Ano VII

Trilha no fim do mundo

domingo mar 25, 2012

No topo da Cradle Mountain

Aperto o “play”, e a história recomeça. Saímos do extremo norte e seguimos de volta rumo a Hobart. Muito mais do que um simples regresso, grandes experiências aconteceriam nesse trajeto.

Escrever sobre essa parte da viagem remete a uma divisão. O grupo foi dividido em dois, de forma que, enquanto nós fomos para Arthur River, eles preferiram ficar e comer lagosta. E essa foi a primeira vez que os trailers se separaram.

Lado A e Lado B. A explicação para esta cisão no grupo tem a ver com o tipo de viajante de cada grupo: nós, com o desejo de aproveitar cada pequeno metro-quadrado da ilha, e eles querendo descansar, recarregar as baterias após um ano inteiro de muita ralação. As tentativas de minimizar a separação foram em vão, nenhum dos lados aceitava ceder ou encontrar um meio termo. Esta situação nos acompanhou por todo o resto da viagem, e assim partimos rumo a Cradle Mountains.

O céu cinza, clima chuvoso e uma imponente montanha despontando no horizonte foi o cenário do nosso cartão de boas-vindas. Após seis dias entre algumas das praias mais lindas do mundo, desembarcamos no Echo Point (Centro de Informações do Parque Nacional Cradle Mountain – Lake St Clair) de bermuda, chinelo e óculos escuros. Quando olhamos ao redor, percebemos o quanto destoávamos do resto das pessoas que ali estavam: todos muito bem equipados portando capas de chuva, mochilas, sapatos e roupas próprias para longas caminhadas. Pareciam integrar alguma expedição da National Geographic. Ainda meio deslocados e vestidos no estilo “surfista perdido na montanha”, fomos pedir informações sobre trilhas, e ouvimos de uma funcionária do parque uma desconfiada recomendação: “Caso queiram chegar ao topo da montanha, vocês devem se equipar melhor!”

Improvisamos nosso figurino com o que tínhamos: calça jeans, várias camadas de casacos, bem ao estilo “cebola e tênis”. Àquela altura já eram 11 horas da manhã, pegamos um ônibus para economizar alguns quilômetros de caminhada até a base da montanha e iniciamos a jornada ao distante cume da Cradle Mountains. Um indício de socialização entre o Lado A e Lado B apareceu quando um dos nossos ficou e outro, do carro deles, nos acompanhou. E assim partimos para oito horas (ida e volta) de trilha.

 

A trilha…

Escalando as pedras

… começava no lago Dove, 900 metros acima do nível do mar, enquanto o nosso destino estava a mais de 1.600 metros – e, até aquele momento, escondido atrás de nuvens espessas. Após a primeira hora de trilha, avisei que talvez não segurasse o tranco, os hábitos boêmios influenciavam diretamente o meu desempenho de trilheiro. Não resisti, fizemos uma pausa para um cigarro e, com meus pulmões devidamente aquecidos, continuamos a subida. Após quase duas horas, chegamos ao Marions Lookout, a 1.200 metros. Naquele ponto, decidimos que chegaríamos ao cume de qualquer maneira – o visual já era incrível, mas nossa imaginação desejava estar lá em cima; apertamos o passo e continuamos. Passamos pelo Kitchen Hut, lugar para momentos críticos, como neve, escuridão ou contusões e último abrigo antes topo. Paramos, tomamos água e fomos em direção à parte final e mais difícil do trajeto: o ponto mais alto da montanha.

Até aquele momento, estive com uma máquina na mão e outra pendurada no pescoço. Ao deparar com um homem que descia do topo, ouvi que, a partir daquele ponto, seria prudente ter as duas mãos livres. Segui o conselho e, com dor no coração, guardei minhas máquinas – perdi várias fotos, mas foi um bom conselho.

