Ano VII

Coppola – Anos 70

sexta-feira mar 2, 2012

O Poderoso Chefão
The Godfather, 1972

Na literatura, é comum o estudo das primeiras páginas dos livros, os incipits, e o que eles representam para a obra em seu todo. Pensando por este prisma, o início de O Poderoso Chefão é bastante revelador, tanto pelas informações do diálogo que sintetizam em poucos minutos o espírito da máfia, como pelo que revelam, na oposição luz e sombra, claro e escuro, privado e coletivo, as imagens do escritório e da festa.

No escritório, um comerciante diz a Corleone que acredita na América e que ali fez fortuna, mas reclama por justiça. A justiça do estado não puniu os agressores da sua filha e, por isso, veio pedir ajuda e se curvar a Dom Corleone para que este faça valer a sua justiça. Fechado o diálogo e selado o acordo de proteção, Coppola corta para a segunda sequência, a do casamento de Connie, filha de Corleone, um dos muitos eventos na trilogia que tratam de ritos religiosos e familiares, banhados ou não por sangue. Em primeiro plano, a família católica italiana agora em território americano e em segundo plano, mas nada distante do primeiro, imbricados, os negócios e o crime: o dinheiro.

Mas não é só o prólogo, os 30 minutos iniciais do filme, que é rico em informações, a característica principal desta primeira parte da trilogia é justamente a grandiosidade e agilidade narrativa, o ritmo com uma a tensão sempre constante e, sobretudo, uma elaborada construção da cena, seja no plano íntimo familiar, seja no plano da ação, que emana uma gama variada de sentidos dados tanto pelo verbal das falas, como pelos aspectos fílmicos da encenação. Nada nesta primeira parte parecer está sobrando, nada parece estar a mais, em excesso; tudo é importante, e Coppola consegue dar até mesmo às velhas e manjadas fusões um sentido nobre neste ordenamento ligeiro e bem costurado da história, ainda que o filme esteja próximo das três horas de duração, utilizando-as brilhantemente duas vezes como trucagem e uma como expediente narrativo.

Como trucagem, quando relaciona Corleone aos seus crimes – após a cena do cavalo – como se este as assinasse; e depois, numa fusão da imagem de Corleone para Michael, quando indica que será ele o sucessor do pai. Já a terceira e mais sútil, pois no plano da interpretação, ocorre quando Coppola aproxima pai e filho fisicamente, criando uma dicção e fisionomia similar, tornando, devido ao soco que Michael leva do policial, mais parecidos os rostos e a fala de pai e filho, unindo ali não só os discursos e atos, voz e fisionomia, como um só no papel que representam de defensores da família e dos negócios frente à máfia. A semelhança que até então não existia, com Michael frisando sempre que não era daquele mundo, passa a existir, e continuará existindo mesmo quando Michael criar a sua própria marca de “gestão”, só que agora numa era e num universo já bastante diferente das do seu pai.

Marca que se tornará evidente na cena do batismo do filho de Connie, mais um ritual religioso familiar, tal qual o casamento do início do filme. Feita em montagem paralela, Coppola alternará cenas do batismo com cenas nas quais os capangas de Michael eliminam os adversários de forma engenhosa e cruel. O sangue jorra com a mesma força e convicção com que Michael diz sim aos sacramentos que o padre lhe dirige. O sagrado e o mais profano, e hediondo, juntos – dicotomia irreconciliável que será explorada no terceiro filme, que traz elementos próprios de uma tragédia moderna shakespeariana.

Igualmente memorável e significativa até para os filme seguintes é a sequência final quando a câmera mostra Kay, a esposa de Michael, em primeiro plano e ele, graças à profundidade de campo, bastante longe dela, cercado de assessores e preocupado com os negócios. Há uma troca de olhares, mas uma porta entre eles é fechada, marcando a ruptura entre família e negócios.

Cesar Zamberlan

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A Conversação
The Conversation, 1974

O plano inicial de A Conversação é tão estranho quanto notável. Do alto de um prédio, vemos uma grande praça repleta de pessoas. Em meio à sensação de caos, do excesso de informações (sons e imagens), o espectador pode perguntar-se: o que há para ver?, para onde olhar? Não por acaso um ruído que ainda não identificamos perturba a cena de tempos em tempos.

