Ano VII

A Invenção de Hugo Cabret

quinta-feira fev 23, 2012

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), de Martin Scorsese

Um monumento ao cinema. A Invenção de Hugo Cabret é por vezes desconjuntado, inflado, no limite perigoso da prostituição hollywoodiana, mas sempre apaixonado. Algumas questões, contudo, martelam minha cabeça, ainda durante a projeção. A principal delas diz respeito às concessões feitas por Scorsese para agradar um público grande. O que não é bem uma novidade em sua carreira. Desde Os Bons Companheiros, ou mesmo desde A Cor do Dinheiro, Scorsese vem tentando o diálogo com um público cada vez mais amplo, talvez pelo trauma de ter amargado um quase ostracismo nos anos 80. Essa tentativa se acentuou nos últimos anos, especialmente depois de Gangues de Nova York, quando se iniciou a fase DiCaprio. Mesmo Monte Hellman, um outsider nato que começou alguns anos antes de Scorsese, e que está em cartaz ao mesmo tempo com seu ótimo Caminho Para o Nada, declarou várias vezes que deseja o contato com algum público, e que quanto mais, melhor (e talvez por isso tenha feito o medíocre Silêncio na Noite, filme de encomenda). Concessões são feitas desde que se criou a indústria cinematográfica. Cabe aos grandes aprender a usá-las, ou contorná-las.

A Invenção de Hugo Cabret, de qualquer modo, foi pensado como um filme para toda a família, para mostrar a magia do cinema ao maior número possível de pessoas. Daí vem algumas de suas limitações, das quais podemos lamentar sobretudo o didatismo, sem esquecer o brilho forçado de algumas passagens. Mas se Scorsese nunca tinha chegado tão perto da fronteira entre o pungente e o ridículo como em Hugo, chegou muito perto de fazer o melhor filme possível com essas limitações. Por buscar um público muito amplo, o didatismo é justificável.  Se a intenção é glorificar o cinema também para os não iniciados, seus momentos mais conhecidos devem ser mostrados. Algumas citações aparecem para angariar também os iniciados. Que problema há nisso? Bem, talvez fosse melhor assumir que está se dirigindo ao grande público. De todo modo, não é grave querer agradar também o cinéfilo de mais repertório.

O Scorsese cinéfilo bate cartão, portanto, não só nos momentos mais óbvios, em que as citações são obrigatórias (eles indo ao cinema ou vendo um livro de História do Cinema na biblioteca, ou nos relatos de Meliès), mas em momentos pontuais, como quando o menino se pendura no ponteiro do relógio para se esconder do guarda (que remete ao curta mais famoso de Harold Lloyd – cujo trecho já havia sido mostrado no filme), ou quando vemos um sonho dentro de um sonho (como em Buñuel). Como estamos na Paris dos anos 1930, não poderiam faltar as referências a René Clair (A Nós a Liberdade, O Milhão), Jean Vigo (Zero de Comportamento) e Jean Renoir (A Grande Ilusão, A Besta Humana). A Paris que vemos em Hugo, por sinal, é de pura fantasia, uma cidade de eterno alaranjado crepuscular, que só se justifica no cinema. E a neve pode ser encarada como uma homenagem a Resnais (aprendemos na época de Medos Privados em Lugares Públicos que é raro nevar em Paris), mas também como uma possibilidade de se sentir o 3D logo de cara, ajudados pelo mergulho vertiginoso da câmera na estação, em meio a uma nevasca. E convenhamos, tudo a ver com Hugo, cuja ambiência parece com uma ampliação daqueles motivos que encontramos em bolas de cristal de enfeite como a que Welles deixa cair no início de Cidadão Kane (com direito a neve caindo dentro da bola, claro). Ou seja, vemos um belo uso do 3D, sim. Um uso que, pela aparência irreal, delirante, combina bem com a narrativa fabular.

Outra questão é a montagem. A bronca com a montagem dos filmes de Scorsese começou há tempos, da parte de alguns críticos mais radicais, e foi se espalhando pela crítica, chegando agora também aos jornalistas de cinema. É meio automático: ao ver o nome de Thelma Schoonmaker, começam a perceber problemas de ritmo, defeitos nos cortes (e também na decupagem, etapa anterior à filmagem). Até entendo que algumas opções possam ser vistas como problemas em filmes como O Aviador, Os Infiltrados e A Ilha do Medo. Mas em Hugo? O que há de tão errado com sua montagem? É acelerada, por certo, mas nunca irritante como a de As Aventuras de Tintim. Os flashbacks são longos? O maior flashback é o do clímax, que é a redescoberta de Meliès por um professor de cinema (seria este um santo? lembremos que ele aparece de repente na biblioteca, como que invocado pela paixão das crianças). Por isso precisa justamente de suas memórias para ser melhor sentida. O errado seria justamente abreviar esse flashback crucial. Na verdade, Hugo tem a melhor montagem em um filme de Scorsese desde Gangues de Nova York.

