algo importante que estes trabalhos de formação revelam é, se não o que chamaríamos de cinefilia, ao menos um inegável conhecimento da história do cinema; fato que, pelo cineasta construir uma carreira tão própria, não é revelado de imediato em seus filmes posteriores. Este é, por exemplo, muito claramente um exercício em cima da comédia do cinema mudo, contando com a primeira atuação de Pialat dirigido por ele mesmo (de gravata postiça, fraque e tudo).
Recorrendo à trilha-sonora e intertítulo típicos, Drôles de Bobines é composto por gags e pequenas trucagens, protagonizadas por toda sorte de clichés do gênero: velhas, padres, policiais, burgueses… Todos num interminável corre-corre pelas ruas da cidade, constituindo, assim, esta agradável comédia de perseguição.
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L´Ombre Familière (1958). 24 min
Logo nos primeiros segundos, uma ligação telefônica comunica o suicídio de Alexandre: um homem que veio para alterar profundamente a vida deste jovem casal (Por que exatamente? Em que medida? Não saberemos). Narrado pela mulher, em um tom de mistério e assombração, a qual vemos, claramente, lendo uma edição dos Cahiers du Cinema, com Alfred Hitchcock na capa.
Seu marido é um homem de quem sabemos pouco (como, aliás, de todos os personagens), mas as informações que recebemos são fundamentais: um pintor – também envolvido com o teatro – que passou a vislumbrar uma carreira no cinema.
Juntos, vão a uma casa afastada, ao lado de uma construção abandonada, na qual ele decide rodar um filme, particularmente intrigado por uma enorme piscina vazia. Contrariando a mulher, ele decide chamar Alexandre; e esta será a última vez que eles o verão.
Novamente sem a utilização do som direto, Pialat recorre a uma intrincada paisagem sonora para criar um clima hipnótico, cuja tensão sexual sublimada servirá de base para este conto sobre o próprio fazer artístico, invariavelmente envolto a reflexos, a estilhaços, a traumas e a anseios.
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L´Amour Existe (1960). 19 min
Usualmente incontido em suas entrevistas, Pialat já tachou este filme de vulgar e ingênuo, condenando-o, particularmente, por sua narração que, em suas palavras, “é absolutamente insuportável”. De fato, há, em L´Amour Existe, um tom exageradamente pessimista, como se fosse uma verdade absoluta que, há pouco, Paris conseguia brindar seus moradores com uma vida plena.
No entanto, talvez o que incomodava mais o cineasta era a exposição algo didática daquelas que, de fato, parecem ter sido suas convicções, pois estas casas e pessoas são aquelas que irão habitar uma parte considerável de sua obra, em especial sua estreia, Infância Nua.
Utilizando-se das supostas recordações de um habitante do subúrbio, Pialat recorre a uma sucessão de planos revelando o lado pouco mostrado da capital francesa, lugares que existem “a três quilometros da Champs-Elysées”.
É um olhar duro à sociedade de seu país, um diagnóstico reflexivo da pobreza do pós-guerra, onde o olhar de “pintor realista” (como Pialat se considerava) se faz muito presente: não há, aqui, um único fotograma gratuito, e se inegavelmente as críticas sociológicas parecem às vezes por demais carregadas, quando funcionam, o efeito é tremendo: no mesmo plano, após o trem passar carregado de operários já cansados, ainda a caminho de seus trabalhos, uma jovem sorridente, prestes a pular em uma grande piscina.
No final, talvez um pouco sintético, mas nunca vulgarmente epidérmico e, por momentos, inegavelmente forte, como pode ser facilmente comprovado, uma vez que L´amour Existe faz parte do DVD Coleção Primeiros Filmes, lançado pela Imovision, em 2010.
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Escrito e atuado pelo futuro diretor e produtor Claude Berri (Germinal), Janine mostra uma trágica e patética noite na vida de dois homens obcecados pela mesma mulher. Atuando com Berri, Humbert Deschamps e Evelynne Kerr – que voltariam a trabalhar com Pialat em duas de suas obras-primas, respectivamente, La Gueule Ouverte e Aos Nossos Amores.
A leveza na condução do filme segue a ironia requerida pelo roteiro que, em menos de dezessete minutos, reservará algumas surpresas ao espectador, a primeira sendo a profissão daquela que surge como uma simples e carinhosa mãe. Ela é a personagem título: uma prostituta com quem Berri irá encontrar-se. Após pagar pelos serviços, sai com seu amigo. Juntos, sem saber, conversarão incansavelmente sobre a mesma mulher, com quem um deles já fora casado.
