Sobre Still Life
Passeando com Jia Zhang-ke por Still Life
Por Louis José Pacheco Oliveira
Robert Bresson, em seus filmes, recusa-se a trabalhar com atores profissionais e tem razão, para ele. Alfred Hitchcock nega-se a fazer westerns ou filmes de época e tem razão, para ele. Jean-Luc Godard não quer mais dirigir filmes produzidos e consumidos por uma sociedade cuja destruição ele almeja e tem razão, para ele. Ingmar Bergman não quer mais fazer filmes fora de seu país, a Suécia, e tem razão, para ele. Luis Buñuel não quer mais colocar música em seus filmes e tem razão, para ele. Roberto Rosselini agora só quer fazer filmes educativos e tem razão, para ele. Howard Hawks pretende colocar a câmera 'na altura do olho humano' e tem razão, para ele.
François Truffaut1
INTRODUÇÃO
Em uma lista de bons filmes é difícil escolher uma dada obra e afirmar que essa obra expressa o melhor de sua arte. São muitos os critérios para se ler um filme! Cada espectador, segundo seu olhar estético e, obviamente, seus vícios e gostos, vai privilegiar certos diretores, uma fotografia específica, a agudeza de certos enredos e, no final, o que de sua pobre história pode se relacionar com o que está na tela.
De forma simples: creio que à escolha de um filme coincide com nossos ziguezagues sentimentais, às vezes dramaticamente melosos, e com o que, na trama que jogamos, situa nosso interesse em relação ao mundo.
Neste caso, por que a escolha por Still Life2 ou como chegou ao Brasil, Em Busca da Vida? Porque certas coisas ou valores dificilmente são negociáveis. E neste momento em que o excesso parece dar o tom às nossas vidas, direcionando-nos para algo como 'a era do vazio'3, o diretor Jia Zhang-Ke trata essa teia complexa de representações – que procura violar o sentido do que é humano -, apontando que, para além do passado ou do futuro, é o homem que ainda permanece sobre o olhar de tudo isso que vem desmoronando. E a suavidade com que observa o abandono do ser humano à sua própria sorte, coloca essa obra na contramão de uma linguagem que, movida por um entusiasmo desconstrutivo, procura maldizer a vida humana, degradar o que é comum e afirmar que nada mais há.
Não só no cinema, mas em qualquer forma de arte, se se admite que o deslocamento das utopias – uma das marcas mais características do mundo contemporâneo – funda a ilusão de desencontro, pode-se cair na hipótese de que as expressões desse mundo são o desenraizamento, a perda do sentido histórico, o desinteresse por novos laços afetivos ou, conforme o discurso oficial das mídias, que a turba massificada segue a margem de sua humanidade. Ohhhhhh!!! Por isso afirmei antes: certas coisas não podem ser negociadas! O que não negocio? A capacidade humana de escavar, mesmo no mais denso caos, um sentido para se fazer… para viver.
E é isso o que Jia Zhang-Ke realiza em Still Life. Retratando a dura experiência do homem chinês na região da barragem da Represa de Três Gargantas – onde 1,3 milhões de pessoas foram forçadas a sair -, Still Life anuncia que todos nós somos inseparáveis daquilo que a humanidade inteira não pode abandonar: a condição humana. E nessa condição, viver a experiência que se tem, na fronteira de toda destruição ou renovação, sobre ruínas ou uma outra forma de compor o real.
É gozado perceber que mesmo que nada nos prepare para certas rupturas, ainda assim, por mais desastrosas que sejam, seguimos suas exigências. Alguns sofrem, lamentam-se em demasia ou se desesperam; mas a maioria se adapta e segue o curso que tiver que seguir.
Como reflexo de certas circunstâncias históricas, o homem se constitui na medida em que encontra no seu percurso os sentidos e as práticas de seu tempo. E se algumas coisas se eternizam e demoram muito para sofrer qualquer mudança, outras caem rapidamente, descobrindo novas necessidades e à urgência de outras respostas para que determinado grupo continue e sobreviva.
Still Life se debruça sobre o que permanece, sem desprezar nada, sem exaltar caprichos, sem endossos saudosos por uma suposta China autêntica. Reflete uma circunstância reatualizadora, que se ergue outra exatamente para ser outra mesma, ainda que dura ou frequentemente destrutiva. Seu roteiro é extremamente simples: Um homem e uma mulher que não se conhecem viajam para a cidade de Fengjie, na região da Represa das Três Gargantas à procura de seus respectivos companheiros. Transitando por um território às vezes grotesco, às vezes acolhedor, vão conhecendo pessoas e situando histórias. E nesse meio a simplicidade ocupa-se de tudo, trazendo como seu ingrediente mais privilegiado a suposição de que, ofereça ao homem o inferno e ele será redesenhado, ou seja, que a vida é vivida onde quer que ela se manifeste.
Imediatamente colado à essa celebração – uma celebração nunca é só construtiva -, Still Life reconhece que nenhuma cultura está isenta de mudanças. E parece falar/tratar de que toda mudança vai nos remeter a nós mesmos, a nossa mais íntima grandeza, nem boa, nem má. E sobre essas mudanças – pessoas que se vão, lugares que desaparecem, serviços que acabam, relações que se perdem etc. – pode parecer à geração mais velha, que a paisagem que chega expressa um outro mundo que não o seu, carregado de uma existência que beira à decadência. Mas, na verdade, sob semelhanças e contrastes, o que chega é somente o presente, com todas as suas demandas, escavando a si-mesmo para criar sua frequência, uma outra frequência. Por isso, nada de novo sob o olhar agressivo dessa imensa e maravilhosa China. E quando olhamos para esse mundo, nosso foco vai imediatamente para as promessas de crescimento e mundialização de suas necessidades econômicas, como se tudo caísse sobre esse movimento e, quebrando todos os velhos nichos, localizasse, sob novos holofotes, uma só China, a espetacular Pequim. Mas, não é isso!
Em países como China, Brasil, Rússia, Índia etc., não há desenvolvimento que possa destruir ou uniformizar a todos. Todos, nesses lugares, são muito mais do que pode tocar certos discursos ou orçamentos. Há gente silenciosa em todas as fronteiras. Gente que pouco aparece, desiguais entre iguais, sem qualquer proeminência, presos em seus territórios, muito além desse mundo eleito pelas corporações urbanas e constantemente reconhecido como observável em todo lugar.