Há também o aspecto emocional, que Scorsese abraça sem pudores pela primeira vez em sua carreira. Se em seus dramas históricos, especialmente em A Época da Inocência, o diretor soube evitar o tom demasiado sentimental, mesmo quando este parecia inevitável, em Hugo essa precaução não existe. Scorsese está há milhas de seu amigo Spielberg nesse quesito. Basta ver a montanha de acordes enjoativos que John Williams colocou em Cavalo de Guerra. É de se estranhar sua falta de vergonha na exploração dos sentimentos em Hugo. Scorsese parece ter libertado definitivamente seu lado italiano, mas ainda há uma certa pompa cinefílica ali, vigiando os excessos, podando o que poderia se tornar piegas. Da mesma maneira, a estrutura clichê da narrativa não é camuflada, nem mesmo driblada. O que torna Hugo bem previsível com pouco tempo de projeção. Porém, previsibilidade nunca foi um problema a priori, e Scorsese está ciente disso. Pode-se trabalhar num terreno já muito explorado e conseguir algumas nuances interessantes dentro dele, e é isso propriamente que difere Hugo de seu maior concorrente ao Oscar, O Artista, filme que tenta fazer algo original, mas revela-se convencional em muitos aspectos, e de Meia Noite em Paris, em que Woody Allen cai (para alguns) no mesmo pecado do didatismo, mas mantém-se plenamente fiel à ideia de autor.

Mas se há um filme com o qual Hugo dialoga abertamente, esse filme não é O Artista, como vem sendo destacado por aí, mas O Jardim Secreto, refilmagem de um clássico dos anos 40 dirigida por Agnieszka Holland (em seu melhor momento). Em ambos os casos temos duas crianças (uma delas órfã) trazendo adultos desiludidos à vida. No filme de Holland, é um jardim que ajuda a reavivar, com suas cores, o coração enferrujado do dono da mansão e o filho deste, enfraquecido por uma crença idiota de que ele não poderia ser exposto à luz do sol. Em Hugo, é o cinema que termina, por fim, fazendo valer sua magia e reavivando as forças de um dos grandes pioneiros desta arte, Georges Méliès. Sabemos que esse reviver é momentâneo, e que a humanidade tende sempre a esquecer. Como lembrou José Geraldo Couto, Méliès “continuou na miséria, jamais voltou a filmar e terminou seus dias num refúgio para artistas”. Mas um filme que é construído como uma fábula pode muito bem terminar com a nota positiva.

No mais, é curiosa a dualidade explicitada por Scorsese: um filme em 3D, cheio de efeitos de última geração, numa época totalmente dominada pelo digital, feito para apontar as maravilhas do que é mecânico, das engrenagens do relógio, do autômato, da câmera cinematográfica, ou mesmo da perna mecânica feita para o guarda da estação.

O trânsito é fluente por diversos caminhos nessa dualidade. Estamos entre a fábula e a pedagogia, entre a paixão e o compartilhamento de conhecimento, entre a maquinação e o registro, entre a memória e o efeito especial. Que um filme juvenil passe por várias instâncias do aprendizado e se sustente ao final não é algo a se desprezar. Ainda assim, Hugo poderia ser um grande filme de contrabando, caso Scorsese tivesse se empenhado mais em sua construção.

A Invenção de Hugo Cabret  faz com que o iniciado admire o jogo imposto por Scorsese, desde que consiga ultrapassar a desconfiança inicial com as concessões. Faz também com que o espectador leigo saia amando um pouco mais essa arte maravilhosa, mesmo que seja só durante a experiência na sala de exibição.

Sérgio Alpendre

 

Touro Indomável

OS FILMES HISTÓRICOS DE SCORSESE

Sexy e Marginal (Boxcar Bertha, 1971)

A influência de Bonnie & Clyde, presente em todos os diretores da Nova Hollywood, é evidente aqui. Mas Scorsese ainda estava verde.

New York, New York (1977)

Musical injustiçado que Scorsese realizou no auge de sua dependência química. Mostra um casal de músicos que se conhece no dia em que termina a Segunda Guerra Mundial.

Touro Indomável (Raging Bull, 1980)

Jake La Motta, da ascensão à queda, num dos retratos mais corajosos e tocantes de um homem que poderia ter sido um grande campeão.

A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988)

“Vejam meu filme, antes de julgá-lo”, dizia Scorsese contra a censura burra da igreja católica na época. Só a representação da última tentação (cerca de meia hora de projeção) já vale o filme.

Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990)

Muita violência e virtuosismo na direção, mas o que sempre me vem à cabeça quando lembro deste filme é a doce música das Shangri-las.

A Época da Inocência (The Age of Innocence, 1993)

É certo que Scorsese não é Visconti. Mas quem não percebe a identidade do diretor de Taxi Driver nesta bela história do amor aprisionado pelas convenções do século 19 tem miopia em grau avançado.

Cassino (Casino, 1995)

Calças boca-de-sino, disco e rock glamouroso nos auto falantes, Las Vegas em alta. Cassino é o retrato mais belo de uma era perdida.

Kundun (1997)

Scorsese realiza aqui seu filme menos scorseseano, o que não impede que alguns planos sejam esplendorosos, como o do pequeno Buda em meio aos corpos destroçados.

Vivendo no Limite (Bringing Out the Dead, 1999)

Histórico porque a Nova York do fim dos anos 1980, pré-Rudolph Giulianni, já era definitivamente algo de um passado distante.

Gangues de Nova York

 

Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2002)

Daniel Day Lewis dá um show neste tratado sobre o preconceito e a alma essencialmente violenta dos americanos, já no século 19. “Amsterdam? I’m New York”.

O Aviador (The Aviator, 2004)

Filme tortuoso, grandioso e repleto de achados, O Aviador é uma cinebiografia à altura da personalidade de Howard Hughes, magnata expoente na primeira metade do século 20.

 

Ilha do Medo (Shutter Island, 2010)

Scorsese volta ao horror psicológico 19 anos depois de Cabo do Medo. O personagem de Mark Ruffalo é a chave para que o espectador decifre o enigma antes do protagonista DiCaprio.

(SA)

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Leia a crônica de Renata Saraceni sobre A Invenção de Hugo Cabret

Leia a crônica de Joel Yamaji sobre A Invenção de Hugo Cabret

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