Coppola – Anos 80
O Fundo do Coração
One From The Heart, 1982
I wish I had a dollar for
each time I took a chance…
Os versos acima, que abrem O Fundo do Coração sucedendo ao som de uma moeda caindo ao chão, incorporam o espírito de jogo de azar que parece ter direcionado a carreira de Francis Ford Coppola. Um filme experimental – em diversos sentidos, seja na captação de imagens, bem próxima do que se faz atualmente através de câmeras digitais, seja nas inovações no processo de edição, entre outros – com orçamento multimilionário constituiu um paradoxo indigerível pela indústria cinematográfica que determinou a derrota definitiva de Coppola em seu jogo contra ela.
O Fundo do Coração pode ser considerado até hoje um filme estranho, que parte e se define através de oposições complementares. Coppola faz uso das inovações técnicas mais avançadas para contar a história mais velha do mundo: o amor de um casal que briga, se separa e se reconcilia. Já nas primeiras cenas, situando a ação em uma Las Vegas que parece localizada em outro planeta (o planeta do cinema), mistura o artificialismo extremo dos recursos narrativos a um roteiro que trabalha a simplicidade dos clichês românticos que regem as situações vividas pelo casal Hank (Frederic Forrest) e Frannie (Teri Garr). Em menos de dois dias, o casal viverá a síntese de todas as narrativas amorosas que o cinema mostra desde suas origens, dos dramalhões lacrimosos até as screwball comedies. A estrutura espelhada entre os pontos de vista de Hank e Frannie, já definida nos primeiros minutos, atesta que, reduzidas a sua essência, emoções e anseios masculinos e femininos não guardariam diferenças entre si.
Se Coppola é o ao mesmo tempo o cérebro e o coração do filme, o sangue que corre em suas veias, e que sela a aliança com o público, vem das canções compostas por Tom Waits. Partindo também dos contrastes entre a voz rascante de Waits e a doçura melódica da cantora Crystal Gayle, as canções dominam a narrativa de tal forma que, em seus melhores momentos, o filme parece ter sido concebido de modo a ilustrá-las. Assim, O Fundo do Coração se firma como um musical único na história, atingindo seu ápice no balé que toma conta das ruas, envolto pelo encontro de Frannie e Hank com seus parceiros ideais: o latin-lover galante de Raul Julia, e uma jovem Nastassja Kinski, sintetizando os sonhos da libido masculina. Tudo isso em meio a piano de Casablanca, navio de Amarcord e Kinski cantando eternizada nos neons de Las Vegas.
Em suas contradições, O Fundo do Coração destaca que, tanto nos filmes como na vida, não podemos abrir mão dos sonhos, mesmos que estes não se materializem, seja numa lua de mel em Bora Bora, seja no projeto de um cinema autoral desvinculado dos lucros e dos estúdios.
Gilberto Silva Jr.
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Vidas sem Rumo
The Outsiders, 1983
Existem duas versões de Vidas sem Rumo: a original e a do diretor, ou como este a chama, do “romance completo”, em referência à fidelidade ao livro de S. E. Hinton. Esta, superior, responde aos fãs (afinal, este foi um trabalho sugerido pelos alunos de uma escola, em uma carta enviada a Coppola por uma professora) e à própria neta do cineasta, que, no ginásio, prestes a assistir ao filme, fez com que o avô se sentisse mal pelos cortes que as exibições teste o obrigaram a fazer (lembrando que seu filme anterior havia sido o desafortunado O Fundo do Coração).
Acrescido de quase meia hora de material, esse novo corte reforça a idéia de um épico infantil: sem o medo de uma interpretação homossexual sobre o relacionamento dos garotos e, também, com a menor utilização da duvidosa trilha-sonora composta por Carmine Coppola (sim, pai do diretor), ganha-se no desenvolvimento dos personagens e na melhor contextualização da época (sai o mix de rockabilly e música clássica; entram Elvis Presley e Carl Perkins). Mais fundamental, é o fortalecimento do caráter passional, nostálgico e romântico da história, uma vez que tudo torna-se reminiscências de um dos rapazes.
A partir da rivalidade entre duas gangues, no começo dos anos 1960, Coppola apresenta uma tragédia que, de início, nada mais é do que uma ligeira luta entre classes. Após um assassinato acidental, os amigos (órfãos, com ou sem pais) buscam abrigo, em uma seqüência que Bill Krohn encontra paralelo naquela de O Mensageiro do Diabo, onde a inocência e o perigo dos meninos confundem-se com a beleza efêmera da natureza.