Mas o que pode ser observável num mundo que enxerga mal, e só quer exibir cenas de uma cultura nada elegante?4 Ora, Still Life nos dá acesso a um tipo de personagem que é clandestino em certas histórias (e porque não, em inúmeras salas de cinema), sem interromper sua voz ou mesmo, o passo a passo de suas relações. Como se nos desse uma etnografia da vida comum, situando suas imagens numa gestualidade despercebida, por ser demasiadamente habitual. Tão habitual, mas que compõe o cenário social de uma gente que, sutilmente, não se barbariza, não se uniformiza, e que mesmo ludibriada ou jogada ao abandono, resiste, adapta-se.
Tocando com maestria nesse momento, Jia Zhang-Ke cria Still Life como um libelo à imanência perpépua do comum, do comum ou do simples como o que vale a pena ser glorificado, como o que supera o que é supostamente espetacular e que, como sinônimo da vida, promete somente a vida. Por isso, ao eleger essa China – um mundo de tantos mundos – não escolhe como seu percurso tratar do fim, mesmo que se chegue muito próximo de sentí-lo. Há mesmo morte, mas acima de tudo continuidade e, consequentemente, vida a ser vivida.
O início de Still Life é emblemático. A câmera desliza pelo interior de uma embarcação focando uma tripulação acomodada, que parece seguir um simples percurso. Essa imagem prossegue até chegar a uma das extremidades do barco, onde está Han Sanming – personagem central deste filme. Agora o foco é o rio Yangtzé e uma bela ponte que paira sobre suas águas. E sempre ao fundo, à exuberância de verde que preenche os vales. E em uma de suas margens, uma grande cidade aparece. Neste momento uma voz anuncia: "Caros amigos migrandes… sua atenção por favor. A balsa Yangtze, de Fengjie à Ilha Chongming chegará ao pier em 30 minutos. Por favor, não esqueça de pegar sua bagagem e aguardar nosso aviso no píer".
Logo após esse anúncio, tudo começa. E como disse antes, nada de se prender em mundos acabados, em gente morta, ou na ausência de vontade. E não se trata de ignorar que essa gente – de Fengjie – sofreu ou ainda sofre. Ou ainda, de que a destruição não os espreita. Tudo isso faz parte do universo tratado por Jia Zhang-Ke. E ele escolhe mostrar a resistência humana a tudo isso, situando a força do homem comum pelo que ainda resta de sua humanidade.
Assim, no início de Still Life, o compromisso de anunciar uma gente que tem de se expôr por trabalho, que vive a despeito de toda pressão e que busca um lugar para encostar seu corpo e viver. E que segue, mesmo que apertada num barco, sem saber de destino ou de sorte, jogando baralho, acionando celulares, lendo a sorte, disputando uma queda-de-braço… seguindo para uma cidade que os espera, sem querer acolhê-los.
E se aqui os três grandes cenários são a cidade de Fengjie, o rio Yangtze e o homem chinês, isso não quer dizer que este filme ou a abordagem dada por Jia Zhang-Ke serve unicamente para situar a cultura chinesa e suas pressões. O que impressiona nesta obra é que ela nos impulsiona a perceber o quanto o percurso de um homem simples – a personagem de Han Sanming – pode ser o de todos nós, em qualquer parte. Neste caso, Han Sanming não representa só o chinês comum, mas todos os homens que consideraram certas obrigações e, por sua vontade, experimentam vivê-las. O mundo está cheio deste tipo! Um tipo que parece clandestino, frágil, incapaz de enfrentar toda destruição que acontece à frente ou, a todos os brutamontes que, vivendo nessas ruínas, esperam por vítimas para explorá-las. E é belo ver este homem comum entretido em seu encontro simples com à vida, tão pouco justa, quase sempre contaminada por um tipo de selvageria.
Still Life é um ode a essa gente! À vida simples, que se sobrepõe as expressões oficiais e reconhece, num mundo jogado à marginalidade, mas não à margem – tudo isso é uma simples questão de foco – a força da coexistência dos que se encontram e vivem essa dura realidade. A dura realidade? Uma cidade caindo, ao mesmo tempo em que se ergue outra, a realocação de pessoas, o subúrbio que já não é quase nada – só escombros e restos do que antes eram ruas -, mas que ainda é alguma coisa para quem ali teima em viver, com seu mercadinho, seu tráfico, suas putas, seu pequeno hotel etc. Observando essa paisagem que às vezes lembra o fim, descobrimos que mesmo diante de tamanha destruição, algo de humano celebra à vida, independente da dor ou mesmo sobre a dor. Por que isso? Porque Still Life trata da simplicidade humana. De uma simplicidade que, mesmo sobre circunstâncias extremas, vê como admirável a presença humana. Nenhuma situação de revolução, de reformulação de utopias, nada disso. Simplicidade que confere ao ato de integração à vida, a vida como é, o que mais conta. Ou seja: como o sr. He, proprietário do Hotel Chinese Palace Inn, que segue o curso normal de seus dias, alugando quartos e aguardando a hora em que o nível da represa o obrigará a partir.
Assim, o que é interessante notar é que a vida não cessa. E será num palco em ruína que uma outra soma de relações explodirá. E longe de testemunhar que a vida acabou, tem-se um mundo que permanece vivo mesmo enquanto ruína, e enquanto isso, homens que seguem o espetáculo dessa destruição e não caem; um plasma que recobre todo domínio e não permite que haja um venceder, principalmente se se quer como vencedor uma China como espelho de uma pós-modernidade espetacular.
II – Observando o Mundo
Jia Zhang-Ke é um fino perscrutador das coisas. E um observador sem a complexidade atordoante de alguns cineastas contemporâneos, que vêem o mundo a partir de seus signos de superfície, como num clichê 'clip', ocupando-se de néons e restos de identidades de todos nós.
Jia Zhang-Ke move muito calmamente seu olhar sobre um mundo que parece não respeitar essa prática. Parece cravar seu interesse na relação território/pessoas, criando, a partir dessa junção, a representação de realidades que se escondem à baixeza do que são, por serem tão comuns, tão semelhantes à todas. Em Still Life é essa vida que é proclamada. Vejamos!
