Caminho para o Nada
Caminho para o Nada (Road to Nowhere, 2010), de Monte Hellman
Primeiro longa de Monte Hellman em mais de vinte anos, Caminho Para o Nada não se apresenta facilmente ao espectador. É necessário voltar a ele, retomar a experiência de ver o filme, passar novamente por sua narrativa arriscadamente não linear. Suas múltiplas camadas prejudicam o entendimento do público médio de cinema atual, da geração internet, acostumada a ter tudo mastigado pelos atuais blockbusters. Prejudicam, em menor escala, o entendimento de qualquer espectador que não se sujeitar ao tom do filme, que é o tom de um delírio.
Enquanto Martin Scorsese estreia nos cinemas brasileiros com seu filme mais comercial e cheio de concessões até então (Hugo), Monte Hellman vai pelo caminho oposto e faz um filme muito mais sinuoso e independente do que Iguana – A Fera do Mar e Silêncio na Noite, seus longas anteriores. Curiosamente, uma das falas do diretor do filme dentro do filme que vemos em Caminho Para o Nada dá uma sacaneada em Scorsese. Ao ser perguntado sobre a possibilidade de contar com Leonardo DiCaprio no elenco, o personagem diz mais ou menos o seguinte: “não quero contar com um ator famoso só porque ele vai trazer mais dinheiro para o filme”. Mas o caso aqui não é promover uma contenda entre um e outro, o cinemão e a via marginal. O que nos interessa é ver como Caminho Para o Nada retoma o cinema de Hellman depois de mais de duas décadas. É um belo caminho que foi interrompido e agora volta a apresentar seu curso.
Como sempre em se tratando de um filme desse diretor invulgar, acompanhamos personagens em desacordo com a sociedade. Não é um desacordo voluntário, tampouco é irreversível. Tais personagens anseiam pelo contato, pela participação. Mas algo em seus espíritos impede que abracem suas chances. Os cowboys de Cavalgada no Vento acabam sendo punidos por aceitar a hospitalidade de bandidos. Não agiram da mesma maneira que os mocinhos de um faroeste tradicional. Acomodaram-se na postura de quem não tem nada a ver com o assunto (mesma postura, aliás, dos corredores de Corrida Sem Fim). O mercenário de Disparo Para Matar aceita entrar numa notória enrascada por causa de algum dinheiro, e tudo o que faz a partir dessa aceitação o leva à perdição, junto de outros personagens que já estavam perdidos. Os corredores de Corrida Sem Fim são semizumbis. Vivem com um carro velho e envenenado apostando corridas de cidade em cidade, sendo que o espectador mal vê cenas dessas corridas. O que vê são os tempos mortos, a vida em câmera lenta que levam. No caminho eles encontram um outro pária, contador de histórias para pessoas que entram em seu carro em busca de carona. Como Jean-Baptiste Thoret escreveu, é um personagem fascinante, que representa o espetáculo em sua forma mais primitiva, a dos trovadores. Tanto melhor que seja interpretado pelo grande Warren Oates. Mesmo o motorista interpretado por um jovem James Taylor (sim, aquele que cantaria “You’ve Got a Friend” anos depois), com seu jeito autista, meio nosferático, procura conjunção carnal com a garota que viaja com eles, mas da qual ele não faz a menor questão de saber o nome. É uma procura automática, já que ele é homem, ela é mulher. O condenado de China 9 Liberty 37 recebe a inesperada liberdade em troca do assassinato de uma pessoa, algo que ele se recusa a fazer (mas depois de libertado), e termina seguindo solitário, no meio de uma região desolada. Mas como assassinar um personagem composto por Warren Oates (ator hellmaniano por excelência)? Finalmente, nos exemplos mais radicais de outsiders, temos o marinheiro deformado de Iguana – A Fera do Mar, cujo aspecto monstruoso contamina seu caráter (mas não a ponto de deixar que seu filho sofra o mesmo que ele), e o competidor de Galo de Briga, que de tão deslocado recusa voluntariamente a maneira mais comum de se comunicar dentro da sociedade, a fala. Tal protagonista, deste que é o filme mais controverso de Hellman, tem sua própria maneira de amar. Ele se importa com a mulher amada, mas primeiro precisa concluir sua tão esperada segunda chance. Não é ele que briga, é o galo, ou os galos que ele tão dedicadamente treina para as batalhas. Podemos ainda dizer que sua briga com o mundo, com o qual ele está em desacordo, se dá por intermédio de galos, nunca frontalmente.