Sem comparar o impacto que elas produzem (a do filme de Laughton está entre os grandes momentos do cinema), tal aproximação parece justa por destacar o caráter pouco naturalista de Vidas sem Rumo (pois foi assim que o receberam, frente aos delírios de O Fundo do Coração): intensificando a metáfora fundamental do filme/livro (“a juventude é o pôr-do-sol: dourado e fugaz”), o barroco e a estilização operística imperam na iluminação artificial, nas telas divididas, nas fumaças exageradas, nas suntuosas composições horizontais e na freqüente utilização do Split Diopters (que permite a focalização tanto do objeto em close quanto do fundo, recurso bastante utilizado também por Brian De Palma).
Se Coppola encontra sua essência nos relacionamentos familiares, a busca desesperada pela filiação em um grupo de jovens, em Vidas sem Rumo, torna-se um de seus mais eloquentes exemplos.
Bruno Cursini
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O Selvagem da Motocicleta
Rumble Fish, 1983
“As pessoas esquecem que quando têm 16 anos são mais sérias do que provavelmente serão em qualquer outro momento de suas vidas. Você pensa seriamente sobre as grandes questões quando tem essa idade”. Assim o lendário diretor de filmes adolescentes John Hughes explicou ao crítico Roger Ebert o sucesso de seus teenpics na segunda metade da década de 1980. Mas, se Hughes foi o mais famoso a articular esse “achado” que nos ajuda a compreender a permanência de seus filmes na memória de quem foi jovem ou criança naquela década, é necessário lembrar que ele teve pelo menos um antecessor imediato (além de outros mais distantes, como Nicholas Ray). Pois, em 1983, Francis Ford Coppola realizaria dois tratados cinematográficos sobre a adolescência (Vidas sem Rumo e O Selvagem da Motocicleta) que se constituíram em duas pequenas obras-primas de um gênero pensado para ser pequeno.
Comparado a Hughes, Coppola voltou seu olhar mais direta (e seriamente) para a dinâmica da violência entre os jovens do sexo masculino, mas, em particular no caso de O Selvagem da Motocicleta, o tratamento nostálgico e ao mesmo tempo desiludido do mito da rebeldia adolescente construída desde os anos 1950 ganha uma força atemporal que, revista quase 30 anos depois, não perde o vigor.
O filme conta a história do jovem Rusty James (Matt Dillon), obcecado pelo universo das gangues no qual seu irmão mais velho, Motorcycle Boy (Mickey Rourke), tornara-se um herói arrependido. Vagando pela cidade e enfrentando as hostilidades que ambos se dedicaram a construir ao longo de suas curtas existências, os irmãos serão obrigados a refletir sobre o desamparo e as frustrações da vida adulta sob um olhar que incorpora suas limitações (o daltonismo do irmão mais velho, por exemplo, se traduz em um belíssimo preto-e-branco quebrado apenas em momentos-chave da estória).
Com participações especiais de figuras como os eternos rebeldes Dennis Hopper (no papel de pai dos irmãos) e Tom Waits, o filme, bem ao gosto dos anos 1980, dá particular atenção aos próprios recursos de estilo e às suas referências, o que nos permite lembrar do virtuosismo de Coppola e de sua equipe, que incluía o extraordinário fotógrafo Stephen H. Burum. Também o caráter “profético” do filme em relação ao sucesso posterior de boa parte do seu elenco (Lawrence Fishburne, Nicholas Cage, Diane Lane, Matt Dillon, Sofia Coppolla) e da autodestruição de Mickey Rourke podem dar ao filme um sabor especial.
Laura Cánepa
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Cotton Club tem todos os problemas que se vê em quase todos os filmes de Coppola: uma busca incessante por revitalizar gêneros e temas por meio de uma “estilização de cassino”, ou seja, fazer do artifício princípio central e megalomaníaco de um espetáculo autoral (não seria essa ambição da American Zoetrope?). Outro problema desse filme é o de abandonar algumas unidades narrativas (às vezes mais interessantes) em favor de outras, já que Coppola em alguns de seus filmes maiores (à exceção da série O Poderoso Chefão) não é muito dado a particularidades. Seus filmes transformam a história do cinema em parque temático: o filme de guerra em Apocalypse Now, o musical em O Fundo do Coração, o horror barroco em Drácula e o filme de gângster (mais o musical) em Cotton Club, que é o melhor entre eles.
Cotton Club mistura o filme de gânsgter ao musical ao tratar de um club em Nova York que realmente existiu nos anos 20 e 30 e foi administrado e frequentado por gângsters, onde se tocava jazz e se exibia espetáculos de sapateadores. O Cotton club ainda foi um dos primeiros lugares a aceitar negros como freqüentadores em uma época em que a maior parte dos estabelecimentos dividiam-se entre os que aceitam só brancos e os de negros.