Foram mais duas horas cansativas e tensas. Quando chegamos, esgotados, não falamos nada, não comemoramos, apenas contemplamos a imensidão que víamos lá de cima. Nunca havia entendido muito bem qual era a sensação e a graça de subir em um lugar, admirar o visual e descer no instante seguinte. A resposta para essa questão foi dada naquele momento: o sentimento de conquista, de objetivo cumprido e o estonteante visual. Após alguns instantes, nos abraçamos e tivemos aquele momento eternizado pelas mãos de um futuro amigo, que sozinho admirava a vista privilegiada.

O paraíso fica na Tasmânia

Iniciamos o retorno em ritmo acelerado, tínhamos aproximadamente três horas até o Dove Lake, onde pegaríamos o último ônibus de volta para o Echo Point. O retorno foi um tanto silencioso, como se pensássemos na experiência que tivemos. De volta ao local onde nossa casa móvel estava estacionada, compramos apenas uma cerveja para cada um do grupo, já que o preço era o mais absurdo das nossas vidas. Brindamos à conquista e fomos descansar, mas, antes de dormir, recebemos a visita do novo amigo que fizemos lá nas alturas, nascido em Uganda e radicado em Los Angeles, com seus dreadlocks, sorriso fácil e papo tão cativante que foi impossível resistir a uma caixa da cerveja que ele trouxe para nós. Eis o nascimento de uma grande amizade.

Pela manhã, continuamos nossa viagem rumo ao sul. Essa seria a parte mais longa de toda a road trip, mais de 400 km, e aproximadamente seis horas de estrada. Nosso destino final era a Ilha Bruny, localizada a 30 quilômetros de Hobart. Famintos, paramos em Oatlands, uma vila histórica, considerada uma das mais conservadas da Tasmânia, antes próspera e

Bruny Island

geopoliticamente importante (por estar no meio do caminho entre Launceston e Hobart), tornou-se apenas uma pacata cidade com menos de mil habitantes – e uma viagem de volta ao passado. Infelizmente, tínhamos pouco tempo, já era final de tarde, não sabíamos ao certo como seriam os próximos passos e não pudemos conhecer Oatlands um pouco mais.

Chegamos à capital da Tasmânia às 19h30 e, tão logo nos abastecemos de suprimentos, fomos em direção à cidade de Kettering, local da balsa que nos levaria na manhã do dia seguinte para Bruny Island. Achamos um terreno próximo a uma pista de skate, com duas churrasqueiras cobertas, e por lá ficamos. Fizemos um churrasco, todos juntos, e dormimos cedo. Pegaríamos a primeira balsa do dia às 6h35.

Aportamos na ilha e dirigimos até a Adventure Bay Road, de onde partiriam os barcos do Pennicott Wilderness Journeys, para um passeio aclamado como um dos 100 melhores do mundo pela revista Travel + Leisure. As fotos, os prêmios e outros tantos argumentos não convenceram “eles” a nos acompanhar. Preferiram poupar dinheiro e foram para uma fazenda de frutas vermelhas.

 

Enquanto isso nas águas do Oceano Antártico…

Friars Island

Em um barco para 50 pessoas, comandado por uma tripulação empolgada e cheia de informações interessantes, estávamos felizes com o que víamos: enormes falésias, belas cavernas e um pouco de tristeza pela cisão do grupo. A beleza do relevo e da flora local já era encantadora, mas o cenário ficou completo quando avistamos centenas de focas, algumas nadando enquanto outras descansavam camufladas nas pedras da Ilha Friars. Foi emocionante! Depois de tudo, tenho certeza que pagaria o dobro dos AU$110 (dólares australianos) cobrados pelo passeio.

Durante o percurso, um dos membros da tripulação nos avisou que a ilha é um local repleto de wallabies albinos. Tentamos achar o raro e pequeno canguru em seu habitat natural por uma região que é um dos refúgios desse marsupial, mas sem sucesso. Resolvemos voltar e, de repente, vimos um ponto branco contrastando com o verde da grama: lá estava o tal wallaby albino, que muito lembra um “coelhão”. Pegamos gosto pelo novo método de ver os animais, longe de zoológicos ou cercas, sem precisar pagar, mas também sem ter a certeza de encontrá-los. Ótima maneira de encerrar nossa passagem por Bruny Island.

