Na Carne e na Alma
Na Carne e na Alma (2011), de Alberto Salvá
Na Carne e na Alma: “um assassinato moral”.
Adoraria que a frase fosse minha, mas a autora dessa definição de assassinato moral é Andrea Ormond, editora do fundamental blog Estranho Encontro. A pesquisadora usou o termo para definir o filme mais conhecido do hoje pouco conhecido Alberto Salvá, A Menina do Lado, o longa que é provavelmente a porta de entrada de todo mundo que viu ao menos um filme do catalão radicado no Brasil.
Furto o assassinato moral para empregá-lo no filme póstumo de Salvá, Na Carne e na Alma, que estreia na sexta-feira (2/3) no Cine Olido em São Paulo, em conjunto com uma necessária mostra do cinema de Salvá, morto em outubro de 2011. Serão exibidos entre 2 e 8 de março sete filmes do realizador.
Na Carne e na Alma é uma história de amor de um conquistador (Karan Machado) que conhece o inferno da paixão ao se enamorar da inconstante, sedutora e blasé Mariana (Raquel Maia). Ele morador de Niterói, mas estudante de uma faculdade de classe média alta na zona sul do Rio de Janeiro (no que me parece uma referência velada à PUC). Ela também frequentadora da mesma instituição, mas vinda de uma família endinheirada. Rodrigo chama Mariana de patricinha. Ela retruca e diz que ele tem mau gosto.
Até aí, nenhum novidade no amor que nasce de um casal improvável ou da conversão do garanhão em apaixonado (recentemente tivemos uma comédia romântica nessa linha, Malu de Bicicleta) . Mas o filme de Salvá não é uma comédia, e sim uma tragédia. A paixão, no entendimento do filme, carrega um quê de trágico, pois o grande conflito de Rodrigo é não conseguir se desvencilhar de uma pessoa que tanto lhe magoa. O amor é tanto um prazer quanto uma prisão.
Mas o que torna Na Carne e na Alma um assassinato moral é a representação desse desejo de fusão de dois em um, de corpo colado no corpo, de possuir tudo o que é do outro. Aí Salvá faz um filme, em pleno 2012, é capaz de cutucar um espectador com uma ideia perene do mau gosto.
Quando digo que Rodrigo quer tudo de Mariana não é retórica. É tudo mesmo. É o corpo e a alma, o sangue, o mijo, o cu. Mas, por favor, não leiam isto com risos nervosos ou de gozo pelo exótico como tal porque não estamos falando de um filme trash ou de um escracho à pornochanchada. Vejam bem, Salvá não é John Waters e seu filme é tragédia e sinfonia, não bundalelê. O negócio aqui é sério.
O rompimento dos limites não é por provocação, mas um desenvolvimento natural e corajoso dessa paixão-prisão de Rodrigo por Mariana. Não se trata de um filme que quer ser um tapa na cara da sociedade, mas um comentário sobre o amor que impregna como tatuagem representado sem covardia. É um filme que se afeiçoa por não esconder o que, no amor, geralmente se esconde, o que é tido como feio e sujo.
Recorro a Odair José e sua a canção O Sonho Terminou para tentar definir o personagem masculino do filme de Salvá: “Todos nós temos no corpo um segredinho escondido. Pode ser que você ainda não tenha vivido o bastante para entender o meu amor”. Um diálogo preciso da obra-prima da ópera-rock-brega de Odair José e o filme de Salvá: ambos precisam ter seu talento ressaltados sempre que possível porque não são expressões artísticas pré-legitimadas pelo corpo social. Um grande disco como O Filho de José e Maria e um interessantíssimo filme como o de Salvá ficam num limbo de “coisa menor”.
Na Carne e na Alma é um filme que precisa desesperadamente ser visto. É um cinema brasileiro mais empírico que estudado. É imperfeito e bagunçado, mas tem um detalhezinho que falta a muitos filmes: alma (perdão pelo trocadilho). E tesão.
Heitor Augusto
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