A câmera suave e lentamente faz um zoom, até chegarmos a um rosto conhecido (o de Gene Hackman) em que sabemos poder nos fixar. Mas ele é apenas uma espécie de intermediário na cena: o técnico em escutas (ou qualquer outro nome que se queira dar) que grava a conversa aparentemente anódina de um casal.

Desde já, dois ou três dados se impõem e irão repercutir em todo o filme. Primeiro, o aspecto ameaçador dos aparelhos de escuta: mais parecem fuzis, armas de guerra apontadas para um alvo a abater. Maneira de Coppola afirmar desde logo (e muito sutilmente, neste filme repleto de sutilezas) que nada ali é inocente, neutro. O que vai no sentido inverso ao que diz Harry Caul (Hackman): “Eu só quero fazer uma boa gravação”.

O que nos leva ao segundo dado central do filme: a que serve a técnica? Como bom cineasta moral, Coppola sabe que a técnica não existe fora do mundo. Lembremos que A Conversação começou a ser produzido em 1972 e foi finalizado dois anos depois: justamente o início e o fim do escândalo Watergate (e há mesmo uma menção numa das cenas).

No entanto, mais do que na política em sentido estrito, Coppola sabiamente irá investir na intimidade de Harry, nos seus gestos, hesitações e fraquezas. Pois se ele é, de certo modo, um gênio da técnica, este saber não o faz um ser menos opaco, para não dizer tolo, fora dela (a maneira como é seduzido num dado momento é infantil).

Um dos grandes achados do filme é justamente aquela esquisita capa impermeável que Harry usa apenas quando está a trabalho. Não é um uniforme ou algo do tipo. É, antes, o que evidencia todo seu drama: a incapacidade de trazer seu saber para o mundo real.

E aqui retornamos àquela bela e enigmática cena de abertura: onde está a verdade? Como separá-la do ruído e das aparências enganadoras? Como reunir estes cacos de realidade, fragmentos que mais parecem remeter ao caos, em algo pleno de sentido? Como, enfim, fazer o saber tornar-se também um poder.

Harry, no entanto, é como o aprendiz de feiticeiro: ele busca o controle do mundo, mas não possui a menor compreensão sobre as possibilidades de seus poderes. Em outras palavras, ele domina a técnica, mas desconhece as formas, o sentido das coisas. Logo, seu feitiço irá voltar-se contra ele mesmo.

Juliano Tosi

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O Poderoso Chefão II
The Godfather: Part II, 1974

Se Édipo Rei pode ser considerada a quintessência da tragédia grega, Michael Corleone é sem dúvida a mais potente encarnação do personagem trágico no cinema. E se Francis Coppola concebeu sua trilogia partindo dos ingredientes da tragédia clássica, Michael, assim como Édipo, tentará de toda forma fugir ao seu destino, mas é levado a ele por cada passo que realiza, ou, mais apropriadamente, se vê forçado a realizar.

É nessa segunda parte, uma obra-prima absoluta, que o diretor consegue equalizar de forma mais intensa todos os elementos trágicos. Seja na trama, pois é aí quando Michael se vê forçado a tomar as atitudes mais dolorosas de sua existência, em especial no que se refere à esposa Kay e ao irmão Fredo. Seja no todo da estrutura dramática do filme, concebida em três atos, envoltos por um prólogo e interlúdios que funcionam como uma espécie de coro, ecoando o destino de Michael com a trajetória prévia de seu pai, o jovem Vito, enquanto esse vai se tornando Dom Corleone.

Um epílogo, que remonta a um tempo anterior ao primeiro filme, arremata brilhantemente tudo que foi visto nas mais de três horas que o precederam, onde fica redefinida toda a relação de Michael com a figura paterna e o universo que o cerca e atrai de volta a cada nova tentativa de repulsa. Esse universo que na parte II se mostra cada vez mais complexo, pois, mais que lutar contra as demais famílias e a polícia de Nova York, temos agora os interesses da Família Corleone indo de encontro a toda uma estrutura governamental corrupta e às adversidades do momento histórico.

