HITCH – filmes mudos
O Jardim dos Prazeres
The Pleasure Garden, 1925
Não é difícil encontrar paralelos entre esta obra inaugural e uma de suas mais famosas criações, Psicose. O lugar remoto, a mente perturbada e os mortos que assombram os vivos são elementos presentes nos dois filmes. Obviamente é muito melhor o tratamento desses elementos em Psicose, mas é interessante ver como algo que causaria furor neste filme pode ser encontrado desde sua estreia: a morte mirabolante de uma mulher. A espetacularização da morte está presente no assassinato da nativa, um afogamento induzido filmado com poucos planos, sem que víssemos o corpo inerte.
Anos depois, Hitchcock filmaria tal assassinato de modo ainda mais indireto, mas atingindo o espectador com mais força. Não veríamos o corpo se afogando, mas provavelmente veríamos as ondas formadas por sua luta, o rosto maléfico de seu assassino, seu pescoço se retraindo pela força, as bolhas surgindo na água após a conclusão do afogamento, com o cadáver preenchendo o quadro. A ideia da morte como espetáculo ainda era um simples esboço em sua criação.
Sérgio Alpendre
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O Inquilino
The Lodger: A Story of the London Fog, 1927
Diferentemente dos melodramas de Griffith, Hitchcock não aborda a família enquanto instituição do Bem que durante o filme terá a sua estabilidade ameaçada por um elemento externo pertencente ao Mal. Em O Inquilino – assim como na obra inteira de Hitchcock – as noções de Bem e Mal são sempre relativas, pois dependem exclusivamente de evidências imagéticas que não são dadas a ver. Afinal, aquilo que é visto – o recorte que a câmera e a montagem operam – tende mais a esconder do que a revelar. Até os dias de hoje, poucos cineastas foram tão potentes no uso do espaço em off sem necessitar chamar a atenção para tal operação formal (que virou moda consagrada depois de Práxis do Cinema, o livro de Noel Bürch, e que hoje pipoca a rodo em variados estilos do cinema contemporâneo como algo que possui valor em si mesma).
O inquilino, a princípio suspeito incontestável, abala a harmonia da pequena família pequeno-burguesa. Ao final, descobre-se que ele na verdade era inocente e, de uma hora para outra, o vilão se torna herói. A família, assim como a opinião pública (ironicamente comentada pelas manchetes de jornais e pelas reações em massa do povo das ruas), sente-se então constrangida pelo engano, mas ao mesmo tempo aliviada, pois no último momento evitaram a crucificação de um inocente. Com essa estrutura dramática (calcada em estruturas sociais), Hitchcock coloca em questão o estatuto das imagens. Questiona a crença cega que temos nelas. Aponta de maneira um tanto quanto sarcástica a cegueira que as imagens (as evidências superficiais que culpam ou inocentam um homem) podem gerar. Isso tudo em 1927, duas décadas antes do surgimento da televisão, mas já atento aos perigos manipuladores do espetáculo conhecido como jornalismo.
Se a primeira imagem do filme mostra uma mulher que grita enquanto morre, a última mostra uma mulher que sorri rumo à vida: a verdade do inquilino, a verdade de um homem, venceu o senso comum e a preguiça do olhar.
Fernando Watanabe
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Se pela ausência do medo, O Aviso afasta-se dos trabalhos mais característicos de Hitchcock, ele nos faz enxergar com maior clareza o ponto de partida aos quais muitos deles se constroem: o triangulo amoroso. Aqui ele é a base da história e é nele que o desejo e a traição apresentam-se como a fenda pela qual o mal adentra nas personagens.
Seria fácil imaginar um plano de assassinato entre os amantes, no entanto, Hitchcock irá explorar a degradação de seu personagem “One Round” Jack, um boxeador amador. Sua noiva o acompanha e é a ela quem um campeão de boxe profissional, Bob Corby, deseja impressionar ao subir ao ringue contra Jack. Com a casa cheia, o noivo é derrotado.