Explorando duas belas personagens, Han Sanming (trabalhador em minas de carvão), e a enfermeira Shen Hong, a subjetividade de um povo inteiro é apresentada. Saming é um homem simples que está viajando do interior da China – Shaanxi – para Fengjie. Quer encontrar a sua mulher, que comprara ainda jovem, e a filha que teve com ela. Em seus planos, o desejo de retomar velhas relações que deixara a 16 anos. No mesmo lugar em que está Sanming, Shen Hong procura por seu marido, que a deixou fazem dois anos. Só, sem se angustiar com burocracias ou ter de ir a vários lugares, Shen Hong representa essa nova mulher que pode alcançar, nessa outra China, um outro estilo de vida. O que ambos querem? Conquistar algo para suas histórias. E não estão alarmados, mesmo que sobre suas costas o volume da represa anuncie grandes mudanças.
Ah! E se há esse mundo de águas que ameça e imprime um ritmo agressivo à vida de todos, ninguém em Fengjie parece estar com pressa. Tudo foi calculado, é o que parece. Como se o subir das águas já fosse esperado deste sempre e refletisse um mundo como todos, muito pouco estranho. E é esse mundo comum, de gente comum que passa sobre um outro mundo que se compõe, o elemento mais importante dessa obra de Jia Zhang-Ke.
Por esse elemento, em Still Life o mundo aparece como um escorrer de gente; de gente, um monte delas, que circula de um lugar para outro, diretamente associada ao novo diagnóstico do presente: de que só se faz presente àquele que se prende ao seu caráter social-objetivo e se afasta de referências que se baseiam numa tradição milenar, ou que ainda procura respostas segundo mecanismos que valorizam o coletivo, a comunidade. A comunidade, ou seja, seu sentido, ficou em Shaanxi. Em Fengjie o mundo gira sobre a experiência que vem de fora, em função de uma faculdade que se tem como maior e suficiente para deliberar sobre outras áreas ou culturas.
As imagens de Jia Zhang-Ke nos oferecem a ilusão de um singularidade que ultrapassa os signos contemporâneos. Como afirma o crítico de cinema Cid Nader5,
As imagens de Jia são estruturadas com um rigor dos mais primorosos do cinema atual. Sua montagem, seu lento desenvolvimento cênico, seu passeio minucioso e atento, com câmera que desbrava locais que estão sendo demolidos, mas que desbrava também faces e expressões; a utilização do som local – que por vezes supera em intensidade e necessidade os diálogos, que passam a um justo luga,r em um segundo plano de importância – ou o garoto que canta e que faz a ligação emocional, e um tanto non-sénse, entre as "duas" história que ocorrem dentro da trama; o filme, afinal, parece mais do que mais um grande trabalho do diretor. Tem algo de amadurecimento notável. Mantido todo o impacto de seu recado, sim, sem dúvida. E mantidas algumas provocações estéticas. Não dará para esquecer – espero que por muito tempo – a neblina que encobre as montanhas que circulam a cidade semidestruída.
Por trás dessa neblina chegam à região de Fengjie homens provenientes de toda a China, principalmente camponeses. Procuram se adaptar às novas exigências e, consequentemente, aceitam qualquer trabalho. Não estão perdidos! Vão a Fengjie para se colocar num mundo que faz da existência a necessidade de conciliar ganho e sobrevivência, produtividade e um simples lugar para descanso. Reconhecem que, para esse novo tempo, um lugar é aquele em que se debruça para ser, ser alguma coisa.
E há um mundo vindo à baixo em Fengjie. Mas ele não é único. Há um outro em expansão, assinalando o futuro, atestando que tudo o que se faz é para uma outra gente. E é belo perceber que entre o novo e o velho a vida intermedia toda matéria bruta que é, rigorosamente, a simples existência… com seus motivos absurdos. E na interdependência entre os que parecem não ter motivo para existir e àqueles que exploram seu trabalho, o que ainda perdura é a simples vontade de permanecer. Permanecer, obedecendo a certos traços que a intuição de cada um acaba por assinalar como o seu único valor. Neste caso, o menino que sempre aparece cantando músicas românticas, o pequeno mafioso (Mark) que se vê como um artista de cinema, o grupo de amigos que estão ali para derrubar moradias e se mantém vivos no lugar mesmo que destroem, etc.
Para Jia Zhang-Ke esta paisagem é um lugar preparatório para articular possibilidades. Tudo está ali, perdido ou não, desejando tirar a poeira da velha China e simular modernidade. E tudo isso, mesclando dever e beleza. Dever, quando se coloca de lado os sonhos e o primado passa a ser trabalhar, sobreviver a qualquer custo; e beleza, pela impossibilidade de anular aquilo que se tem como esperança, mesmo que efêmera, mesmo que sem juízo. Como exemplo deste lugar de desterro e sonhos, uma cena responde bem a isso: "O lugar é insólito. A luz ambiente é esverdeada. Então, um teto simples, uma cortina verde ao fundo, e uma cerca/tapume de madeira. No centro desta imagem encontra-se uma jovem. Ela está imóvel, com seus braços formando um 'v' à frente de seu peito. Como tudo mais verde, usa uma camiseta também verde. Deste ambiente, corta-se para Shen Hong. Ela aparece primeiro num barco e depois percorrendo um caminho que não se sabe onde. Neste caminho essa jovem a procura:
- É visitante, não é?
- Sim.
- Tem um minuto?
- O que foi?
- Quero perguntar uma coisa. Pode me ajudar?
- Claro.
- Meu nome é Chunyu. Na sua cidade, estão precisando de empregadas? Tenho 16 anos.
- Tão jovem! – Diz Shen Hong, que até então olhava para Chunyu, desviando seu olhar para a represa. E diz:
- Está escurecendo.
- É. Já estamos acostumados. De onde a senhora é?
- De Shanxi. – Ela diz. Mas parece não estar mais ali, tomada que foi pelo horizonte, que é também o seu. E como chegou, como se essa jovem jamais a tivesse tocado, Shen Hong lhe diz: – Tchau.
Com os lábios presos, e expressões de desilusão e desânimo a jovem observa… e observa parecendo lamentar-se por não poder sair dali e conseguir algum trabalho, que neste momento pode ser o seu único sonho.
Em Still Life, belas imagens coexistêm entre brutalidade e parcimônia. Quando Han Sanming é levado na garupa de uma motocicleta até o seu hotel, vê-se como panorâmica o que restou de um antigo bairro de Fengjie, e ele é feio, semelhante a uma boca doente, repleta de dentes estragados, prontos para serem arrancados. Mas, há vida ali, apesar de tudo. As pessoas colaboram umas com as outras, situam-se nessa decadência, reconhecem o que está acontecendo e vão levando. Nesta cena, aparecem dois homens pintando no alto em uma parede o nível da terceira fase do lago, de 156,5 m. E a câmera abre a imagem e ela se amplia até perder-se numa imensidão majestosa. E o feio se esconde sobre o azulado da represa e sobre sua própria marcha. E aquilo que cheira à morte atesta que a vida pode estar ao lado do entulho, do que beira ao fim. Nas mãos de Jia Zhang-Ke está imagem pesada ganha contornos poéticos.
