Crônica contra Hugo – 2
A Invenção de Hugo Cabret e o cinema
Por Joel Yamaji
Martin Scorsese, desde O Aviador, seguido de Os Infiltrados, Ilha do Medo, está mais para diretor de estúdio dos anos 40 e 50 do que para o rebelde dos anos 70. E sua História do Cinema é um pouco superficial, talvez impressionista e demasiado rápida (como é seu pensamento, veloz), prestando-se mais a uma introdução ao cinema para colegiais do que a uma análise mais profunda dos filmes (o que seja, talvez, o propósito do projeto, espécie de Coleção Primeiros Passos). E este A Invenção de Hugo Cabret, no meu parco entender, vai um pouco nessa onda: uma aula introdutória aos primórdios do cinema, sobre quem foi George Melies, etc, endereçada a um público juvenil que ignora ainda o que foi o cinema até antes de virar a fábrica de salsichas que se tornou. Também a estrutura dramática narrativa que ele usa é do século XIX, fundada no melodrama de folhetim, tirada de Charles Dickens e cia: o casal de pequenos órfãos, a multidão, os lugares públicos, o policial vigilante, a florista, os boulevards, o olhar do flaneur (manifesta na câmera desde a abertura e através do olhar do menino, em vários momentos), a figura do robô (o autômato, mecânico e humanizado), todos os ícones da modernidade em sua aurora (o filme parece também ilustração didática daquele “O cinema e a invenção da vida moderna“, um bom livro de análise de costumes).
Do que curiosamente gostei foi do uso do 3-D que somente havia visto num documentário sobre o U-2 (ali, não era de se entusiasmar). Mas o cinema de espetáculo de hoje caminha exclusivamente para o parque de diversões, supervalorizando a infantilização das massas por uma questão da ambição do lucro imediato, habilmente manipulada por corporações de jovens executivos gerentes de marketing, ignorantes e analfabetos culturalmente, endossados por uma crítica corrompida e anódina resultando na absoluta mediatização ou imbecilização das coisas. E é neste mundo onde, no dizer de Lima Barreto (o escritor), domina justamente a inferioridade das massas, ou seja, a barbárie eleita como princípio norteador da impulsividade contemporânea, que acho salutar, neste filme, o uso de recursos dos mais atualizados no que se refere à tecnologia digital: o 3-D retomado, pois sabemos que é uma técnica já utilizada nos anos 50 que, curiosamente, talvez porque naquele período se tivesse uma sede de maior densidade nas coisas, rejeitaram-na. Scorsese, como professor e principalmente como amante do cinema, parece querer estabelecer uma ponte, um diálogo com esta mais nova geração produzida pela cultura digital e lhe dizer, como um bom pai, que tudo isso que vivemos agora, na verdade, não é tão novo assim, já que foi sonhado nos primórdios do próprio cinema enquanto linguagem moderna: o passado foi mais moderno que a contemporaneidade que, em si, limita-se a reproduzir cópias de modelos de representações já acontecidas (o futuro está é no passado, como aliás disse ele explicitamente). O uso do 3-D em Hugo é o que faz justamente, deste que poderia ser um pastiche ultrapassado do melodrama folhetinesco do século XIX ao qual se aplica, alcançar vislumbres de uma aula e uma declaração de amor ao cinema e à literatura no que tem de juvenil decerto, já que se trata aqui de um diálogo com um público especialmente de adolescentes, como é o público dominante da instituição do cinema na atualidade (no filme, as alusões literárias vão também para o fabulístico juvenil, para Julio Verne, as aventuras de Robin Hood, etc). Operando sobre um sistema justamente arcaico e de tradição (o melodrama do século XIX) mas usando explicitamente uma tecnologia contemporânea para melhor expressar a força dessa tradição, ilustra-o de modo análogo ao almejado no período do cinema em suas origens: como montagem de atrações, equivalente ao espetáculo circense ou ao teatro mambembe, pois é disso que trata esse negócio do 3-D e etc.: o cinema como atração circense, de parque de diversões, de sonho. É uma aula de Primeiros Passos para esta nova geração crescida nos vídeos games e diante da tela do computador e não, como nós, diante de uma tela grande numa sala no escuro e silenciosa; para recuperar essa antiga aura do cinema de certa forma, dos pioneiros, de Harold Lloyd inclusive, que era crítico da sociedade em seu humor.