O filme segue no desenrolar desta situação: Jack é contratado como sparring (!) de Bob que, muito às claras, havia se tornado o amante de sua, agora, mulher. Como em qualquer história de boxe, seu desfecho se dará na luta entre os dois.
O Aviso encontra Hitchcock em um momento de elaboradas soluções visuais: Jack pede a seu empresário que ele programe uma luta contra Bob. Um cartaz mostra a distância que os separam: o nome de Bob está em primeiro, o de Jack, lá embaixo, com letras minúsculas. A câmera fecha no cartaz e, quando abre, ele já é um outdoor, em uma calçada vazia. O nome de Jack continua embaixo, destacado dos demais. Conforme mudam as estações do ano, seu nome vai escalando, até chegar ao posto que precede o topo. Aqui, voltamos à sala onde o lutador conversava com seu empresário e o vemos já bem vestido e altivo. Porém, através do vão de uma janela, as coisas continuam iguais: sua esposa, no colo de Bob, em uma festa na sala ao lado.
No final, Hitchcock acaba seu conto moral à maneira convencional, finalizando não apenas um de seus melhores filmes mudos, mas de toda sua fase inglesa.
Bruno Cursini
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Após O Inquilino, Hitchcock, impressionado com Ivor Novello, resolveu realizar uma adaptação da peça que o ator escreveu. O próprio Novello é o estudante que, após julgamento, é expulso da escola pública por roubo, iniciando um processo de descida que Hitchcock faz questão de simbolizar com uma série de imagens meio pueris: a escada rolante que desce após a expulsão do colégio e a saída da casa dos pais, o elevador que desce após um rompimento de relação em Paris, as escadas que levam o herói sempre para baixo, terminando no porão de um navio de carga. Até as subidas na volta a Londres e a retomada de sua vida pregressa, após a descoberta de que ele não era, afinal, culpado.
Apesar da notória capacidade de contar uma história visualmente e de algumas sequências muito inspiradas (como a descoberta, durante um baile em um cabaré, do ambiente degradante em que estava metido, por meio de uma magistral panorâmica que mostra o que a luz do sol lhe revelava), Downhill não deixa de ser um retrocesso em relação ao longa anterior.
Sérgio Alpendre
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A Mulher do Fazendeiro
The Farmer’s Wife, 1927
Mesmo ainda iniciando sua trajetória como cineasta, Hitchcock já manifestara interesse pelo gênero que viria a consagrá-lo. Se considera O Inquilino e O Aviso como seus filmes mais pessoais e autênticos na fase muda, mesmo sua indiferença pelos demais não pode descredenciar a maioria. Aprendendo e se exercitando, Hitchcock construiu nessa fase alguns bons filmes de outros gêneros.
É o caso de A Mulher do Fazendeiro. Típico trabalho de encomenda, nele podemos perceber que o jovem cineasta desinteressado pela origem teatral do roteiro consegue impor a esta comédia um bom senso de ritmo e leveza. Não há como negar que a estrutura do roteiro é bastante esquemática, mas o diretor consegue impor-se visualmente, principalmente através da concepção de personagens, muito bem defendidos por seus atores.
Temos na ótica de Hitchcock um inequívoco senso de deboche pelas instituições sociais na Inglaterra rural, manifesta em sequências cômicas bem construídas, como as entrevistas com as pretendentes e, especialmente, uma festa que beira a insanidade e que poderia muito bem antecipar a clássica cena do camarote de Groucho em Uma Noite na Ópera. Ainda que não se compare ao que de melhor se fazia em humor cinematográfico em sua época (Keaton ou Lubitsch, por exemplo), A Mulher do Fazendeiro carrega uma virtude essencial a qualquer boa comédia: é bastante engraçada.
Gilberto Silva Jr.
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Certamente, entre os mais esquecíveis filmes que Hitchcock dirigiu, está este Vida Fácil, de 1928. Nele, Larita é uma jovem casada com um alcoólatra que, após o suicídio de um artista a quem ela servia de modelo e inspiração, ganha notoriedade por se separar de seu marido. Para escapar da mídia ela foge para o sul da França onde, rapidamente, conhece John, um riquinho sem grandes preocupações.