Há, ainda, como uma constante, a grandiosa imagem do espírito do Yangtzé. E, incorporado à ele, toda obra da velha e da nova China que ali se prostam e se advertem. Margens azuladas, imagens quase esfumaçadas por tanto verde, entrecortadas por um branco fosco, que ao longe demonstram a presença humana, como um contingente de nada. E foi esta fotografia que me fez lembrar do velho filósofo Hsün-Tsée de suas palavras:
(…) Vós dependeis das coisas e vos maravilhais diante delas: Por que não desenvolver vossa própria capacidade e transformá-las? Vós meditais sobre o que torna uma coisa uma coisa: Por que não ordenar as coisas de modo a não desperdiçá-las? Vós buscais em vão a causa das coisas: Por que não usufruir e ampliar-se do que elas produzem? Portanto, digo: desdenhar o homem e especular sobre a Natureza é mal compreender os fatos do Universo.
E seguindo este velho pensamennto, os chineses vão transformando o mundo a sua volta, mas, a despeito de Hsün-Tsé, desdenhando do homem, agora um cidadão menor. E neste caso, uma máxima que serve para quase tudo: uma ação perde seu valor quando acredita que pode abandonar a condição humana.
Outra imagem emblemática: o encontro de Shen Hong e seu marido às margens do lago da represa das Três Gargantas. Shen Hong quer o divórcio, e está ali para dizer isso. Não é à toa que, mesmo que ao fundo desta cena a barragem se estenda por toda imensidão, ela transparesse fragilidade, como uma natureza morta, como se esse tipo de esforço fosse sempre em vão e jamais conseguisse ser maior do que a menor de nossas dores. E então, a majestosa obra que um povo se desdobrou para realizar desaparece, ofuscada pelo desejo mais simples de alguém que se revela à caminho de si mesma e diz: – basta! E ao dizer o que queria, não há mais nenhum interesse para Shen Hong em estar ali. Ela deixa esse lugar… ele não lhe diz nada.
Ou seja: em Still Life, o mundo de Jia Zhang-Ke é o mundo em que a simplicidade renova nossa humanidade, nem incomunicável, nem absurda, mas inseparável de todos os desdobramentos que o próprio homem cria a partir do exercício dessa humanidade.
III - Como podemos esquecer de nós mesmos?
São muitos os tipos que passam por Still Life. Eles acompanham os percursos de Han Sanming e Shen Hong, que dão lugar a quase tudo o que ocorre em Fengjie, palco de todas as ocorrências.
A personagem de Han Sanming exprime a profunda singeleza da vida. Ele é pequeno, incapaz de qualquer gesto brusco, parece existir à espreita da loucura humana. Tanto que, ainda no início do filme, quando ele desce de um Ferry Boalt e é conduzido por alguns malandros para assistir a um mísero espetáculo de mágica e neste caso, ser roubado, ele se mantém quieto, não fala, não desgruda de sua pequena bolsa. E quando é forçado a largá-la, após uma sacudidela bem forte, mesmo aí, nada diz ou resmunga. Seu jeito não cede ou intimida-se. E mesmo que tenha duas peças de roupa e alguns poucos objetos em sua mala, ele parece completo, sem qualquer sinal de deficiência. Não lhe falta coragem para buscar o que tanto quer.
Às vezes o que lhe acontece pode nos levar a vê-lo como alguém resignado. Não creio nisso! Ele é um homem do interior, um homem das minas de carvão, que se arrisca dia a dia. Ele não desconhece a morte. Talvez, por isso, tenha tanto do passado chinês. É alguém concreto, de fácil visibilidade, que não se esconde de encontros firmados ao acaso das circunstâncias, onde se percebe os sinais de uma sociedade que ainda não desapareceu sobre os laços de relações superficiais. Ou seja, ele ainda não se familizarizou com a tolice de se desejar a vida a qualquer preço… coisa de uma sociedade hiperreal.
E nada parece atrapalhar o que ele quer. E se no alto, ou seja, acima da Fengjie que cai, surge uma outra cidade – com seus complexos edifícios e sua exibição arquitetônica – como fruto da nova fantasia chinesa, Sanming a ignora. Como se a sua encenação e a sua cenografia não o absorvessem. Sua paixão passa por outras cenas e ele esta muito mais situado onde tudo desmorona, do que para a suposta fascinação que se revela acima de todos eles. Tanto que ao chegar a Fengjie como mais um entre outros anônimos, a única coisa que traz é um endereço. Seu primeiro obstáculo: chegar à esse lugar que nunca viu. E chega….
No entanto, no universo das Três Gargantas qualquer lugar pode estar sob as águas. E a rua que procura não existe mais. Barcos estão sobre ela, e ainda, a vertigem de uma água pesada, profunda. Observando o que desapareceu, ele questiona o taxista que o levou, sem desistir do que procura. Ali, porém, não há nada para ser feito. Sem dados, sem o que desejava, segue com o seu condutor, convencido a continuar. É então levado a um hotel e, posteriormente, a um trabalho.
Quanto à Shen Hong, ela está um pouco mais ligada a essa nova China. Não foi comprada – ao casar -,
parece que amou seu homem, alcançou uma profissão – enfermeira – e longe de uma suposta domesticidade ou de se entregar ao sacrifício nada honrroso de uma espera inútil – a volta de seu marido – ela sai à procura desse homem para encerrar algo e seguir seu próprio caminho, em meio à transfiguração de tantas relações e territórios.
Percorrendo a cidade de Fengjie, Shen Hong não mede esforços para encontrar seu marido. Em seu percurso, assiste tanto a demolição como a construção desta cidade. E não se mostra como cúmplice de nada, como se a única China que a interessasse fosse àquela em que os seus interesses estivessem no centro.