Port Arthur

Mais um dia e o nosso destino era Port Arthur. Tempo nublado, garoa e um vento frio combinaram muito bem com o nosso estado de espírito. As baterias estavam acabando, mesmo assim enfrentamos mais uma trilha, mais fácil: apenas meia hora de caminhada até o mirante de onde conseguíamos avistar Shipstern Bluff, uma das ondas mais temidas e impressionantes do mundo. Com o mar flat, não vimos a força daquelas ondas, mas admiramos a formação rochosa que lembra a proa de um barco.

De volta aos trailers, mais uma vez divisão dos grupos: “eles” queriam ir a uma fábrica de chocolate e ver os famosos diabos da tasmânia, enquanto “nós” só pensávamos em nos adaptar novamente à civilização, aproveitando a vida noturna de Hobart.

Com a nova separação, fomos em direção a Hobart sem o poderoso GPS e esquecemos de algo mais importante ainda: gasolina. Rodamos por quase 20 quilômetros na reserva do tanque e já nos preparávamos para dormir no acostamento da estrada quando avistamos um posto de combustível. Fechado! Batemos na porta do vizinho e descobrimos que o dono morava na casa nos fundos do posto. Fomos recebidos por um senhor com cara de poucos amigos, mas que abriu o posto só para que pudéssemos abastecer. A noite já tomava conta do céu e ainda tínhamos mais uma hora de estrada até Hobart.

Brinde em Hobart (na foto, Bia, Fofão e Ari)

Quando chegamos à nossa última parada, estávamos sedentos por uma comemoração, e fomos em direção ao Salamanca Square, o quarteirão boêmio da cidade. Como já era quase meia-noite e os bares e baladas desse lado do mundo fecham muito cedo, ficamos apreensivos. No instante em que passávamos pela porta de vidro do Cargo Bar, ouvimos o segurança nos chamando, e pensamos: “missão cerveja cancelada”. Mas, para nossa surpresa, ele queria apenas falar que me reconheceu do The Falls Festival e que tínhamos entrada garantida apesar do bar estar próximo de encerrar as atividades. Após 2.200 quilômetros rodados, 14 cidades, esse seria o final perfeito para nossa road trip ao redor da Tâsmania.

Finalmente realizamos o último brinde a uma das viagens mais especiais das nossas vidas. Festival de música, praias paradisíacas, trilhas, escalada, animais selvagens, degustação de vinhos, uma cidade à venda e, como bonus track, no dia seguinte, visitamos o MONA (Museum of Old and New Art), galeria particular do apostador profissional David Walsh, com uma coleção eclética e um cuidado especial na apresentação das obras, que vão desde múmias egípcias a modernas instalações interativas, tendo a temática sexual presente em várias alas da galeria. Como o próprio dono definiu: “uma Disneyland subversiva para adultos”.

Depois dessa aventura, reunidos ou divididos em dois grupos, voamos de volta para Sydney. E, finalmente, todos juntos, mas cada qual com sua bagagem…

 

* * *

Marco Estrella é fotógrafo, escritor e encara uma trilha numa boa, desde que a paisagem e a companhia valham a caminhada.

 

Fale com ele: estrella.marco@gmail.com

E leia o blog: www.circulando.tur.br

 

* * *

Quer ver mais das paisagens tasmanianas? Confira a galeria abaixo, sempre fotos de Marco Estrella. Clique nas fotos para ver tudo em tamanho grande.

Cradle Mountain

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Amizade nova no topo da montanha

 

A vista de cima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bruny Island

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Friars Island

 

Natureza livre em Friars Island

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Friars Island

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Outlands

 

Arco-íris em Outlands

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Obra do MONA

 

Mais MONA

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Do lado de fora do MONA

 

* * *

Mais Circulando:

- Expedição Tasmânia

- Festival na Tasmânia

- Movember – O mês do bigode

- Tudo junto e misturado

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br