Eles se apaixonam e, quando John leva Larita à suntuosa casa onde mora para conhecer sua família, entra em cena a mãe do rapaz, um esboço da inesquecível Madame Sebastian, de Interlúdio. Desnecessário dizer que será ela quem irá desvendar o passado condenável da moça. Entretanto, o fato é de que vem daí a única seqüência digna da filmografia do mestre, quando, depois de ser desmascarada e impedida de comparecer à festa onde o clã iria introduzi-la na alta sociedade, Larita ressurge fortalecida, no alto da escadaria da residência, em meio à celebração.
Impossível não pensarmos em uma cena análoga de Rebecca, e é aí que compreendemos que, talvez, olhado como mero ensaio para grandes investidas futuras, Vida Fácil não se revele tão descartável quanto inicialmente havíamos acreditado ser.
Bruno Cursini
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Um dos fatos mais divulgados sobre a vida de Alfred Hitchcock é aquele de uma repreensão aplicada por seu pai, quando o futuro cineasta ainda usava calças curtas: por razões não anunciadas, seu pai pedira ao delegado que o colocasse dentro de uma cela, o prendendo por alguns poucos minutos. A partir daí, tornou-se lugar comum ver seus filmes por esta chave: suas personagens erroneamente acusadas seriam, logo, alter egos do gênio inglês.
Pois bem, em Champagne, podemos vislumbrar uma variação deste tema: vemos aqui um pouco do autor da repreenda. O filme inicia-se com um artigo no jornal: “Magnata de Wall Street desafiado por herdeira teimosa. Ela foi voando se juntar ao namorado num cruzeiro no Atlântico”. Lendo o impresso, o incomodado pai da moça – interpretado com muita desenvoltura por Gordon Harker. Ele vai até a filha e conta a mentira bombástica: está falido!
A maneira pela qual Hitchcock revela a fraude é exemplar: após a garota servir ao pai uma comida, digamos, pouco apetitosa, ele corta deste prato com um bife magro e queimado no apertado apartamento que eles agora dividem, para um requintado prato sendo devorado. A câmera rapidamente se afasta, mostrando quem o está comendo: o pai, num suntuoso restaurante. Paparicado por garçons, ele bebe confortavelmente sua champagne. Paralelamente, a filha prepara, desastrada, a massa de um pão.
Mesmo em uma comédia de gags como esta, em momentos como este, sentimos o gigante cineasta que o jovem, outrora assustado com o pai, estava prestes a se transformar.
Bruno Cursini
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Último filme completamente mudo de Alfred Hitchcock, Pobre Pete conta aquela que talvez seja a mais comovente história de toda essa sua primeira fase, na Inglaterra. Logo de início, somos apresentados a Pete, um humilde pescador de arenque, e a Philip, um ascendente advogado, herdeiro de uma família tradicional. Amigos de infância, Philip aguarda Pete no porto, comunicando-lhe que irá representar os pescadores em um protesto contra a utilização de grandes embarcações nas zonas de pesca. Pete concorda, mas sua única vontade é ir à taverna local e pedir a mão de Kate, a filha do dono do estabelecimento.
Trabalho de síntese modelar, de cara somos expostos à situação que irá perturbar as três personagens: Kate e Philip são apaixonados e só o ingênuo Pete não percebe. Ao ter seu pedido de casamento recusado pelo pai da moça, o pescador decide tentar a sorte na África, sabendo do fato de que, enriquecido, seria bem aceito pela família de sua pretendente. Antes de sair à viagem, faz Kate lhe prometer o compromisso e solicita a Philip os cuidados dela.
O que segue, neste contundente melodrama, é uma história de sucessivas desilusões, na qual os destinos dessas três desafortunadas almas são invariavelmente suspensos por convenções sociais e auto-sacrifícios. Antes ou depois, poucas vezes Hitchcock fora tão austero com suas personagens: Pete é de uma inocência doentia, ao passo que Philip se divide entre o amor e o sucesso profissional. Kate, entre eles, é dilacerada pelo conformismo e pelas ilusões que a cercam.
Bruno Cursini
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