As Neves de Kilimandjaro
As Neves do Kilimandjaro (Les Neiges du Kilimandjaro, 2011), de Robert Guédiguian
Dia desses lembrei de uma provocação de Paulo Francis sobre a falta de matizes nos juízos de valor dos brasileiros. Ou se adora uma coisa, ou se detesta. Ou se é contra, ou a favor. Dizia o escritor que era um dos indícios de subdesenvolvimento, ou algo assim.
Lembrei disso a propósito das reações, contra e a favor, ao show do Foo Fighters no último Lollapallooza. Nunca entendi essa dualidade. Não entendo alguém adorar a banda de Dave Grohl, como também não entendo alguém detestá-la. Nenhum disco deles é verdadeiramente bom, mas sempre há algo interessante em cada um deles.
Em música, esse tipo de reação é bem mais comum, mas também acontece vez ou outra com a recepção a algum filme. O caso da vez é As Neves do Kilimandjaro. Não aquele dirigido por Henry King no começo dos anos 1950, mas o recente, de Robert Guédiguian, que não tem nada a ver com o antigo.
Paulo Francis, na verdade, estava errado. O que falta ao brasileiro, ao menos quando ele se leva a sério (o que não acontece nas redes sociais, em que as pessoas se manifestam meio que por farra, sem pensar muito no que escrevem), é posicionamento, estar a favor ou contra, ser contundente e se colocar na berlinda. Não será este texto que suprirá tal falta, pois gosto de As Neves do Kilimandjaro moderadamente.
Pessoas que respeito, nada subdesenvolvidas, odeiam ou adoram o filme, incondicionalmente. Uns torcem o nariz como se o filme exalasse um odor insuportável, outros se entusiasmam como se fosse uma obra-prima perdida, algo que recuperasse o segredo escondido dos clássicos do passado.
Quem detesta ignora os momentos felizes, sobretudo os dois que acontecem próximos ao final (que retomam uma tradição melodramática interessante, ainda que sejam momentos formulaicos), ou aquela cena em que o protagonista aprende a falar swali, pois se recusa a falar o inglês, língua de colonizadores. Os que adoram fazem vista grossa a algumas bobeiras do roteiro, quase sempre envolvendo a personagem de Ariane Ascaride (a Marie-Jo, de um dos melhores Guediguian) – “bebida grega, muito boa”, após a descoberta de tal bebida, a metaxa, ou “você precisa de uma dose de Marie Brizard”, ao saber que a filha estava com problemas no relacionamento (para essa personagem interessa mais fazer uma piada de roteiro do que procurar entender o que se passa com a filha). São pequenos ganchos utilizados para fazer o espectador rir pela repetição, pelo reconhecimento de algo pelo qual havia passado minutos antes. É algo muito usado em filmes comerciais, que raramente deixa de comprometer a estrutura narrativa. Os fãs ignoram ou relevam também aquele diálogo patético da mesma personagem com a mãe ausente dos três meninos vitimados pelo crime que movimenta o filme, que por sinal é um assalto que parece ter sido filmado meio nas coxas.
Incomoda também a maneira como é trabalhado o básico campo/contracampo. Por vezes os cortes são tão rápidos que não conseguimos observar as reações dos atores, as nuances de suas interpretações. Atores que, por sinal, são os mesmos que acompanham Guédiguian desde o começo de sua carreira: Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan e a já mencionada Ascaride.
A trama gira em torno da demissão de vinte funcionários de uma fábrica de Marselha, onde o diretor ambienta a maior parte de seus filmes. Um dos demitidos se envolve num assalto à casa do personagem de Darroussin, espécie de herói da integridade, um homem raro nestes dias sinistros. Esse assaltante é descoberto e irá para a cadeia, deixando desamparado seus dois irmãos mais novos, ainda crianças, que raramente recebem a visita da mãe.
É uma história que lembra as que Jean-Pierre e Luc Dardenne gostam de explorar, ainda que o estilo dos irmãos belgas esteja mais próximo do cinema austero de Michael Haneke do que do cinema fraternal de Guédiguian. Os acontecimentos permitem ao diretor explorar temas como a culpa, o sentimento de vingança, a vulnerabilidade, o abandono e a amizade. Nem todos os temas são explorados a contento, mas os que se delineiam satisfatoriamente (a culpa e a amizade, sobretudo) fazem com que As Neves do Kilimandjaro se insira, apesar dos problemas, entre os filmes bem-sucedidos do irregular Guédiguian, ao lado de Marie-Jo e Seus Amores, A Cidade Está Tranquila e O Último Miterrand.
Sérgio Alpendre
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