Por mais que Pialat afirmasse que seus trabalhos inicias foram realizados “sob o signo de Lumière e dos primeiros de Rossellini”, difícil não pensarmos na nouvelle vague quando, além de retomar um tema caro ao movimento (a prostituição) – e também por partir às ruas, à noite, com transeuntes passando e olhando abertamente para a câmera –, o cineasta recorre constantemente às elipses que, mais tarde, serão aprimoradas e que marcarão tão profundamente seu cinema.
E, se dentre tantas coisas, Pialat já fora chamado de misógino, nada seria mais equivocado aqui. Vejamos o final, quando os dois amigos são pateticamente largados no escuro e, após a desesperada declaração de amor do ex-marido, Janine, imperturbavelmente, cobra a pensão de sua filha – que ele nem sabe, ao certo, se é mesmo sua.
Dom Luis Buñuel sorriria vendo tamanha crueldade travessa.
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Bosphore (1964). 14 min
O primeiro dos seis curtas que o cineasta realizou na Turquia, é também o único colorido.
Fotografados por Willy Kurant (Masculin, Féminin) no mesmo período em que Elia Kazan produzia Terra de Um Sonho Distante, estes pequenos ensaios poéticos foram encomendados e idealizados por Samy Halfon (Noite e Neblina, Hiroshima Mon Amour), um entusiasta da cultura turca e, em especial, de Istambul.
Indo às ruas, sem ter qualquer coisa muito pré-programada, Pialat e Kurant buscaram, nos poucos meses em que ali passaram – com muita teleobjetiva, pouca luz artificial e sempre com uma câmera 35mm em mãos –, registrar os escombros, os fantasmas e a beleza de uma civilização cujo auge já há muito passou.
Entre os seis, Bosphore é dos mais belos, com enquadramentos que revelam a capacidade de composição pictórica do diretor. Na narração – que recorrentemente não ilustrará as imagens –, a habitual comparação do que é com aquilo que foi.
Um filme (aliás, como toda a série) pesaroso, que no final apontará para a nostalgia com que aqueles que partem de Istambul se recordarão da mítica cidade. Como nos capítulos a seguir, um olhar que, inteligente e honestamente, assume-se como estrangeiro.
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Com texto de Stephan Zweig e trilha-sonora enfatizando as batalhas, durante a mudança da capital do Império Romano da Anatólia para o Bizâncio (futura Constantinopla), novamente presenciamos a preocupação de Pialat em denunciar a decadência desta civilização espelhada nesta cidade.
Contrastando com as histórias heroicas e grandiosas que texto e som nos entregam, as imagens são ora cotidianas, dos cidadãos trabalhando e crianças brincando, ora deprimentes, de vira-latas e cavalos famintos.
Sobre esta série o cineasta iria, mais tarde, afirmar que sua vontade era de refazer L´amour Existe nas ruas de Istambul, aproximando, assim, os rumos de Paris aos da maior cidade da Turquia. Como a intenção do produtor ia em direção diretamente oposta a isto, Pialat conseguiu, com a simetria dura de suas imagens, diminuir o caráter comemorativo das narrações e, nisto, Bizance se faz bastante bem-sucedido: quanto maior a força do passado da cidade, maiores são, também, as ruínas que sua câmera consegue registrar em suas ruas hoje banalizadas.
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Talvez o mais sereno dos seis capítulos que compõem esta série é, também, aquele que conta com o texto mais enxuto, escrito por Gerard de Nerval.
O título refere-se ao “Chifre de Ouro”, o estuário de sete quilômetros que divide em dois o lado europeu da cidade. Com belos planos feitos em barcos de passeio pelo estreito de mar, e também com ênfase em panorâmicas da antiga Constantinopla, La Corne d´Or é, provavelmente, o curta que mais se aproximou das intenções de Samy Halfon: bonito e informativo (com curiosidades e dados históricos e geográficos), sem muito da tristeza e nostalgia (explícitas), críticas e denúncias (alternadamente mais ou menos veladas) dos outros trabalhos.