Mitchell Haven, o cineasta que protagoniza Caminho Para o Nada, insere-se perfeitamente nessa galeria de outsiders. Ele está à margem da Hollywood atual da mesma maneira que Hellman sempre esteve, ou seja, à contragosto. Sabe que não pode vender a alma para se sentir parte de algo. Seria uma traição de seu espírito. Essa é a questão central do cinema de Hellman: sentir-se parte de algo é um desejo, mas desde que não se venda a alma; logo, a condição de outsider é praticamente inevitável. O espelhamento entre um cineasta e outro então é claro, assim como o que existe entre os diálogos que envolvem o filme dentro do filme e o que Hellman pensa de Hollywood. (além disso as iniciais são as mesmas: MH). Haven fala suavemente, palavras carregadas de reflexão, exceto quando está contrariado (como quando seu assistente conquista a atenção da moça que escreveu a história que ele irá traduzir em imagens). Aí ele vira semizumbi. Seu ritmo (incluindo as variações) condiz com o dos filmes de Hellman.
As falas que ouvimos refletem a impossibilidade de se pertencer a um grupo sem perder a individualidade. Mas também um certo niilismo controlado. “Na expressão show business não existe apenas show”. Se tal fala não viesse da boca de um produtor, poderia ter sido facilmente modificada para “na expressão show business, deve haver ao menos algum show”. Estaria mais de acordo com o modo com que Hellman/Haven enxerga as coisas. Em outro momento, uma declaração contundente, que leva para outra reflexão: “90% de um filme representa a escolha de elenco”. Variação do “1% inspiração, 99% transpiração”. Não importa se a porcentagem é essa mesma, de 90%. O fato é que a escolha de elenco é mesmo essencial. E Caminho Para o Nada é, entre todos os seus filmes pós 1966, aquele que tem o elenco mais estranho, mais – à primeira vista – mal escolhido.
Tygh Runyam, por exemplo, não parece o ator indicado para fazer o papel de um cineasta como Mitchell Haven. No entanto, com meia hora de projeção esquecemos seu jeito de playboy mimado e aceitamos seu romance com a atriz principal de seu filme. Ela própria, é interpretada por Shannyn Sossamon, que tanto parece deslocada como o furacão que encanta todos os envolvidos com a produção como não se encaixa bem na militante Velma Duran, papel que ela representa no filme de Haven. Contudo, tais atores se harmonizam por alguma espécie de sintonia cósmica, talvez porque sejam justamente a expressão da estranheza, o que combina com o tom almejado por Hellman, algo entre David Lynch e Brian De Palma.
E já que esses dois cineastas vieram à tona, é válido passar pelo caminho ingrato das comparações. Por mais original que pareça Caminho Para o Nada, há sempre alguma referência possível à espreita. Paolo Gregori me conta que um amigo em comum definiu o filme como um misto de O Estado das Coisas com Cidade dos Sonhos. No que não está longe da verdade. A associação com Wim Wenders é mais possível nos filmes setentistas de Hellman, sobretudo em Galo de Briga, mas quando o cineasta é cercado pela polícia no fim de Caminho Para o Nada, reage às armas apontadas para ele com uma câmera, da mesma maneira que Patrick Bauchau reage ao assassinato de seu colega no final de O Estado das Coisas. E Lynch entra naturalmente, sobretudo na cena inicial do filme dentro do filme, quando Velma pinta suas unhas, mas também na estrutura mise en abyme que domina a narrativa e na atmosfera nebulosamente doentia que circunda os personagens. Sem esquecer, claro, o impressionante plano em que o avião cai de repente na água.