Se a tragédia é a mola propulsora da trilogia, Coppola deixa claro que seus filmes carregam a herança de toda uma dramaturgia popular, que passa pelo romance (não por acaso onde tudo começou, com o livro de Mario Puzo), e aparece em diversas fases do filme como reflexo da ação, como o teatro melodramático (quando o jovem Vito acompanha o amigo a um espetáculo), o vaudeville (em Cuba, no exato momento em que Michael se apercebe da culpa de Fredo), as marionetes de rua (quando Vito persegue o Mano Negra para matá-lo e dar o passo definitivo que o levará a Dom). Tudo para desaguar na ópera, que irá iluminar os momentos culminantes da terceira parte e a conclusão da tragédia de Michael, personagem tão cativante como assustador.

Gilberto Silva Jr.

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Apocalypse Now
Idem, 1979

E aqui chegamos ao grande mito chamado Apocalypse Now. O auge – para o bem e para o mal – da megalomania de Coppola. O filme cuja própria realização faz parte da lenda: mais de um ano de filmagens, uma produção mais do que conturbada (para dizer o mínimo), numa verdadeira descida ao inferno talvez sem paralelo na história do cinema (com equivalente apenas nos filmes de Herzog realizados na América do Sul).

Também o delírio de esculpir uma obra absolutamente delirante e, ao mesmo tempo, maior do que a vida, bigger than life. “Não é um filme sobre a Guerra do Vietnã, mas o Vietnã mesmo”, diria Coppola durante o Festival de Cannes, antes de ganhar sua segunda Palma de Ouro (a primeira fora com A Conversação, filme diametralmente oposto: todo controlado, cheio de equilíbrio, mas sempre desconfiado de tudo).

Mas esqueçamos, ao menos por um momento, as pirotecnias, as inúmeras frases de efeito sempre citadas e tudo o mais pelo qual Apocalypse Now é comumente lembrado por seus admiradores. Talvez a pergunta a fazer seja: seria Coppola um grande mitômano? Pois se desde o primeiro Poderoso Chefão já conhecíamos o gosto de Coppola pelo épico, pelos grandes painéis e pelos excessos, algo que os anos seguintes só iriam reafirmar, aqui tudo vai um passo além. Aonde, no entanto, este passo a mais nos leva?

Há, primeiro, o trajeto do capitão Willard (Martin Sheen) que é o próprio percurso do filme: a busca por Kurtz, o coronel brilhante que supostamente enlouquecera. Partir dos escritórios de Saigon e mergulhar nas profundezas da selva, ir além do permitido, cruzar as fronteiras e adentrar o território inimigo. Este é o dado eminentemente moral de Apocalypse Now, onde mover-se é também questionar: o que é a guerra?, onde estão os assassinos?. Ou, como repete várias vezes Willard: “quem está no comando?” – para então ouvir as respostas mais disparatadas.

E aqui temos, em diversos momentos, um dos mais belos filmes que se pode querer, uma espiral crescente de loucura e caos. E se essas idéias – a guerra como uma grande insanidade e o campo de batalha como um hospício gigante a céu aberto – podem não ser as mais profundas a respeito, convém lembrar que cinema não se faz apenas com idéias, mas antes com imagens justas. E como diria Fassbinder, a loucura é um sinal de esperança.

Mas ao mesmo tempo que o passo a mais de Coppola em direção ao grandioso fascina os olhos, pode também incomodar – às vezes profundamente. Constrange, primeiro, esse olhar francamente espetacularizante para quase tudo. É como se o própria mise-en-scène como um todo fosse contaminada pela lógica de parque de diversões (em dado momento, alguém diz: “Isto é melhor do que a Disney”). E neste caso é preciso saber dizer: não, a guerra não é uma montanha-russa ou um carrossel.

No mais, em Apocalypse Now quase tudo parece criado visando algo absoluto: a ideia de que “não é um filme sobre a Guerra do Vietnã, mas o Vietnã mesmo” e portanto não admite contestação. O filme seria, portanto, um objeto acabado, inteiro, um monumento e não um olhar sobre a guerra. Algo que, mais do que possuir admiradores, produz adoradores – como os seguidores incondicionais de Kurtz.

Juliano Tosi

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