Ano VII

Delírio de Loucura

terça-feira fev 28, 2012


Delírio de Loucura (Bigger Than Life, 1956), de Nicholas Ray

Lançado em 1956, Delírio de Loucura teve sua divulgação baseada em um suposto caráter denunciatório dos efeitos colaterais produzidos pelo uso indiscriminado da cortisona, uma droga, então, ainda pouco estudada. Em seu trailer original, James Mason (protagonista e produtor do filme), literalmente apresenta seu “tema tão vital”, seu “assunto tão violento”, e faz alusão ao artigo da New Yorker, no qual o roteiro se baseou. Curioso e sintomático, o nome de Nicholas Ray ser relegado ao terceiro plano, uma vez que este deve ser visto como um dos mais reveladores de seus filmes.

De início, no entanto, não é essa a impressão: notório pela criação de personagens marginalizados, o Ed Avery interpretado por Mason (quase um anagrama para average), parece um bem sucedido professor, casado com uma bela esposa, com quem cria seu filho em um confortável subúrbio americano. Parece.

Após sair do colégio no qual leciona, Ed vai, rapidamente, à central de táxi, onde começará sua segunda jornada de trabalho. Chegando à sua casa, percebe a desconfiança de sua mulher, incomodada com seus recorrentes atrasos. Aos poucos – nesta mais oblíqua das histórias –, estranha-se, também, a própria escalação de Mason para o papel: ator inglês de tendência teatral, seu sotaque parece posicioná-lo em uma esfera diferente daquela em que está inserido (a agradável e segura classe média americana do pós-guerra). Apesar de sua aparente interação, há qualquer coisa fora de ordem em sua inserção naquele tempo e lugar bastante específicos.

Em sua casa, pôsteres de localidades distantes (Bolonha, Roma, Florença, França, mapas antigos) reforçam a atmosfera de inadequação. E é nela que encontramos Ray utilizando-se, como poucos, do confinamento de um ambiente limitado: se anteriormente (Juventude Transviada, Johnny Guitar, Cinzas Que Queimam) ele já havia exibido total habilidade em ambientes reservados, aqui ele supera-se, tornando sepulcral um lar tipicamente suburbano. Junto a seu gigante senso estético para as composições horizontais, o exemplar trabalho com as cores – que, no cinema americano, só pode ser rivalizado por Vincente Minnelli –, faz com que as constantes lâmpadas acesas e apagadas nos cômodos limitem seu CinemaScope, restringindo e recortando dramaticamente o espaço de seus planos.

Do amarelo dos táxis à predileção pelos tons avermelhados (na jaqueta do garoto, na luz na porta do hospital, no sofisticado vestido de sua esposa), suas cores tornam-se evidências, como na cena onde Ed constata que, pela marca do leite na jarra, sua mulher o havia enganado, quebrando o castigo por ele imposto a seu filho.

Mais do que retratar uma denúncia a qualquer droga que seja, Delírio de Loucura é um drama (dos mais inesquecíveis) sobre um homem lidando com o fato de sua finitude. Ed é, antes de qualquer coisa, alguém que descobriu que sua morte está próxima e que tudo que o resta não será suficiente para sua plenitude. No cerne da sociedade da eficiência e do bem-estar, seu crescente narcisismo o infantiliza, e a consciência emergente de sua mortalidade o põe em oposição ao mundo à sua volta quando, na realidade, seu impasse é inevitavelmente compartilhado por todos, e sua fúria parece também residir na vontade de exacerbar esse fato – essa inconveniência inevitável – à força, aos gritos.

Como notado por Jacques Rivette, aproximadamente três anos antes deste filme, em 1953, em seu texto “De l´envention”, publicado pela Cahiers du Cinéma (edição 27), Ray reflete “a ansiedade sobre a vida, uma perpétua inquietação que é paralela àquela de seus personagens”, onde “a batalha real encontra-se apenas em um dos personagens, contra seu demônio interior da violência, ou de um pecado mais secreto, que parece associado ao homem e sua solidão”.

A tendência instintiva contra essa posição é a fuga, mas esta, pela mais rasteira das razões, não é aqui opção: mesmo dobrando seu turno, Ed não consegue ganhar o suficiente para permitir-se tal respiro. Em um de seus surtos, leva sua esposa à loja chic da cidade, local onde claramente não lhes parecem adequados. Em sua megalomania, é lá que Ed deseja aceitação.

E não há apenas perturbação de pensamento, há, também, grande distúrbio sensorial, conferindo a Delírios de Loucura um crescente tom expressionista, genialmente mostrado por Ray no momento da repreensão de Ed a seu filho, obrigando-o a solucionar um problema que, evidentemente, fugia à sua capacidade: com sua sombra deformada, expressionista, ele metamorfoseara-se em um grande monstro, assombrando sua família, por trás do sofá de sua sala de estar.

E é a partir deste momento, quando o foco de suas obsessões volta-se ao garoto (pai e filho, novamente, como em Juventude Transviada), que recordamos de O Mensageiro do Diabo, de onde supostamente Ray emprestou o terno preto (e a bíblia) que veste Ed, na cena na igreja, que culminará na briga com seu esportista e saudável amigo. Interpretado por Walter Matthau, sua fidelidade a Ed poderia representar um alento à história, mas sua própria vida não parece de toda satisfeita: solteiro e retraído, nuances homossexuais circundam seu personagem.

E se antes era a esposa que desconfiava do marido, é ele agora quem passa a suspeitar dela: é a paranóia da era Eisenhower vindo à tona, intensificando a vulnerabilidade econômica e emocional da classe média que, supostamente, compõem e sustenta o sonho americano.

Em seu desfecho súbito e inconcluso, os personagens encontram-se de volta à aparente e precária normalidade: independentemente das dosagens de seu medicamento, Ed continuará doente e suscetível a seus arroubos onipotentes. Em Delírios de Loucura, não há muito lugar para as certezas; há, apenas, oscilações (de humor, de moral, de saúde) e a garantia de um único e irremediável final.

Bruno Cursini

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