Ano VII

Luz nas Trevas

sexta-feira jun 1, 2012

Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2012), de Helena Ignez e Ícaro Martins

Algumas divagações tardias sobre Luz nas Trevas.

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Um texto tem um sentido em uma época, outro em outra e pode ter outro bastante diverso em época bastante diversa. Qual era a leitura de Bandido da Luz Vermelha e da obra de Sganzerla na e para a sua época? Ainda que se possa recorrer à recepção crítica daquele tempo, tais textos também estão colados àquele tempo, àquele momento e são, como o filme, objetos colados àquela época.

Um olhar retrospectivo para a obra de Sganzerla, para Bandido e para todo o legado do diretor aponta, em meio à metralhadora de significados ali contido, um texto incrivelmente coeso no seu caráter multifacetado. Da colagem de vozes, imagens e signos emanam não apenas a irreverência, o deboche, a contestação, mas uma  visão extremamente lúcida e aguerrida da história do país que se modernizava em meio ao caos.

A confusão, a avacalhação, vira forma, vira modo, numa improvável tentativa de conseguir sintetizar de maneira dialética a matéria de que somos formados. Por mais que não se aparente há na lógica daqueles filmes uma lógica e nessa dialética, nem sempre explicita (caos aparente/discurso lógico), Sganzerla é o oposto de Glauber, ainda que depois a obra de ambos se aproxime.

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Já a “continuação” do legado de Sganzerla pelos seus seguidores – e quando me refiro a estes, penso não apenas na família, mas em jovens que descobriram extemporaneamente o cinema do diretor para contemporanizá-lo (entre outros, Fernando Watanabe com o seu curta Danças) – remete a um texto diferente, texto de matriz sganzerliana que não é nem pode ser Sganzerla. No documentário Mr. Sganzerla, de Joel Pizzini, essa tentativa é lavado a cabo com sucesso a partir de fragmentos da obra do próprio diretor e outros registros, numa incorporação do discurso que beira um transe místico; já em Luz nas Trevas, delicioso filme de Helena Ignez a partir de um roteiro deixado por Sganzerla, a questão me parece mais problemática, sem que isso interfira no resultado do filme que é acima da média.

Digo problemático porque o filme fica no fio da navalha entre estar com os pés no texto original e em sua época e fincar os pés no hoje, visando dialogar com uma realidade outra, cinematográfica inclusive. Lembra muito nesse sentido outro filme que tematizava e problematizava essa ideia de (re)encarnação, no caso, o Reencarnação do Demônio, última aventura de José Mojica Marins no cinema, onde também esta ideia de amarrar passado e presente, histórica e esteticamente, ainda que com muitos bons momentos, parecia de certa forma em falso, como uma mesa que tem um pé maior que o outro e precisa de um calço.

Isso se repete em Luz nas Trevas ainda que o filme me pareça mais coeso e talvez renda discussões mais aprofundadas, pois o “problema”, longe de ser apenas um “defeito”, pode e com certeza revela muito de nós mesmos – aqui do nosso cinema e seu passado -, à medida que é fruto da nossa própria composição e, por isso, ainda que possa ser contornado, fará do contorno a uma marca, o desvio vira trajeto e o trajeto precisa ser  entendido no itinerário percorrido.

Tal divagação talvez fique mais clara, sobretudo, se pensarmos na ideia da paternidade, tema central no filme e que se desdobra em vários duplos, entre eles, o central que é o dos bandidos: filmes e personagens, cada um buscando entender o outro, assimilar e reinventar o outro para poder, freudianamente, matá-lo de vez, visto que é muito difícil conviver com tamanha grandeza e pensar, pensar apenas, em superá-la.

Luz nesse aspecto funciona bem como tentativa de diálogo, como emulação, como resgate, mas não dá um passo à frente, nem em relação à sua época, nem em relação a um outro cinema. E essa colocação, longe de ser negativa, reflete muito essa ideia pós-moderna de fim da história, fim da arte e fim de tudo, de um cinema brasileiro inclusive. Ideia contestável em certo sentido porque esse fim imaginado por tantos teóricos se alicerça numa nostálgica visão linear da história visando um sentido e, de certa forma, um progresso ou um evoluir, noções fraturadas em pedaços mil pelo fim das utopias e pelo surgimento de uma sociedade cindida em tribos e em pensamentos que se liquefazem facilmente para originar outra forma e assim por diante.

Luz, e repito, isso não é demérito, está como Signo do Caos do próprio Sganzerla e em Serras da Desordem de Tonacci, os meus dois filmes preferidos do cinema brasileiro recente, nesta encruzilhada entre um passado grandioso e um presente que não tem muito clareza de si e que se reconhece fortemente, o que já é por si muito grande, nessa relação ainda não bem resolvida ou sintetizada entre ser o mesmo, ser uma outra coisa ou ser, pós-modernamente falando, muitas outras coisas e assim sendo, se diluindo entre tantos textos.

Cesar Zamberlan

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