Ano VII

O Porto

quinta-feira mar 22, 2012

O Porto (Le Havre, 2011), de Aki Kaurismaki

Crises econômicas à parte, a intensificação da imigração ilegal e a resposta cada vez mais enérgica por parte das autoridades vem gerando uma série de debates acerca de questões humanistas dentro do continente Europeu. O cinema, por sua vez, também vem levantando o tema com uma certa frequência, e se a frase anterior pode até funcionar como síntese de uma série de filmes, a abordagem de Kaurismaki em O Porto vai de encontro a de filmes como Low Life, de Nicolas Klotz ou Il Villaggio di Cartone, de Ermanno Olmi (só para citar dois exemplos relevantes e contemporâneos que estiveram em São Paulo no ano passado): o diretor Finlandês deixa de lado a frontalidade, a visão dura e o niilismo dos colegas e nos apresenta a um universo fantasioso, onde um velho engraxate, após encontrar um menino Africano fugido de um conteiner que fora interceptado em Le Havre (cidade portuária da França) e na ausência de sua dedicada esposa, hospitalizada, conta com seus vizinhos para esconder o garoto da polícia e mandá-lo para Londres, o destino original da “encomenda” (onde vive sua mãe e para onde iriam seus parentes, que vinham no mesmo conteiner e não tiveram a mesma sorte). Um conto de fadas que carrega um enorme fardo, onde o fantástico está travestido no que há de mais mundano: protagonistas proletários, imigrantes com nomes falsos, cantores de rock enrugados, frequentadores de bar mal encarados, fartas doses de alcool sorvidas. O mundo mágico de Kaurismaki, que erigiu sua obra sob um arcabouço fixo (de temas, personagens, atores), fazendo de seus fimes espelhos postados face a face, de modo que qualquer consideração sobre este seja reflexo de, ou provoque reflexão naquele.

A influência do cinema Francês, elemento compositor de seu genótipo, aqui aproveita-se da atmosfera local (é o segundo filme que o diretor roda no país) e torna-se mais abundante, sendo traços de Bresson, Godard, Tati e Melville facilmente identificáveis. Não os confundamos, porém com a metralhadora giratória de citações de um Tarantino ou a forma quase maníaca de “reverenciar” o cinema dos últimos Scorseses: estamos diante de um cineasta que comprime suas referências até transformá-las em matéria, que inspira e transpira não só o supracitado “modernismo” Francês como também o cinema clássico Norte-Americano – sobre esse, a carcterística mais notável talvez seja a facilidade em utilizar todos os recursos em prol da narrativa. Fosse aqui uma prosa, diríamos que o diretor é um envolvente contador de histórias.

Ao cinema clássico americano, mais precisamente a Chaplin e Capra, O Porto também deve a sua atmosfera tenra, o otimismo, a perspectiva quase infantil – e aqui, é bom frisar, não utilizo o termo de forma pejorativa, mas como atestado da visão lançada sobre os personagens, o espaço, os acontecimentos, o que não a impede também de ser assediada pela tragédia (a prisão, a morte, o conformismo). A hiperestilização de certos planos é empregada para reforçar essa idéia: na comunidade do protagonista (casa, padaria, mercearia, bar) temos uma luz e décor que nos remetem ao cinema de estúdio das décadas de 40/50; são os locais onde este encontra-se protegido sob os encantos do “mundo do cinema”, onde por mais errado que as coisas estejam tudo acaba por dar certo – e quanto mais este se afasta de sua base (ruas, cais), mais “reais” as coisas parecem, até o ponto onde, num acampamento de refugiados, temos uma imagem quase documental. A caracterização dos policiais, de roupas inteiramente pretas em meio a tantas cores ao redor, revela se não um discurso ao menos uma fagulha antiautoritarista, mais explícita no modelo de comunismo (“proletários se unindo e agindo em função de uma causa”) que os personagens, liderados por Marcel Marx (e temos outras homenagens debochadas em personagens como Dr Becker, Inspetor Monet, Arletty), acabam por empregar. Estando na Franca, é também bastante óbvia a referência à Resistência, na rede de informações que permitem Marcel chegar até os parentes do garoto (bem como conseguir um barco para transportá-lo), na cooperação de todos para acolher o refugiado.

Outra característica que faz o elo com o classicismo Americano, tão cara ao diretor, é a qualidade pictórica de seus quadros, claramente influenciados pelas pinturas de Edward Hopper. O enquadramento, as perspectivas acentuadas, a ambientação, as cores e, mais importante, a luz, aqui utilizada de forma a guiar o olhar (seus feixes carregam intenções) e reforçar ou atenuar as formas, trabalham em prol da narratividade da imagem. Cada plano é dotado de uma história própria, encerrada nele mesmo, o que não só colabora com a fruição das imagens (é um filme extremamente agradável de se olhar), como permite uma certa liberdade para trabalhar com o tempo, seja ele diegético (em certo momento descobrimos que a trama já estende-se por semanas) ou dos planos em si: “escapulidas” da câmera em direção a figurantes (Kaurismaki demonstra grande interesse por rostos e figuras secundárias) sem provocar um esvaziamento da cena, estaticidade (da câmera, de personagens) que reforça e é reforçada pela noção da narratividade do quadro. Num desses momentos, dos mais marcantes do filme, o menino para diante de uma vitrola a executar “Statesboro Blues” de Blind Willie McTell. O choque de culturas, o ciclo de descoberta e identificação do garoto, que carrega uma vida difícil nas costas, e a musica de outro tempo e local, que por sua vez ilustra sua tristeza e solidão, tudo concentrado na música e no quadro, estático – a “pressão do tempo” a que se referia Tarkovski.

O close no velho toca-discos, que precede a cena mencionada, é repetido no filme por vários planos-detalhe, normalmente em objetos antigos, gestos que tendem a incrementar a idéia de anacronismo: supostamente passado nos dias de hoje, o filme não nos deixa chegar a essa conclusão por meios visuais, já que todos os sinais de avanço industrial-tecnológico são omitidos. Na verdade, quase todos, e tal manobra revela-se mais uma plataforma de discurso crítico: nas três vezes que são enquadrados ou mencionados, os aparatos tecnológicos são associados a algo maléfico (o celular utilizado para dedurar, a tela da TV que exibe a destruição de um campo de refugiados, a parada do conteiner no porto por um “erro do computador”). A despeito do final feliz (e lá existe conto de fadas sem um?), o próprio ofício de Marcel, desolado a olhar os tênis nos pés dos transeuntes, é uma crítica ao “progresso social” que versava Walter Benjamin: a solidariedade não tem mais espaço em nossa sociedade, o mundo de hoje não é um mundo para Marx. Resta-nos, senão, a esperança.

Leandro Schonfelder

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