Assim, Still Life! Natureza morta ou melhor, uma não-natureza. Mais correto, talvez, natureza secundada, sempre inquieta, uma armadilha humana. Nessa natureza e suas distorções, a única certeza é que ninguém está à deriva. E se manipulados ou seduzidos por determinados fins, que no curso desse espetáculo feito de luzes, grandes avenidas, cores reluzentes e água, muita água, o que se sente é que todos ali parecem reconhecer que a vida e tudo que ela traz como maquinaria, não têm espírito ou calor. E que eles devem passar, mesmo que pisando sobre escombros, presos a uma estética menor, sem grandes desejos. Essa é a questão: como podemos esquecer de nós mesmos? Esta frase é dita por Mark, um colega de Sanming, que simula estar ou se dar bem num território de pequenos 'marginais'. Mas, na verdade, Mark se mostra muito frágil para se incorporar num mundo que imobiliza ilusões, tornando-se ali numa presa quase inocente. Neste mundo, quem não se deixa à ele ou não aprende a ignorá-lo, será transformado em uma de suas vítimas.
Se todos estão deslocados? Quem não se sentiria deslocado num mundo que parece às avessas e, a cada dia, mais indiferente as necessidades do homem comum? O que diria? O que nos mostra Jia Zhang-Ke. Que o homem comum, por se ligar tanto ao mundo e ao sacrifício diário de ter que masserá-lo, de ter que compor com ele a sua peleja, imaginando-o por sua objetividade e não por sua aleatoriedade, que esse homem consegue atravessá-lo sem cair; a queda é quase sempre algo para quem se sente despojado de algo.
As Três Gargantas? Para Han Sanming uma outra obra qualquer, nada mais. E se há uma China tentando alterar a sua velha história, utilizando como mercadoria a ilusão do progresso, essa mercadoria ainda não consegue alarmar homens como ele. A água, as cidades destruídas, as populações que foram deslocadas, uma certa sedução e a euforia de milhões de chineses, tudo isso não excede à história humana… desde sempre.
Não podemos esquecer de nós mesmos! E no fundo, não esquecemos. Há uma lógica imoral, conduzindo toda gratuidade presente neste frenesi de relações. Fantasmagorias? Claro que não! Lógica humana. É disso que trata o mestre Jia Zhang-Ke: de nós mesmos, frente a um aparato que parece ser invisível e não é. E esse nós está sob a pressão de uma cultura-predatória, que privilegia certos aspectos de nossa existência e despreza outros. Por isso o aspecto tão marcante dessa frase simples proferida por Mark, ao se referir a uma simples música: não podemos esquecer de nós mesmos. O Estado, as macro-estruturas, as agências de rating, estão se lixando para a situação de culturas locais, para o destino ou mesmo, para a sobrevivência de certos grupos. Para esses grupos, esse nós mesmos refere-se aos grandes setores empresariais… só a eles.
Assim, indiferente ao que parece destruir uma história ou mesmo silenciá-la, Still Life traça um olhar que despreende do destino o sentido de que, para todos nós, e ali, para o povo chinês, o que resta é a maldição do progresso. Mas, maldição ou não, a vida continua. No sentido de perigo, essa maldição lembra-me Heidegger apud Lepargneur,6
A atividade humana torna-se história apenas quando está em relação com uma dispensação do destino… O homem em todo seu ser é sempre regido pelo destino do desvelamento… O destino do desvelamento não é um perigo qualquer, é o perigo.
Jia Zhang-Ke desvela esse o homem que sabe que deve seguir bebendo de uma dada situação, sobre um ritmo às vezes intolerável. Perigo? Viver é sempre perigoso! E homens da estirpe de Han Senming não perdem tempo espreitando sinais ou o próprio sofrimento humano; eles fazem… projetam-se sobre o que são levados à
reconhecer. E se a maioria está reduzida à certeza de um certo deslocamento, deslocar-se não implica em morrer, em converter-se num outro, em limitar-se a
obedecer. A cegueira e a perda das ilusões são coisas para quem ignora a própria vida.
As personagens de Still Life vivem a vida como ela é. E é claro, sentem o perigo sobre sua história. Mas, o que há para fazer? Elas vivenciam escolhas que aparecem, estão sob pressão e são pressionadas, se ajustam e não adormecem. E não se trata de mostrar unicamente a miséria humana mas, de como a partir de um tipo de miséria é possivel jogar com supostas divindades – do capital – e, no campo mesmo desse mundo urbano que aparece, mostrar uma outra cara para a cidade, às vezes decadente, às vezes marginal… mas eternamente viva. Como quer Marc Augé,7
O que se desenha sob nossos olhos, com a urbanização do mundo, aparenta-se assim um deslocamento da utopia, à aparição de um mundo do pressentimento de dimensões globais, do planeta, como a cidade, ela mesma, havia sido outrora o objeto de pressentimentos e projeções. Nesse sentido, a história começa ou recomeça, mas numa outra escala. Ora, ela nunca foi um rio tranquilo, sabe-se. Por outro lado, a consciência desse novo prazo, por exaltante que seja, excede os limites da imaginação humana e pode apressá-la e até aterrorizá-la.
Não importa! O homem comum passará por isso e continuará vivendo a sua vida. Como em Still Life! E quaisquer que sejam as consequências que virão, é razoável admitir que nem tudo, de uma cultura, pode ser destruído. E sempre, é essa regularidade presente no comportamento da maioria, de uma maioria esquecida e tida como ordinária, o que passa para o amanhã e sobrevive. E sobrevive sabendo de que não podemos esquecer de nós mesmos.
IV – Caminhando por Fengjie… com Jia Zhang-Ke
Grandes obras nos tencionam! E elas são grandes por isso. Colam ao nosso corpo com uma tal naturalidade que só aos poucos podemos reconhecer sua recepção. E mesmo recolhendo um pouco de sua atmosfera, do que pode expor ou simular, nunca podemos esperar o grau de sua extensão. Só após a sua 'degustação' e uma apropriada digestão é que vamos perceber o seu potencial. Por isso são quase sempre grandes achados. Aproximam-se como boas referências e crescem como algo que reforça para o espectador o que de comum há de sua linguagem na linguagem mencionada, mas pouco elaborada por ele.
O espectador vibra na medida em que, da obra, partem elementos que cercam seus olhos e atribuem-lhe novas revelações. Então: a obra como um utensílio capaz de barganhar entendimento, ou seja, de que pelo outro – pelo olhar/obra do outro -, pode-se desencadear no olhar que o observa, uma conexão entre sentidos, que revigora ou desperta outros significados sobre o que até então era tido como estranho, como minha familiaridade estranha. Como se essa obra abrisse ou reconectasse visões. Visões que se aproximam por um gesto 'amigo'. O amigo, neste caso, Jia Zhang-Ke. Mas neste caminho tenho muitos: Kurosawa, Kiarostami, Truffaut, Clint Eastwood, Fellini, Hsiao-Hsien, Bergman, Irmãos Cohen, Yasujiro Ozu etc.