Dixie Dwyer (Richard Gere) é o trompetista branco que se apaixona pela amante do mafioso e se torna astro de filmes de gângster nos anos 30, e Sandman Williams (o grande Gregory Hines) é o sapateador negro que se apaixona pela artista mestiça que se faz passar por branca para poder trabalhar. É claro que em Cotton Club a história de crime é melhor do que a de racismo porque é nela que Coppola parece ter mais intimidade e evidentemente a filma com mais prazer, ainda que haja momentos belíssimos na unidade black do filme como a reconciliação dos irmãos Williams em um dueto de sapateado.
Colocados os problemas é preciso fazer justiça: Cotton Club está entre os momentos mais vibrantes e apaixonados de Francis Ford Coppola nos anos 80. Diferente da austeridade dramática e conceitual de seus outros filmes (mesmo os menores), neste existe uma alegria do cinema. E que alegria seria essa? A de reconhecer que a arte, mesmo que seja fundada comercialmente no jogo sujo do crime e do espetáculo, tem uma autonomia que nem sempre os “chefões” conseguem controlar.
Dixie Dwyer é o próprio Coppola, que pelas contingências e de maneira não inocente, se envolve com um grande mafioso, faz coisas a contragosto, mas sua arte é a reserva de sua dignidade, no fim das contas. Coppola se preocupa muito aqui em fazer as distinções certas entre espetáculo (e suas negociatas) e criação. É essa sua franqueza, seu não-romantismo de resistência e sua consciência de que trabalhar para um mafioso não necessariamente é trabalhar para a máfia. E esse é seu encanto, algo que vem menos de sua alteridade moral e mais por revelar a arte como um ato de resistência no inferno.
Seu filme é sobre isso e sentimos nele essa vibração. Por causa disso, por ser uma arte tão franca, inclusive em seus defeitos e dissabores, é que perdoamos em Coppola o que não perdoamos nos últimos Scorseses (o desequilibro formal que se confunde com estilo). Essa sinceridade como condição é que faz há pelo menos trinta anos Coppola ser visto como decadente, ao passo que Scorsese, pelos mesmos desequilíbrios é considerado cada vez mais um “gênio do sistema”. Em Coppola vemos as rugas, no Scorsese dos anos 2000 só a maquiagem.
Francis Vogner dos Reis
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Peggy Sue – Seu Passado a Espera
Peggy Sue Got Married, 1986
Dentre todas das tantas vezes em que Coppola utilizou-se do espelho em seus filmes, nenhuma se compara àquela do início de Peggy Sue. É através dele que vemos mãe e filha fechadas em um quarto, preparando-se para o baile de reencontro daqueles que, juntos, se formaram no colegial, há 25 anos, na primavera de 1960.
Nesta exemplar abertura, materializa-se a ideia do recuo reflexivo à juventude da personagem, sua volta ao amadurecimento, às suas possibilidades. É uma cena expressiva, paradoxal a uma posterior, quando Peggy, adolescente, entrará no cômodo de sua antiga casa, com sua mãe esperando no andar de baixo, e por onde a câmera passeará livre, por entre seus objetos há muito esquecidos.
Antes disso, à maneira do primeiro O Poderoso Chefão, Coppola apresenta, caricatamente, em uma festa, os personagens que compartilharam, em algum momento, com a protagonista, as suas vidas. Aqui, já sabemos que a suposta maior origem dos infortúnios de Peggy encontra-se em seu relacionamento com Charlie, e que será esta a escolha primordial que ela terá que fazer em sua nova e improvável oportunidade: casar-se, ou não, novamente com seu futuro ex-marido.
No entanto, muito acima deste corriqueiro mote romântico, seu dilema se dará numa esfera subjetiva, na qual ela terá a chance de reviver suas memórias e contemplar sua identidade, vendo-se adulta refletida na garota de 18 anos. De uma melancolia cíclica e resignada (também a respeito dos próprios rumos do cinema, como apontado por João Bénard da Costa, no texto definitivo sobre o filme), Peggy Sue segue criminosamente subestimado – inclusive por Coppola, que confunde sua premissa espirituosa com uma desaprovação envergonhada, algo (em suas palavras), “bobo”. Escapa a ele, assim, que é em produções como esta (e os três Chefões, Tucker, Drácula e na quase totalidade de seus filmes dos anos 1980), e não em seus projetos mais explicitamente pessoais, que seu cinema melhor se concretiza.
