Deus da Carnificina
Deus da Carnificina (Carnage, 2011), de Roman Polanski
Existem duas características que podem facilmente demarcar o trabalho de Roman Polanski e que, em Deus da Carnificina, encontram-se em uma abundância talvez demasiada: em primeira instância, um olhar sardônico sobre a civilização e o ser humano em geral; no caso, na maneira pela qual estes dois casais irão lidar com a briga entre seus filhos, onde um deles fora agredido no rosto, perdendo dois dentes.
A segunda, é a inegável predileção de Polanski pela restrição do espaço onde estas mesquinhas querelas pequeno-burguesas irão desenrolar-se. Como em tantos de seus outros filmes – até mesmo naqueles em que o confinamento não tem como principais funções a claustrofobia e a exteriorização da mente perturbada de seus protagonistas, como no recente O Escritor Fantasma – esses quatro adultos ficarão infalivelmente presos neste, de outra maneira, agradabilíssimo e confortável apartamento nova-iorquino. Inicialmente, eles não conseguirão dali sair pela necessidade de provarem-se superiores, ou, ao menos (e isto é o mais importante) diferentes dos outros mas, ao final, não se separarão por compreenderem-se, inescapavelmente, tão patéticos quanto.
Sustentado pelo texto da dramaturga francesa Yasmina Reza, temos uma comédia de humor negro, superficialmente não muito diversa de tantas outras, construída pelo facilmente reconhecível jogo de espelhos (e aqui eles estão física e estrategicamente espalhados por todos os cômodos), onde a risada constrangida se dará pela ignorância dos envolvidos em não enxergarem que, por trás deste “narcisismo das pequenas diferenças” freudiano, eles equivalem-se: fosse em uma comédia com Adam Sandler, isso significaria “apesar de tudo, pessoas com o coração bom e a alma enorme”; sendo um filme do diretor de Lua de Fel, significa “pequenos fantoches, distraídos com nulidades que os impedem de quaisquer sentimentos legítimos”.
E estas distrações recaem justamente sobre os objetos, sobre as coisas que estas caricaturas vestem e ostentam, tudo ao propósito de esconder um inegável mal-estar inerente à sociedade na qual estão inseridos: o celular, o sapato e o colar de pérolas do casal visitante e mais abonado (interpretados por Kate Winslet e Christoph Waltz), o “catálogo raro da exposição em Londres de 1957 de Oscar Kokoschka”, as tulipas importadas na mesa de centro da sala de estar, uma certa integridade do americano médio avesso a formalidades (John C. Reilly) ou do engajamento desalienante dela (Jodie Foster), propaladamente escrevendo um livro sobre o massacre de Darfur.
E é em cima disto tudo que Polanski literalmente vomita neste Deus da Carnificina: uma anedota sobre o momento de assimilação de nossas próprias tolice e insignificância; algo que, certamente, não lhe tornará mais querido no país que já proíbe sua entrada há mais de 30 anos.
Bruno Cursini
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