Um Método Perigoso
Um Método Perigoso (A Dangerous Method, 2011), de David Cronenberg
Ver Um Método Perigoso, o último filme de David Cronenberg, pelo filtro dos outros filmes do diretor é algo inevitável, mas é preciso ir além e não ficar preso a tais referências. Os traços que caracterizaram autor nos seus quase vinte filmes anteriores: as bizarrices, o horror extremado e as marcas da violência não aparecem de maneira tão acentuada em Um Método Perigoso, precisam ser enxergados com lupa e forçando muito os olhos; mas outra característica fundamental está toda no filme: a mente humana, sua capacidade criadora, o mergulho pelos labirintos que a engendram, a formação do sujeito a partir do outro, das relações que trava e que o espelham.
Já sob o ponto de vista formal, este parece ser o filme mais comportado do diretor – mais conformado talvez seja o melhor termo. Cronenberg dirige aqui com sutileza, sem querer sobrepor a forma do filme ao conteúdo do filme, amalgamando-os em detrimento do primeiro. Toda a grandiosidade do filme está no seu pano de fundo, nos personagens célebres: Freud e Jung e também em Sabina Spielrein. Cronenberg se curva a eles e os retrata de uma maneira tão neutra, tão clássica que nem parece Cronenberg, ou nem parece o Cronenberg que gostamos ou conhecemos mais.
Para os que não sabem do se trata o filme, um breve parênteses: Um Método Perigoso trata do nascimento da psicanalise a partir da relação de Jung com a sua paciente mais famosa, Sabina Spielrein, que depois se tornaria sua amante e colega de profissão; as relações deste com o seu mestre, Freud, com o qual romperia; além do triângulo, que não chega a ser amoroso, mas de tutela e de autoridade intelectual, entre Jung, Freud e Sabina.
Com um material tão denso, tão conhecido e tão documentado, Cronenberg age de maneira minuciosa e controla personagens e trama com muito respeito. Tal respeito limita o poder de ação do filme, sua mobilidade, mas não o engessa. Cronenberg trabalha no estreito limite entre a reverência e a fidelidade à história e à possibilidade de contar a história de forma artística, colocando em questão, nas entrelinhas, e de maneira mais profunda, a própria discussão entre experiência – forma e formação – e teoria. E é por isso que é necessário ler o filme por um viés mais descolado dos seus filmes anteriores.
E se o tema aqui se amolda a forma, se Cronenberg é outro, sem deixar de ser Cronenberg, e outro devido ao contato com Jung, Freud e Sabina, o mesmo vai ocorrer no choque entre Jung e Sabina, Jung e Gross e Jung e Freud. Sabina move Jung a outro lugar, para uma outra forma, à medida que o racionalismo e puritanismo dele entram em conflito com o desejo e com o adultério. E, se Sabina é o objeto deste desejo, é Gross, o psicólogo paciente enviado a Jung por Freud, a figura central na desestabilização de Jung. Jung numa de suas falas relata como Gross era convincente nas suas teses poligâmicas.
O contato forma e deforma Jung; modifica Sabina, a mais maleável a estas transformações; já Freud, por sua vez, é dos três, e no contexto do filme, o menos vulnerável ao “contágio” humano (de)formador, obstinado que é em criar a sua teoria. Jung rompe com ele, entre outros motivos de ordem e projeto intelectual, pelo fato de Freud não contar a ele um sonho, sonho que segundo Freud o faria perder a autoridade. Esse resguardo, esse fechar-se ao outro como forma de proteção, como escudo para não perder-se ou transformar-se, aplica-se muito também a cineastas que estabilizados num campo temático e num modo de dirigir não se abrem a novas experiências (de)formadoras, levando ou não estas experiências a outros caminhos. Tal método pode ser perigoso, desestabilizador e desterrador.
E método não é apenas uma forma profissional de lidar com a teoria e o objeto dela: o paciente/filme; é também a formação, o caminho seguido para unir a teoria à prática, o filme à sua construção formal.
Quando Freud e Sabina, que são judeus, avaliam sua relação com Jung, ariano, e desta oposição fazem comentários maliciosos, mas sagazes do confronto entre as duas culturas, o que está em jogo não somente a piada, mas parece que o que se tem em vista é a visão mística de Jung que prenuncia a desgraça que abaterá sobre o trio com o nazismo. Da mesma forma, quando Sabina e Freud falam sobre a pulsão vital e a pulsão de morte, trabalho dela e do qual Freud tirará bastante proveito. Tal diálogo parece espelhar a relação desta com a vida e com Jung.
A matéria de vida formando pontos de vista racionais, daí o termo “teoria” em grego, e no conflito da experiência nem sempre racional com a teoria a ser posta em prática, Cronenberg busca nesses personagens, sobretudo Jung e Freud, visto que Sabina é a própria explosão, o humano em conflito com o gênio criador, o duplo em si, do homem engenhoso cujas teses serviram a gerações e do homem na gênese deste pensamento. Sujeito, ele, homem, a forças que podem tirá-lo do caminho e de qualquer caminho. Eis o método perigoso em sua essência, e muito mais centrado na possibilidade de perder-se no rumo traçado em direção à busca do saber, do que a qualquer convenção de caráter social, moral, burguês, ainda que tais experiências, adúlteras ou não, não devam ser vistas de forma anacrônica ou abafadas visto que a psicanálise e a teoria de Jung, Freud e Sabina não gozavam ainda de grande prestígio e confiança.
Nesse sentido, a cena de Jung colocando vários pedaços de carne no prato, logo no seu primeiro encontro com Freud, para a surpresa e minuciosa observação deste, serve também como metáfora para a postura do próprio Cronenberg frente ao texto que trabalha. Neste encontro direto com a psicanálise e a teoria que dá conta da mente humana, o diretor canadense não se mostra muito guloso, age com serenidade e até de maneira reservada. E tal moderação e reserva ficam impressas no filme. Entre o encontro comedido e o avassalador, Cronenberg fica com o primeiro: é mais freudiano que jungiano.
Cesar Zamberlan
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br