Ano VII

Vingança

sábado mar 17, 2012

Vingança (Vengeance, 2009), de Johnnie To

Numa das mais belas cenas de Vingança, dois grupos digladiam numa floresta à noite, iluminados apenas pelo reflexo da lua. Quando as nuvens encobrem o satélite, a escuridão prevalece. Os pistoleiros precisam esperar as nuvens saírem de onde está a lua para retomarem o tiroteio. Trata-se de um momento típico da criatividade de Johnnie To, tanto quanto uma situação possível de existir somente no cinema. A obra de To é quase inteiramente construída nessa suspensão da descrença: pouco importa a verossimilhança dos acontecimentos mostrados. Tudo sempre poderá acontecer (não é assim também outros asiáticos fundamentais, como John Woo ou Takashi Miike?).

Em Vingança temos mais um dos contos de bandidos maus e bandidos mais maus ainda que Johnnie To gosta de retratar. É um de seus filmes mais objetivos e pouco afeitos a desdobramentos ou desvios. Há, como sempre, surpresas de enredo e guinadas da narrativa, mas a essência nunca deixa de ser a busca de um francês pelos homens que promoveram um violento atentado à família de sua filha na Ásia. É uma espécie de Desejo de Matar sem o viés realista do filme de Michael Winner e com jeitão mais “cool” e estilizado. Isso fica explícito na escolha do protagonista: em vez do ar soturno e gélido de um Charles Bronson, há a inusitada presença (ainda que também soturna, sob outros aspectos) de Johnny Halliday, popular cantor na França, não tão conhecido fora de seu país.

A fisicalidade de Halliday – homem de olhar fundo e rosto talhado a marteladas precisas – gera estranhamento imediato na primeira meia hora de Vingança. É como se ele tivesse caído naquele espaço por puro acaso, circulando sombriamente pelas ruas de Macau e Hong Kong com seu inglês sofrível e a audácia de quem sabe o que quer. A voz e os trejeitos de Halliday ganham um novo tipo de atenção quando o filme nos informa que este homem tem um passado de sangue e, por conta disso, guarda uma bala alojada no cérebro que lhe tira a memória gradativamente. Ou seja: quanto mais o tempo passa, menor a chance de ele se lembrar do motivo de sua desforra.

A premissa se assemelha a Amnésia, controverso exercício de Christopher Nolan que utilizava um embaralhamento de sequências para transmitir a agonia crescente do personagem. Em Vingança, Johnnie To se livra de quaisquer firulas narrativas e investe pesado em cenas de ação e suspense das mais diretas, acrescidas de recursos como câmera lenta, cortes precisos de montagem, música ritmada ao compasso dos tiroteios e uma utilização sempre expressiva do som – tudo como é de praxe em To, escolhas nas quais ele tende a se sair brilhantemente. Vingança nem está entre os melhores trabalhos do cineasta, mas tudo é tão bem arquitetado e desenvolvido que resta ao espectador se permitir ser carregado pela fluidez de um realizador cada vez mais maduro em fazer da representação da violência um autêntico balé de corpos, balas, sangue e gags pontuais. O uso de sangue digital, claramente revelado a cada furo esguichante na pele de alguém, só reforça o interesse de To em algo muito mais próximo da parábola fantasiosa (sem, por isso, deixar de estar fincada no mundo real).

Discretamente, Johnnie To consegue ainda inserir um comentário político no filme, a partir do momento em que o francês vingativo de Halliday convence três matadores a se aliarem a ele em sua caçada. Mais que dinheiro, o que ele oferece é sua história pessoal, atiçando a afeição do trio mercenário. Não deixa de ter algo de muito irônico nessa noção “colonizadora” do estrangeiro de um país desenvolvido convencendo homens fiéis a um determinado ofício e fazendo-os largarem tudo (e eventualmente se sacrificarem) em prol da causa do visitante. Claro que, para Vingança, esses aspectos estão em segundo plano, mas seria ingenuidade não refletir sobre eles enquanto o filme se arquiteta aos nossos olhos. Porém, no fim das contas, interessa de verdade a To que esses quatro homens criem entre si aquele senso de comunidade já visto em Exilados ou A Missão, que aproximam o diretor mais de europeus como Mario Monicelli do que de conterrâneos e colegas de gênero como John Woo.

Marcelo Miranda

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