O que um bom filme é capaz de fazer? Um bom filme nos coloca no calor de uma história feita à distância, nos jogando secretamente sobre sua comicidade, sobre o seu terror ou na sua mais densa normalidade. Nos faz sair do lugar sem nos mover, nos emprestando experiências e, como se num exercício iniciático, nos envolvendo com ritos que jamais suporíamos. É como se suas imagens encarnassem uma soberania momentânea e, saltando da tela para a imaginação, levasse o espectador a subjetivar um mundo-outro, que vai involuntariamente afastá-lo de seu lugar e aproximá-lo – se ocorrer receptividade – de um outro de si mesmo. E neste momento tudo cessa e a mais profunda cerimônia aparece para situar seu jogo e todas as suas expressões sobre a celebração de quem escolheu viver esse eclipse do real. Como quer Baudrillard,8
Foi para salvar a ilusão, neste sentido, isto é, para salvar o desvio mínimo que permite que o real jogue com a sua própria realidade, que jogue com a desaparição o real, exaltando as suas aparências, foi para salvar esta regra irônica do jogo que trabalharam, durante séculos, aquilo que designamos por a arte, o teatro, a linguagem. Neste sentido, conservaram alguma coisa da cerimônia e do ritual, na sua violência feita ao real. Foi na arte que se preservou algo do poder cerimonial e iniciático, mesmo consideravelmente enfraquecido (e, certamente, não naquilo a que chamamos, hoje, cerimônia: monumentos aos mortos, distribuição de prêmios, jogos Olímpicos, etc.). Foi aí que se conservou uma estratégia das aparências, isto é, um domínio das aparições e das desaparições, e, em particular, o domínio sacrificial do eclipse do real.
Neste domínio "sacrificial do eclipse do real", é que se percebe as possibilidades de uma linguagem. E é gostoso quando o registro de uma linguagem não compromete o que queremos jogar, e consegue ultrapassar o jogo de uma realidade que quer se apresentar como despojada de valores, plena em liberdade, preocupada em esconder de si mesma a sua máscara. Os mestres conseguem olhar num fundo das máscaras! Por isso, é quase uma virtuose compreender a interação entre criador e intérprete, entre 'o corpo de uma obra' e o seu leitor. Então, a necessidade de saber: com quem nos filiamos? Quais são as figuras que selecionamos para traduzir certas experiências e, sobre a realidade, nos ajudar a tecer um ou mais sentidos? E ainda, se percebemos essa agoridade como produto de uma contemporaneidade escorregadia, aí então nossas preocupações devem aludir, com muito mais rigor, com quem nos mobilizaremos para conceber esta paisagem.
Aqui, pensando no Oriente – e no cinema chinês – e nas figuras com as quais nos filiamos, Jia Zhang-Ke é uma delas. Por suas mãos uma outra China é desenhada – não a do Estado ou de certas corporações. A sua forma de olhar a China, de não condenar a rotinização das coisas comuns, de tirar de dentro do que parece podre o movimento de todos, sobre condições, muitas vezes, de extrema desvantagem, apresenta-se como uma grande arte.
Tratar a vida como ela se apresenta é desafiador. O desafio está em não se lamentar diante do mundo que nos abarca, e saber representá-lo. Caso contrário, em função do silêncio sobre o real, que não consegue ligá-lo à nada, aniquila-se qualquer sentido. E como afirma Baudrillard,9
Para que uma coisa tenha sentido, é-lhe precisa uma cena, e para que haja uma cena, é-lhe precisa uma ilusão, um mínimo de ilusão, de movimento imaginário, de desafio ao real, que nos conquiste, que nos seduza, que nos revolve.
Em Still Life o sentido está colado na superfície, sobre a mais dura representação de uma rotina enfrentada por tantos chineses invisíveis. E ao contrário de um sentimento de repugnância por essa irrupção do comum, o comum irrompe na forma louvável de como se pode assentar nesse território, um assentamento de possibilidades, ao custo de se reconhecer o que é sobreviver.
Assim, caminhar com Jia Zhang-Ke por Fengjie é uma experiência sublime. Com ele aprendemos a olhar uma dada gente, habilmente preparada para se organizar em qualquer lugar, seja até debaixo de uma ponte – o que acontece com o Sr. He, ex-proprietário do Chinese Palece Inn. Outra coisa essencial é que ele quebra a noção, quase sempre frequente, de que cessada uma suposta prosperidade, que a vida desaparece. Ohhhh! A vida é muito mais do que realmente podemos supor ou ver. Em suas formas cambiantes, cada indivíduo se arranja para transitar de um a outro lado, escancarado pelo que alcançou. Este é o caso do sr. Ma, irmão mais velho da esposa de Han Sanming. A inundação e a consequente perda de sua casa não foram suficientes para tirá-lo do jogo. Morando em seu barco, preso ao Yangtze, Ele e seus empregados se adaptam ao fluxo desse rio e às novas necessidades. Perderam, mas nem por isso estão mortos. E se no encontro entre Sanming e Ma a indiferença é grande, acho que é simples explicá-la: num dia árduo de trabalho e na hora do almoço, ser cobrado por algo não é gratificante, nem louvável. E ainda mais, quando o assunto não lhe diz muito coisa… num dado tempo.
Um de seus traços marcantes: o olhar lento e aberto de sua fotografia. Há um momento em que Han Sanming está no alto de um terraço semi-destruído, com uma nota de 10 Yuan nas mãos. Sanming, ao mesmo tempo em que observa o desenho das Três Gargantas nessa nota, tem ao fundo a Represa e essa mesma Garganta. E neste momento, o som ao longe do apito de um barco… e a câmera desliza sobre um cenário que descreve a demolição de um antigo bairro, ao som de marretas, picaretas e martelos. Ruínas! E entre elas, homens trabalhando. E repentinamente, como se nascendo dos escombros, três funcionários do governo, vestidos de branco, com suas luvas amarelas, surgem dedetizando o lugar. A câmera segue, como num registro arqueológico, olhando vestígios que não se encaixam em mais nada. E em uma parede esbranquiçada – do que restou de uma cozinha (?) – um cartaz ostenta ironicamente: "Esforce-se". Jia Zhang-Ke mantém a rotina… A imagem insiste nos homens que dedetizam esse lugar agora sem homens. Novamente, como num crescendo, uma música espalha-se pelo ambiente. É um garoto bem jovem, com uma voz melodiosamente triste, quem canta…
Faça meus sonhos se realizarem
Sempre serei sincero com você (Ele está de lado, pouco visível. Sobre seu corpo incide uma sombra bem leve, que permite visualizar seu dorso. A luz cai sobre a janela, está nas paredes e do lado de fora… e ele canta)
Custe o que custar
Eu vou vencer
Vou sussurrar no seu ouvido
Eu amo você
Eu amo você
Como o rato ama o arroz
Estarei ao seu lado
Venha o que vier.