Bruno Cursini
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Jardins de Pedra
Gardens of Stone, 1987
Realizado em um período no qual o cinema americano pensava a Guerra do Vietnã em filmes como Platoon, Bom Dia Vietnam, Nascido Para Matar e Hamburger Hill, produções que revisitam um dos eventos mais traumáticos da história americana com distanciamento histórico e contundência, Jardins de Pedra chega com discrição, mas carregado de postura crítica. E difere de todos os outros porque nele não vemos os soldados em ação, apenas algumas imagens dos efeitos da guerra mediadas por aparelhos televisivos. O que quer dizer que a ação é feita sobretudo por anônimos, que estão lutando nas selvas enquanto os personagens do filme aguardam o fim da guerra ou uma chance de lutar. A ação está distante, mas ecoa com profundidade para os que ficam à espera em Washington.
Vemos sargentos da Velha Guarda (James Caan e James Earl Jones), oficiais que ganharam o privilégio (para eles duvidoso) de ficar longe da batalha, lidando com os novos soldados, muitos dos quais anseiam por uma chance na linha de frente (que não existe, segundo os veteranos, o que há na verdade é uma guerrilha espalhada e impossível de ser vencida). Coppola, que já havia mostrado os horrores da mesma guerra em Apocalypse Now, está mais interessado aqui em quem está longe do campo de batalha, mas sofre também com a guerra.
Muito mais sóbrio e discreto que qualquer outro Coppola dos anos 1980, Jardins de Pedra cresce quando acompanhamos o crescente envolvimento do sargento Clell Hazard (Caan) com a jornalista Samantha (Angelica Huston), ou o charme zombeteiro do sargento Goody Nelson (Jones, em um de seus melhores papéis no cinema), sobretudo nos momentos de inspeção do batalhão. Enfraquece quando mostra o soldado Jack “Dildo” Willow, jovem com personalidade, mas um pouco arrogante e meio bobo – e com o qual Hazard se identifica, pois além de filho de um grande amigo, suboficial aposentado, lembra ele mesmo quando jovem.
Sérgio Alpendre
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Tucker – um Homem e seu Sonho
Tucker: The Man and His Dream, 1988
É conhecido o quanto Tucker foi um projeto caro a Coppola. Nos anos 1940, seu pai fora o comprador de um dos apenas cinqüenta modelos do Tucker Torpedo produzidos. O próprio Coppola recorda dos meses de expectativa entre o anúncio, cercado de certa mitomania futurista, e a entrega dos carros.
Mas há uma outro ponto de contato, menos anedótico, entre o Coppola cineasta e Preston Tucker: o que os move, que os particulariza, é o sonho, o desejo desmedido, até mesmo um tanto de delírio.
Mas o sonho, no mundo em que vivemos, cedo ou tarde traz o seu preço. Depois de passar pelo céu e pelo inferno com Apocalypse Now e O Fundo do Coração, talvez seus filmes mais pessoais e alucinantes, certamente os mais caros, Coppola sabia o peso de cada um (ideia e matéria) na vida real. E sabia, sobretudo, qual lado escolher: o dos homens, contra as instituições (sejam os grandes fabricantes de veículos, sejam os estúdios), o das idéias contra as cifras, o da inquietude contra o poder.
A trajetória de Tucker, portanto, vem bem a calhar para o gosto e o talento de Coppola: a do franco-atirador, do homem que vislumbra algo (um carro mais seguro, mais veloz, mais econômico, etc.) antes de todos, justamente por ser livre, por não fazer parte do estabelecido.
A esse mundo engessado por regras não-ditas, aos buracos e pedras deixados no caminho, Coppola irá opor um percurso que impressiona pela limpidez das imagens (a luz que ilumina as trevas), pela fluidez dos movimentos. Mas Tucker talvez não seja um filme perfeito. Por vezes, o filme engata uma quinta marcha (o material renderia fácil uma bela série) quando se desejaria um passeio mais panorâmico, onde se pudesse apreciar com mais calma a paisagem. O próprio Coppola queria fazer uma espécie de musical sombrio, um filme certamente menos eufórico, mas perdeu a queda-de-braço com o produtor George Lucas.
Tomemos a cena final como exemplo. Tucker e seu braço-dreito, Abe Karatz, conversam a respeito de tudo que passaram:
- Nós conseguimos.
- Cinquenta carros?
- O que importa, cinqüenta ou cinquenta milhões? São apenas máquinas. É a ideia que conta. E o sonho.
Seria fácil cair no piegas e na auto-complacência – o que Coppola evita com louvor. Mas não há como deixar de pensar em como a cena seria mais bela com um contraponto de mise-en-scène: o diálogo otimista e uma imagem mais escura, francamente sombrio (o sorriso meio desconcertado de Jeff Bridges, no entanto, é excelente).
Em todo caso, o que marca Tucker mais do que tudo é uma tocada típica de Coppola, um certo maneirismo sempre eficaz, sempre preciso – como um carro tão mais eficiente e belo quanto marca sua distinção dos demais.
Juliano Tosi
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