O Que Eu Mais Desejo
O Que Eu Mais Desejo (Kiseki, 2011), de Hirokazu Kore-eda
É um tabu no meio crítico. Não para os franceses, nem para os americanos, mas para os brasileiros: não se escreve em primeira pessoa. O “eu” seria uma forma de tornar o caminho cercado pela subjetividade, algo pessoal quando se busca o impessoal, uma armadilha que denota uma fixação pelo próprio umbigo, ou coisa que o valha.
Há, também, um clichê, que é usado sobretudo nas resenhas jornalísticas, mas de vez em quando se encontra em críticas por aí: dizer que tal diretor tem mão pesada. É usado normalmente quando o filme cai em situações melodramáticas, ou quando tal diretor se esforça para mostrar que o ser humano é cruel, mesquinho, que existe um submundo de intenções. No mais, há grandes filmes dirigidos com mão pesada.
Quanto a esse tabu e a esse clichê, quero dizer que desrespeito os dois para dizer que considero a grande ausência do cinema de Kore-eda, o grande problema que impede os filmes regulares de serem bons, e os bons de serem algo mais, justamente a sua mão leve. O abandono de crianças, a separação dos pais, o bem estar dos idosos, o além da vida, o que quer que seja, é tudo tratado com tanta delicadeza que sentimos que essas pessoas são de papel, não existem numa vida real dramatúrgica. Servem-se unicamente a uma peça de auto-ajuda. Não há pecadores no cinema de Kore-eda, a não ser fora de campo.
É o problema, de novo, deste seu mais recente O Que Eu Mais Desejo. Tudo é tão calculado para estar no tom certo, tão equilibrado dentro de uma lógica flanante da vida e das coisas, que dá vontade de dar uns petelecos nessas crianças para ver se elas sentem dor, raiva, vontade de reagir ou algo assim. A criança do mundo atual não sente dor física, mas quando cresce vai para a cama por qualquer resfriado. “Uma geração que foi [e está sendo] criada com mertiolate que não arde”, como diz o Régis Tadeu. Claro está que estamos falando da classe média, representada no filme em questão.
As crianças de O Que Eu Mais Desejo até buscam alguma coisa. Brincam, combinam viagem até um ponto de cruzamento de trem balas, observam as pernas de uma professora, falam em celulares e telefones. Mas em momento algum são personagens interessantes. Ou melhor, há um momento, sim, quando parece que o filme finalmente alçará um voo tímido, mas que é sabotado por um corte um tanto apressado: o momento em que as crianças, já deitadas e prontas para dormir, fazem uma coreografia bizarra da música “YMCA”, famoso hino disco da banda americana Village People. A farra e as risadas dessas crianças iluminam por cerca de vinte segundos esse relato cool, sem desmesura, ameaçam quebrar a monotonia por uns instantes.
Numa situação em que as estreias causam um profundo desânimo, críticos podem até saudar este mais novo rebento vindo do Japão, como o fez o Inácio Araujo. Mas se a salvação é essa, estamos mal mesmo. O besteirol é cada vez mais dominante porque é combatido com paliativos como esse, “mertiolates que não ardem”. E pensar que o filme vem do país que já nos deu tantas maravilhas, e que um grande conterrâneo recente como Sonata de Tóquio continua longe destas plagas, justamente porque – suspeito – seu diretor tem a mão pesada, descamba para o delírio que não é de butique, e por isso não vem codificado para o novo público anestesiado.
É algo que falta no cinema atual: a tal da mão pesada. Tapas que machucam de verdade no lugar de tapinhas que não doem. Desespero no lugar de mimimi. Vejam filmes de Douglas Sirk (no CCBB até 10 de junho) para entender do que estou falando.
Sérgio Alpendre
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