E sua arte ainda tem outros truques! E eles dão a este filme uma magia superior. O primeiro, o de situar este filme a partir de passagens como: Cigarros, Liquor, Chá, e por último, Bala. O segundo, ao criar sobre essa imageria tão comum, feita de destruição e renascimento, uma realidade acometida pelo absurdo. Aqui, três absurdos: De uma luz semelhante a um OVNI, que sobrevoa as montanhas que margeiam o YangTze; da decolagem de uma estrutura de concreto, semelhante a um edifício e, por fim, um homem na corta bamba, entre edifícios semi-destruídos.
Mas, o que é o obsurdo? A referência a esses elementos estranhos que aparecem em algumas cenas, ou a própria fúria, uma fúria aterradora capaz de deslocar mais de 3 milhões de pessoas. O que pode ser equivalente ao abandono de um espaço que, por séculos, serviu de abrigo para certos grupos, suas famílias, suas histórias? O que pode ser absurdo se não a prova de que o homem é capaz de preterir a vida posta, com sua longa jornada e suas estruturas já sedimentadas, por uma promessa mercadológica, predestinada ao que não se sabe? Não é à toa que o recurso surreal, nem um pouco escandaloso, mas demasiadamente irônico, aparece nesta obra.
Observem, nesta entrevista concedida ao crítico de cinema Felipe Bragança10, o que Jia Zhang-Ke diz sobre sua arte:
- (FB) Queria que você falasse das suas estratégias de representação que tem, de diferentes maneiras, procurado combinar um sentido de topografia gestual com formas de derivação gráfica contemporânea. Como você pensa essa articulação entre a entrega à navegação da imagem e as proposições/intervenções poéticas e fantásticas presentes em seus dois últimos filmes (O Mundo e Still Life)?
- (JZK) Não me interessa a contemplação como gesto final. Alguns dos sentidos de realidade não podem ser expressados pela mera observação do real. Em muitos momentos, a intervenção “surrealista” é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo. Em Still Life, uma cidade de 2600 anos (e que tinha 1 milhão de habitantes) foi totalmente banida, acabada em poucos anos. Essa velocidade com que as coisas acontecem hoje na China parecem ultrapassar a capacidade dos sentidos realistas de apreensão da vida e de representação cinematográfica. Daí, pensemos, a “decolagem” de um edifício inteiro em computação gráfica ou a presença de um disco voador podem indicar ou apresentar de forma muito mais rica o sentimento daquele espaço. De forma distinta, mas também partindo do mesmo sentido de verdade como afirmação de um sentimento, em O Mundo eu optei pela utilização de inserts de animação em flash (foto acima) por entender que ali ela revelava um olhar para um novo espaço de existência que foi trazido pelas redes digitais de informação. É um espaço virtual, mas um espaço virtual que realmente existe e por isso, é parte integrante do mundo real – ainda que como imitação do sonho. Portanto, são dois caminhos diferentes de se utilizar essas intervenções gráficas de que você fala. Cada qual pensando uma forma de discurso diferente que dialoga com as imagens de observação cotidiana. Ambas me interessam. Ambas enriquecem o sentido de imersão que me interessa.
De mãos dadas com esse cineasta pude sentir Fengjie, quase inalar seus odores e partilhar seu renascimento e sua morte. E me senti quase tocando no solo deste lugar tão longe. E ainda, como um bom guia, ele nos oferece uma bela razão para nos aferrarmos a sua turnê de pouco mais de uma hora: andar com pessoas comuns, reféns de seu espaço e de suas buscas… todos demasiadamente humanos.
CONCLUINDO
Still Life traz como tópica uma estética mínima, quase ociosa em seus planos. Mínima, não por ausência, mas por permanecer fiel à exuberância de uma paisagem que, mesmo saqueada, virada ao avesso ou estandartizada pela despesa humana, engole a tudo, com todos os seus hospédes ordinários, feitos de água, céu, luz, montanhas, noite, barcos, ruínas, calor, gente, sons etc. E sobre tudo isso, uma gente imersa na sua própria vida como trambiqueiros, demolidores, mestres-de-obras, putas, cantores, mágicos, barqueiros etc. Todos triviais. Mínima, então, por escolher o mundo antes de acolher o humano; por insistir em mencionar que, ajustando-se ou não, criando ou não histórias, nascendo ou atravessando o fim, ainda há o mundo.
No entanto, o lugar do mundo é o lugar do homem. Por isso não é necessário ter pressa. E Jia Zhang-Ke não a tem. Tanto que acompanha suas personagens sob uma outra duração, dando-lhes a possibilidade de crescerem sobre o tempo, sem a necessidade de cortá-lo. Como se tirasse se seus olhos a obrigação de se manter – sobre um cronômetro que se move para tocar permanentemente a casa dos milésimos de segundos – com presença, sempre em fuga. Ohhhh! Ele parece gostar de gente que ainda respira como gente.
Por isso, Still Life é uma obra com assinatura. Pressupõe uma percepção vigorosa, dissonante no roll das representações que teimam em afirmar a fantasmagoria do presente e a morte do homem.
Ao contrário de conferir palatabilidade às respostas que reiteram a falência do modelo atual de cultura e insistem que a vida não tem mais sentido ou que o "único significado disponível precisa ser encontrado num nível completamente abstrato, (…) representado por marcas como Dolce Gabana, Prada, Armani (…)"11, Jia Zhang-Ke pensa a alma humana como a alma do mundo, sob o abrigo da imensidão extasiante do mundo que o faz ser. Como? Por isso, creio, abraça o real procurando iluminá-lo com o que nasce desse real. E Ele não parece recusar o absurdo, ou o peso de sua ironia. O real mesmo parece queimar em suas mãos, como se o movimento de sua câmera, ávido por reconhecer a sua crueza, não pudesse se deter diante do que o preenche: a viva experiência de uma certa trajetória humana.