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E é neste, o capítulo da série que leva o nome da cidade onde todos os filmes se passam, que a nostalgia dá lugar à crítica, e a rigorosa evidência languescente da Istambul contemporânea deixa mais claramente atrás de si uma impressão de inegável amargura e fracasso.
O que há de novo nesta metrópole é bem mais inautêntico, pois está ligado a uma prosperidade que jamais se repetirá. Para isso, Pialat filma sua noite, sua urbanização desmedida, sua multidão que segue em um fluxo emaranhado: o trânsito caótico, a falta de liberdade dos cidadãos (lembrando que esta série fora produzida durante um governo conservador), a misoginia.
À era da soberania e da beleza sucederam os tempos da publicidade, de falsas imagens que conduzem as turbas e onde o entretenimento é voltado quase exclusivamente aos homens. É uma adesão sem recuo a um mundo que hoje não nos parece nada além de natural.
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Amparado pelos poemas do conhecido escritor comunista Nazim Hikmet, Maître Galip é provavelmente o mais lírico, o mais comentado e o preferido de muitas pessoas, incluindo, aí, seu próprio realizador. De fato, podemos considera-lo sintetizador de toda a série: um olhar sobre os habitantes marginalizados em uma cidade misteriosa e esquecida.
De início, as raras imagens de intimidade, no caso, de uma família no dia da festa de circuncisão de seus filhos. Após esta sequência, voltamos aos pobres e à suas fantasias frustradas, como nos faz intuir os tristes relatos do narrador.
Às vezes, como nos pescadores, a locução casa com as imagens e aqui o som ambiente é mais utilizado. No entanto, parte do destaque do filme deve-se mesmo à Hikmet, como quando no momento em que o som das ruas silencia-se e ficamos apenas com a leitura de seus textos.
Neste momento, cronologicamente, acompanhamos uma vida demarcada por seus fracassos, até sua inevitável proximidade com a morte. Nesta Istambul, a qual ao narrador não pertence nem jamais pertencerá, resta-lhe o passado que recua, cada dia mais, como se sua própria história incorresse no místico ou no abstrato.
Antecipando neste sentido a filmografia subsequente de Pialat, um olhar frontal ao nosso inevitável ocaso e ele, aqui, coexiste com o final de uma civilização pela qual, após as saudações finais, nada resta, além das transparências de seu colapso.
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“Pehlivan” é o nome dado aos lutadores que competem, por três dias, nos “Yagui Güires”, uma disputa entre dois homens, com os corpos lambuzados de gordura e vestindo apenas uma calça de couro preto, cujo vencedor é aquele que consegue colocar as costas de seu oponente inteiramente no chão.
Difícil não pensarmos nas primeiras sequências da estreia de Alain Resnais em longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor, quando a câmera se fecha nestes corpos espelhados, formando um todo dificilmente identificável. No entanto, somos logo apresentados às regras e à história do festival.
Mas Pialat não se detém neste didatismo de tradições, partindo às dançarinas ciganas, nos espetáculos complementares do campeonato. Indo além, termina por fixar-se nos rostos dos espectadores, formando retratos realísticos à exaltação de uma cultura.
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Convencional tour pela região da Camargue, ao sul da França, “um novo Texas, sem o petróleo”. Levado por um agradável violão, uma sucessão de cartões-postais vendem o local como “um paraíso da caça e da pesca”, no qual a vida é simples e a terra virgem.
Como na série passada na Turquia, existe aqui a busca pelo imaterial, no caso, pelo espírito que governaria esses cowboys e essas pessoas genuínas. No entanto, aqui o tom é claramente celebrante, e talvez este seja o único dos documentários de Pialat que atendeu completamente aos desejos daqueles que o pagaram.
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Van Gogh (1965). 6 min
Compartilhando com o longa-metragem homônimo – lançado mais de vinte anos depois – a atenção pelos últimos dois meses da vida do pintor holandês, em Auvers-sur-Oise, no ano de 1890, este é novamente um documentário narrado, em P&B.
Capítulo da série Crônicas da França, produzida pela Pathé, Van Gogh explora mais o lado folclórico do pintor, sob um tom didático, poético e melancólico, acompanhado por um solene violoncelo.
O mérito do trabalho reside nas belas imagens de Pialat, retratando os moradores e artistas do local. Ademais, serve como um bom extra de DVD – exatamente como percebeu a Versátil, colocando-o para acompanhar o filme lançado em 1991.
Bruno Cursini
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