Agora, que isso implique num final onde se aponta o reconhecimento da Academia como ápice de um triunfo, de um happy end, como se a finalidade de um artista fosse simplesmente ser reconhecido pela academia sem a qual ele se sente envergonhado diante de seu passado, isso sim pode parecer bastante questionável e simplista, por mais que aqui a fábula tenha pontos de sincronismo com a realidade (Méliès resgatado pelos pesquisadores americanos). Uma visão infantilizada das coisas como, aliás, tende a ser característico na mentalidade americana onde crescimento é sinônimo de hombridade, orgulho e racionalidade, e não de conhecimento e compreensão do que é diferente. É a limitação de uma cultura bipolar, unívoca, tecnocrata e pragmática, simplificadora. Scorsese, Spielberg, Copolla (este ainda mantem a inquietude criativa), Brian de Palma, Lawrence Kasdan são simpáticos no que reconhecem os clássicos num mundo onde predomina a barbárie (num mundo onde tudo ruiu, eles ao menos mantem a generosidade do amor ao cinema) mas certamente não chegam ao patamar de Rossellini, Buñuel, Bergman, Bresson, Godard, Tarkovski, Mizoguchi, Glauber, Saraceni, Sganzerla, onde o cinema alcança sua maturidade ao encarar de frente as complexidades do humano. E, dentro do cinema americano, não tem o mesmo vigor original de Sam Peckimpah, Nicholas Ray, Stanley Kubrick, Samuel Fuller, Arthur Penn, Clint Eastwood ou Robert Aldrich. São diretores escolares, que tendem à réplica e a reprodução, saíram, em sua maior parte, de universidades, de escolas de cinema, esta outra instituição (a escola de cinema) que deveria manter o pensamento crítico do senso comum e, no entanto, hoje se presta a reproduzir os mesmos valores dominantes.
Dessa forma, o filme Hugo é o triunfo da academia no todo, do culto à personalidade, a afirmação da instituição de Hollywood como espetáculo de entretenimento e negócios (show business e star system, David Griffith em última instância). Se pode funcionar como espetáculo educativo moralizante e discriminatório (tudo converge para a celebração da academia) é ideologicamente retrógado e isso já se percebia em Gangues de Nova York, com aquele final constrangedor onde a câmera apontava para as duas torres num espírito de patriotismo ideologicamente forçado. E este negócio do 3-D, no filme, funciona nas cenas que favorecem a profundidade de campo com as linhas de fuga na perspectiva renascentista, nos detalhes onde este perspectivismo se acentua (o nariz do cachorro avançando para fora da tela, o rosto de Ben Kingsley no discurso final do Oscar, os flocos de neve, as nuvens de poeira, a saliva que é cuspida pelo guarda policial quando fala nervosamente ao telefone, as folhas de desenhos que flutuam e caem, os mecanismos e roldanas do relógio em perspectiva com a cidade ao fundo), mas fica ridículo quando a câmera acompanha a personagem em movimento (o policial tendo a multidão ao fundo ou em volta, por exemplo: as camadas de superposição ficam mecânicas, as personagens parecem figuras decalcadas balançando como débeis mentais diante de uma realidade que é artificial, construída, à qual elas estão coladas mas não integradas).
Fica a pergunta: quando vemos um bom quadro, não estamos à procura da realidade tal como ela se nos aparenta no cotidiano imediato (para isto já existe a realidade e ela nos basta) mas em busca de uma essência ou interpretação da realidade, um sentido, uma densidade e verdade que nos pareçam mais justas e verdadeiras. E esta verdade é da ordem do interior, do mental, mais do que da aparência física imediata das coisas. Como dizem algumas de minhas amigas, este negócio de 3-D parece muito barulho desnecessário para esconder uma nulidade de conteúdo ou um vazio. E, se tiramos isso do filme em questão, concordo, ele é bem uma biografia pasteurizada cujo objetivo é obter aplausos e mais nada e instaurar Hollywood como a grande restauradora do cinema, inclusive do cinema europeu. Uma visão egocêntrica da coisa, na perspectiva de que a América é ainda o centro das coisas, o grande eu a partir do qual se organiza e se estrutura a visão do mundo, por mais simpática, amorosa e generosa que pretenda ser essa visão. Acho bastante corajosa tal colocação porque tenta manter o sentido crítico a partir da perspectiva de uma realidade que é diferente daquela que prega o cinema enquanto indústria do espetáculo simplesmente, ou seja, a partir da nossa realidade, nossas carências e necessidades, em muito diferentes daquelas a que esta indústria tem buscado atender. E esta reação imediata de não se render à sedução do momento revela o engajamento nesta nossa realidade que é a que nos interessa pois, no final, quem paga nossas próprias contas somos nós.
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Leia a crítica de Sérgio Alpendre para A Invenção de Hugo Cabret
Leia a crônica de Renata Saraceni sobre A Invenção de Hugo Cabret
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