Algumas outras referências são explícitas. São três os filmes que Mitchell Haven vê com sua nova namorada. Primeiro um de Preston Sturges (As Três Noites de Eva), cineasta que teve um curto período de glória em Hollywood, tendo sua carreira abreviada precocemente (morreu prestes a completar 61 anos, de ataque cardíaco). Mais adiante, vê O Espírito da Colméia, de Victor Erice, cineasta espanhol cuja parca produção cinematográfica foi inversamente proporcional ao seu talento. Por último, não termina de ver O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman (com quem Hellman foi comparado à época de Disparo Para Matar e por causa do final – à Persona – de Corrida Sem Fim). Na cena crucial de O Sétimo Selo, o cavaleiro medieval convida a Morte para um jogo de xadrez. E é nesse exato momento que chega o assistente de Haven, o vilão do filme, para promover o seu xadrez particular, que termina em morte. Curiosa maneira de enredar seus personagens na malha referencial que ele cuidadosamente costura. É nesse momento, aliás, que Hellman flerta com o Kiarostami de O Gosto de Cereja e eleva definitivamente seu filme à condição de raridade.
Caminho Para o Nada é um nome ideal para um filme de Hellman. Mais uma vez temos seus semizumbis lutando contra uma condição da qual não conseguem sair. Mas desta vez o alvo é mais evidente do que nunca: Hollywood. E por consequência, todo o mundo atual do espetáculo. Trata-se de um dos filmes mais críticos do cinema recente.
Sérgio Alpendre
FILMOGRAFIA DE MONTE HELLMAN
The Beast From the Haunted Cave (1959)
Exercício cinematográfico totalmente devedor do estilo de Roger Corman, mas que empalidece diante de outros filmes baratos da época (de Corman ou de outros).
Back Door to Hell (1964)
Flight to Fury (1964)
Dois filmes realizados a toque de caixa nas Filipinas. Back Door to Hell é uma aventura de guerra fulleriana que já insinua o enorme talento de Hellman. O filme sofre um pouco com a pobreza do orçamento, mas milagres são feitos nas eficazes cenas de ação, e alguns diálogos são primorosos. Flight to Fury é mais esquisito do que realmente bom. Tem momentos interessantes como o da longa viagem de avião, mas no geral é meio entediante.
Cavalgada no Vento (Ride in the Whirlwind, 1966)
Disparo para Matar (The Shooting, 1966)
Após finalizar alguns filmes para Roger Corman, Hellman topou realizar e produzir (com Jack Nicholson), estes dois faroestes existencialistas, rodados no mesmo ritmo dos dois longas que Hellman filmou nas Filipinas em 1964; ou seja, enquanto montava Cavalgada no Vento à noite, filmava Disparo para Matar durante o dia, ambos com Jack Nicholson em papel secundário.
Cavalgada no Vento segue o caminho iniciado pelos faroestes psicológicos de Anthony Mann (curiosamente lembrado também por Alison Anders na faixa de comentários do DVD americano de Corrida Sem Fim), que levaram o gênero a um outro patamar, não de qualidade, mas de intensidade e lirismo, na década seguinte. Minimalista, com um enredo que valoriza o acaso e o inesperado, Cavalgada no Vento já era de certa forma um OVNI naqueles tempos. As cenas de tiroteio e perseguição nas rochas é praticamente o oposto do clímax de Flight to Fury, que também envolve perseguição e tiroteio em rochedos. Neste último a decupagem é mais tradicional, como em um filme de aventura. Em Cavalgada no Vento vemos espécies de fantasmas duelando em um ritmo entorpecido.
Mais radical ainda é Disparo Para Matar, com suas curiosas fragmentações e, paradoxalmente, sua cadência à Tarkovski. Neste filme propositadamente superficial (no sentido de que não sabemos como são e o que move esses personagens), nada é facilitado para o espectador, que corre o risco de ficar perdido entre esses zumbis que vagam pelo deserto em busca de uma suposta vingança. Curiosamente, o personagem de Nicholson parece uma evolução do que ele havia interpretado em Cavalgada no Vento. Neste último ele é visto cavalgando para uma provável fuga bem sucedida. Mas está condenado, porque procurado por um crime que não cometeu. Vivendo como fora-da-lei, acaba se transformando no pistoleiro enigmático de Disparo Para Matar. Curiosa maneira de relacionar filmes já facilmente relacionáveis.
Filmes que ficaram num limbo. Entre a falência da distribuidora que os comprou e uma segunda chance passaram-se mais de três anos. Mas os elogios da crítica possibilitaram de certa forma a realização de Corrida Sem Fim, dentro de um grande estúdio.
Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971)
Uma trupe insólita foi reunida para este autoproclamado anti Easy Rider. Além de Warren Oates, grande ator que se dava muito bem com o estilo de outsiders como Hellman e Sam Peckimpah, temos o cantor de blues-rock James Taylor, na época em início de carreira, o baterista dos Beach Boys Dennis Wilson, irmão de Brian e Carl que morreria afogado no fim dos anos 1970, e a adolescente Laurie Bird, que tinha 17 anos na época, e aos 25 se suicidou no apartamento do namorado, o cantor Art Garfunkel.
A menina que vemos no banco de trás do carro de Oates, em uma de suas inúmeras caronas para atenuar sua solidão, é a filha de Hellman, Melissa, que se tornaria a produtora de Caminho Para o Nada.
Apesar de ser um filme bem mais sutil e sofisticado que Easy Rider, é também mais contestador, pois, como o próprio Hellman destaca em entrevistas, não é contra trogloditas que eles se rebelam, mas contra o sistema de fato, contra a moral da classe média.
O final, com a literal queimação de filme, remete ao Persona, de Bergman, e insere tudo numa redoma de abstracionismo.
Galo de Briga (Cockfighter, 1974)
De todos os outsiders de Hellman, o mudo por opção Frank Mansfield (Warren Oates) é o mais tocante. Abdica de ter família e viver na sociedade para continuar treinando galos de briga, procurando torneios em pequenas cidades.
Mesmo que a mudez do personagem tenha uma explicação meio besta (menos pela real motivação – a suspensão de seu sentido até que se conclua a “segunda chance” – que pela cena que a ilustra), é impressionante a maneira como Hellman constrói a narrativa, que se apóia em uma prática tão contestada por maus tratos a animais.
Galo de Briga centraliza-se na interpretação irretocável de Oates e no convívio com esses americanos que vivem à margem da sociedade, mas possuem uma integridade notável (dos quais o mais íntegro é o sócio simplório de Frank).
Na competição final, a maior do ano nos EUA, o espectador descobre uma outra sociedade, com seus preconceitos e valores mesquinhos. Descobre também que por trás da indiferença de Frank está alguém que realmente se preocupa com a amada.
China 9, Liberty 37 (aka Amore, Piombo e Furore, 1978)
Filmado na Espanha e na Itália, China 9 é mais um faroeste esquisito de Hellman, último longa que realizou antes de um hiato de dez anos.
Aqui encontramos Jenny Agutter, atriz de beleza incomum que depois apareceria em Um Lobisomem Americano em Londres, como a esposa de um rancheiro prestes a ser vítima de um assassinato. Temos também Fabio Testi, ator italiano que fez tanto westerns spaghetti quanto dramas existenciais, e que recebe a liberdade com a missão de matar o rancheiro. Mas quem arrasa novamente é Warren Oates, esse ator sempre subestimado, no papel do rancheiro condenado.
Hellman mais do que nunca norteia seu filme pelo desejo sexual de seus personagens. O primeiro plano de Fabio Testi quando livre é um plano fechado entre sua cintura e as coxas, o falo escondido por trás da calça, mas sugerido pela câmera, porque sua energia sexual irá determinar seu destino. Logo adiante, Jenny Agutter é vista nua, banhando-se no rio. Não tardará para que os dois se comam com os olhos, e depois partam para as vias de fato, mesmo que ela seja esposa do homem (Oates) que ele deve matar.
Mais adiante, logo depois de uma das cenas mais quentes da carreira de Hellman, Oates chega no pequeno ninho de amor de sua mulher com o amante, e sua interpretação nesse momento faz com que quase todos os outros atores se transformem em meros narradores de diálogos.
Vale destacar também a fotografia sempre magistral de Giuseppe Rotunno, um dos maiores em sua profissão.
Iguana – A Fera do Mar (Iguana, 1988)
A aparência monstruosa leva à crueldade, não ao enriquecimento de seu interior. Essa é a história de Iguana, em que cabem igualmente o desejo sexual e a submissão dos fracos. O idílio é ameaçado pela chegada de forasteiros, mas com o auxílio do medo o monstro saberá impor sua vontade. O final, com um lento caminhar para um sacrifício, é dos mais tocantes da carreira de Hellman.
Noite do Silêncio (Silent Night, Deadly Night III: Better Watch Out!, 1989)
Feito em vídeo, esta terceira continuação de uma franquia de sucesso moderado e minguante não fez nada para alavancar a carreira de Hellman. Pelo contrário.
(SA)
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