As Praias de Agnès
As Praias de Agnès (Les Plages d’Agnès, 2008), de Agnès Varda
Não é sempre que um filme desse quilate estreia no circuito comercial brasileiro. Na verdade, tem sido bem raro. Com As Praias de Agnès, Varda, uma das últimas sobreviventes da Nouvelle Vague, acerta as contas com o passado. O que diz respeito, principalmente, ao falecido Jacques Demy, seu grande parceiro artístico, à sua própria carreira e ao cinema. Mas apesar de falar na maior parte do tempo sobre o próprio umbigo, gostos, desgostos, encontros e descobertas, Varda em momento algum é egocêntrica. Pelo contrário, sua visão das coisas e o carinho que dedica a cada sequência implica em uma generosidade rara.
Logo no início, a própria Varda fala para o espectador algo mais ou menos assim: “se abrissem as pessoas, dentro delas veríamos paisagens. Se me abrirem, verão praias”. E então instala vários espelhos sobre a areia, espelhos que refletem o mar, mas também seu rosto. É uma impressionante instalação litorânea que abre o filme para uma série de colagens e de novas imagens captadas para compor essa autobiografia filmada incomum.
As Praias de Agnès está para o cinema assim como Meu Último Suspiro, a deliciosa autobiografia de Luis Buñuel, está para a literatura. As lembranças se acumulam, e os filmes são puxados para completá-las. Quando não são os filmes, são outras artes visuais, ou mesmo representações inspiradas por essas ideias. O único compromisso é com o que uma lembrança pode trazer. A espinha dorsal do filme é portanto a memória da cineasta.
Por isso é inevitável que o filme seja desconexo, cheio de pontas soltas, digressões assumidas e devaneios como o do casal de Magritte, encenado de maneira sui generis por Varda. De certa forma, a estrutura e a proposta do filme pedem essas digressões, todas saborosas e pertinentes, nunca interrompendo algum fluxo ou pensamento mais complexo.
O filme é multi-referencial. Passa de pintores renascentistas a cubistas, de fotógrafos a atores de teatro, de Jane Birkin a Michel Piccoli, de Schubert aos Doors. E passa pelo envolvimento da diretora com os Panteras Negras e as feministas, as chamadas minorias exigindo direitos nos tumultuados EUA do fim dos anos 1960.
É também um retrato de viagens. Vai da França à Califórnia e depois volta. E álbum de família. Varda viu seu filho com Jacques Demy, Mathieu, crescer por meio do cinema. A filha com outro marido também aparece em seus filmes (ou nos de Demy), crescendo na tela. Em uma das digressões, diz que levou Jim Morrison às filmagens de Pele de Asno, de Demy. Em outra, é flagrada pela câmera limpando-se “como um gato” num restaurante da Califórnia. Há ainda um gato enorme que aparece para questioná-la de vez em quando. E por aí vai.
Esse desnudamento diante do público é a maior força de suas reminiscências cinematográficas. Podemos chamar de documentário, ou de ficção, mas nenhuma qualificação seria justa. Melhor chamá-lo de filme da alma, um desses raros momentos em que o cinema se abre para as “razões do coração”.
Sérgio Alpendre
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