No entanto, não é um real a moda do velho realismo. O real não é um membro de uma escola, ou está sobre o domínio de um setor do conhecimento ou de uma arte. Pode ser retratado, manejado e reconstruído segundo cada olhar. Na verdade, o real guarda uma solidão inatingível. Solidão, porque indiferente a quem quer que o toque, jamais cede a sua rota, ou empresta seus usos.
No caso de Jia Zhang-Ke, ele parece enamorar-se do real. Não vejo outra forma para descrever sua forma de dissecá-lo, como que acariciando-o lentamente, sem forçá-lo em demazia, procurando alcançá-lo ajustanto a narrativa da camera à narrativa que traz a obsolescência do real à sua representação.
O 'cara' é meticulo! O que me vem a cabeça? Duas cenas: uma, com as personagens Wang Dongming – um arqueólogo – e Shen Hong, e a outra, a que retrata a morte de Mark. Na primeira, a paisagem é desconcertante. E nela, quase no topo do mundo, percorrendo um caminho irregular, de terra batida, um velho táxi verde para próximo de um conjunto habitacional onde mora Wang Dongming… eles descem. Passam por alguns moradores – é o que suponho – que estão do lado de fora de seus apartamentos, em grupos pequenos e em volta de algumas mesas jogando mahjong. O cenário é surpreendente. Alto, aqui, é altíssimo, é o cume de uma montanha. E é num lugar como este que moradias são erguidas, que pessoas passam a morar e dar sentido a si mesmas. Na segunda cena, Sanming está numa área de demolição com outros operários, tentanto falar com Mark, que não compareceu ao jantar que haviam marcado. E naquele meio, entre montes de tijolos, Sanming ouve o som do celular de seu amigo, uma música tradicional. E alí vai encontrá-lo debaixo de um desses montes: ele foi assassinado. Mas, não será ignorado. E nesse caminho, Sanming o conduzirá, desde o velamento de seu corpo e a oferenda de cigarros, até entregá-lo às águas. Nada de anormal. A questão é que entre ambos nunca se firmou um grande vínculo, conheciam-se à pouco. E mesmo assim, Sanming se ocupará dele, à margem de toda indiferença. E fará isso sozinho. Nesse meio onde se pode somar tanta destruição, são poucos os que dão valor à morte.
Nesses dois casos, sob a aparência nada aceitável de uma reurbanização apressada, com traços de inconsequência, o real torna-se uma narrativa fantástica. E para dar conta do que é fantástico, como afirma o próprio Jia Zhang-Ke "em muitos momentos a intervenção surrealista é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo". O surreal, então, como o que se confunde com o absurdo do real, com processos que bloqueiam um tipo de reflexão, acolhendo o que do real parece não ter sentido, mas que mobiliza toda produção de sentido.
Talvez, o respeito de Jia Zhang-Ke pelo despojo do real, e por isso, de retratar a existência sob a forma de existência destacada – imaginando-a inerradicável enquanto tal, tornando tão próximos território e gente -, nos leve a sensação de que o que está tão longe, está ao nosso lado, sobre uma outra familiaridade.
Foi a sensação que tive… estirado em minha cama, com Still Life na tela de LCD e com uma boa dose de Germana. Senti as paredes de meu quarto ficarem úmidas, e por tanta água, como se meu prédio estivesse sendo engolido pela represa das Três Gargantas. Fiquei ali fascinado com a capacidade deste sujeito de retratar tão bem àquelas figuras e de torná-las nossas, arrancando-as de seu lugar e fazendo-as nascer como se fossem evidências de São Paulo ou de outro centro urbano qualquer. E se me mantive atento por todo aquele percurso, no final acabei como o seu equilibrista, reconhecendo que o lugar que parecia inacessível, só era inacessível se mantivesse minha indiferença em relação à ele. E quando terminou, fui até a janela de meu quarto, no 6o. andar, na rua Augusta (Em São Paulo) e olhei com um pouco mais de paciência para uma turba agitada que caminha sem sentido esmolando prazer pelas bocas desdentadas que eles chamam de boate, bar ou casa noturna. E naquela hora, independentemente desse mundo que muda e das vidas que são conduzidas por ele, parei para olhar como todos seguem seus modos, e por aqui, bem distantes do tipo Han Sanming. Uma pena!!!
Mas eu sei, assim como em Fengjie, que basta que se caminhe um pouco por qualquer buraco, para que dele se possa tirar tipos espirituosos… todos eles cheios de boas histórias. Boas histórias? Como essa de Jia Zhang-Ke… em Still Life.
*Publicado originariamente no livro “O Cinema como Itinerário de Formação”, Editora Képos.
Notas:
1. Truffaut, F. O Prazer dos Olhos – Escritos sobre cinema. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed. 2005. p. 331
2. Durante todo o texto opto pela referência ao título original: Still Life. Não gosto da escolha que fizeram por aqui, 'Em busca da vida'. Em busca da vida traz uma ideia pessimista para as personagens, como se estivessem perdidas, o que não é correto. Podem estar deslocadas, retomando novos lugares, mas quando se olha o movimento, o trabalho e as relações que estabelecem, todas se movem contaminadas pelo que vivem, repletas de vida, bebendo a existência que alcançam, sem negar o que podem no dia a dia… vivos, bem vivos. Não há algo para ser buscado! Há algo para ser feito e pronto.
3. Lipovetsky, G. A Era do Vazio. Lisboa, Relógio D'Água, 1989.
4. Nada elegante – O mundo de brilho e plástico das pessoas e avenidas de Dubai, Nova York, Tokio, a nova Pequim, São Paulo etc. Território de invenção da obesidade, do obsceno, do elogio à aparência e à lógica do 'gênio maléfico do objeto' (Baudrillard).
5. Cid Nader. Still Life. Cinequanon.art/2007
in: http://www.cinequanon.art.br/filmefestival_detalhe34.php?id=611&id_festival=104
6. Lepargneur, H. Destino e Identidade. Campinas, Papirus, 1989. p. 1
7. Augé, M. Por uma Antropologia da Mobilidade. Maceió, EDUFAL:UNESP, 2020. p. 94
8. Baudrillard, J. As Estratégias Fatais. Lisboa, Estampa, 1990. p. 145
9. Baudrillard, J. As Estratégias Fatais. Lisboa, Estampa, 1990. p. 55
10. Felipe Bragança. Sentimento do real, imaginação da história: seis perguntas para Jia Zhang-ke. Cinética, 06/2007 in: http://www.revistacinetica.com.br/entrevistajia.htm
11. Svendsen, L. Filosofia do Tédio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 2006. p. 83
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