Festival na Tasmânia
Seis meses se passaram a partir da minha sugestão para uma viagem coletiva – uma excursão – ao The Falls Festival, na Tasmânia. A galera topou e estávamos lá: três trailers e 11 amigos na frente do portão de entrada, inquietos para chegar ao lugar que seria nossa cidade pelos próximos três dias. E nada de exagero em chamar um lugar de cidade onde 16 mil pessoas morariam – em frente à bela Marion Bay – entre os dias 29 de dezembro e 1º de janeiro. O festival foi nossa primeira parada da road trip que planejamos ao redor da Tasmânia. Ansiosos pelo início do festival, chegamos duas horas antes dos portões abrirem. Tudo para conseguir um bom lugar para os trailers, perto dos palcos e das facilidades do acampamento.
Chegamos, posicionamos nossas “casas” e, ainda meio perdidos, fomos entender a nova realidade que estava na nossa frente. Saíram os prédios e casas, entraram em cena trailers e barracas. O lugar era lindo, o palco principal com o mar de pano de fundo, e verde para todo lado, contrastando com a colorida decoração do espaço. E carros, muitos carros chegando. Todos prontos para “desligar” por três dias e começar 2012 de um jeito novo, divertido, dançante.
Primeiro festival
Apesar de já ter assistido a grandes shows em lugares espetaculares, nunca havia participado de um festival, morando, dormindo, acordando e vivendo de música, e logo de cara notei que a experiência seria muito mais do que apenas sonora.
Entramos em um universo paralelo onde o padrão virou exceção. A população dessa nova e pequena cidade buscava experiências estéticas totalmente diferentes daquelas que adotam enquanto estão do lado de fora ou no mundo normal. Alguns voltaram no tempo, fazendo referências aos anos 1950 e 1960; outros se vestiram de personagens de quadrinhos, e houve quem inferisse a moda do futuro com trajes de classificação impossível. Por três dias, a moda democratizou-se e não foi ditada por Paris, Milão ou Nova York, e sim pela cabeça das pessoas.
A rotina também sofreu uma drástica mudança. Fogões foram substituídos por fogareiros, e o macarrão instantâneo virou prato principal. Esqueça aquele chuveiro que de tão potente mais parece uma hidromassagem; ficamos apenas com um cano com água gelada. Sanitários secos, utilizando um método de compostagem, também tiraram um pouco do conforto a que todos estavam acostumados, mas proporcionaram um caráter ecologicamente correto – nada de desperdício de água ou risco de contaminação do solo por produtos químicos. A não interferência no meio ambiente era preocupação recorrente em vários aspectos desse festival, com o reaproveitamento da água da chuva, incentivo à reciclagem e forte fiscalização nas fronteiras da “cidade”, impedindo qualquer invasão ao frágil e selvagem ambiente vizinho, uma área de proteção ambiental.
Estreia como fotógrafo em show
Já tinha viajado por mais de dez países tirando fotos, fiz alguns eventos, casamentos, fotografei campeonatos de surf, alguns cliques foram feitos nas clássicas quadras de Wimbledon, mas nunca um show, quanto mais um festival com mais de 50 bandas. No The Falls, eu tinha credencial de fotógrafo ou de imprensa, um passe mágico que proporcionou acesso a um lugar privilegiado, entre o palco e a plateia. Ficar a poucos metros de grandes bandas, com espaço para dançar e ouvir as caixas de som testando os limites dos ouvidos, faria desse lugar o mais caro entre todos os lugares dos shows. Não me contive: além de fotografar, eu literalmente curti estar lá. Pena que esse espaço VIP “existia” apenas durante as três primeiras músicas. Na primeira vez que vi o êxodo após a terceira música, não entendi nada, fiquei sem saber para onde ir, tentei ficar mais um pouco, até ser praticamente expulso por um dos seguranças. Um dos fotógrafos explicou que aquela era uma praxe, quase que mundial. Não podia reclamar, apenas teria que ser mais rápido, curtir menos e trabalhar mais. Nada mais justo!
Ser brasileiro
Assim como tantas canções e poemas que tratam sobre o exílio, devo concordar que a distância faz você valorizar ainda mais o Brasil e seu povo. Já tinha sentido isso em Londres e aqui em Sydney, lugares repletos de brasileiros, mas a remota Tasmânia só fez ampliar o orgulho de ser brasileiro. Viramos atração! Quando percebiam que éramos brasileiros, as pessoas queriam conversar e saber sobre nosso país, e estabelecer comparações com seu país de origem. Muitos nos ajudaram com dicas para o resto da nossa viagem e pediram até para tocar no meu cabelo, que é longo. Parecia um extraterrestre.
A organização do festival informou que provavelmente éramos os únicos brasileiros, algo muito difícil de acreditar – pensando que, em todos os lugares para onde fui, sempre esbarrei em um “brazuca”. Tentamos arduamente achar um conterrâneo, quando víamos bandeiras e cangas com a bandeira do Brasil, corríamos para atestar a nacionalidade, mas todas as buscas foram em vão – não achamos nenhum outro representante e, sem dramas, honraríamos nossas cores.
Som na caixa – quebra tudo!
Primeiro dia – 29/12/2011
Durante seis meses, tentamos conhecer o maior número possível de bandas para planejar nossa maratona de shows. As atrações foram divididas em dois palcos: The Valley, o maior, e o The Field, o palco mais intimista, além da Village, onde aconteciam atividades com artistas de várias linhas, caminhos, etc.
O primeiro dia foi de reconhecimento. Nada de bandas, apenas DJs dando o tom para performances das mais variadas. A melhor discotecagem do dia ficou a cargo de Mohair Slim, disparando uma mistura de R&B, soul, ska e reggae, que levantou os recém-chegados. Dançamos freneticamente e tivemos a grata surpresa de assistir Anna Lumb, dançarina que acelerou a galera com seus movimentos circenses, hipnotizando a todos em uma performance com bambolês.
Devidamente aquecidos, partimos para a Village, uma tenta de circo, com uma pegada intencionalmente caótica: muitas luzes, cores e sons. Chegamos a tempo de ver Taiko Drummers, espetáculo de percussão japonesa que deixou todos boquiabertos com os gritos de guerras entre o som dos tambores (taiko significa tambor em japonês). Encerramos a noite assistindo aos estranhos Wacko e Blotto, um show performático realizado em um trailer. A dupla fez uma crítica ácida ao rumo do humor atual, com brincadeiras para chocar o público. Após quinze minutos, estávamos saturados do humor politicamente incorreto da dupla, e fomos descansar após o primeiro dia de apresentações musicais.
Segundo dia – 30/12/2011
O primeiro show na nossa lista era do guitarrista J. Mascis, que entraria no The Field às 13h, mas como dormir até tarde no trailer – em um festival – é impossível, aproveitamos a manhã ensolarada e fomos para a praia, ou melhor, para a parte onde podíamos frequentar. A areia da Marion Bay é um dos locais escolhidos pelos shorebirds* para fazer seus ninhos, limitando o espaço dos visitantes. Desta forma, o risco de alguém pisar em ovos era reduzido. Uma hora de praia, e seguimos para assistir ao guitarrrista que figura na lista dos 100 melhores do mundo pela revista Rolling Stone. Ouvimos a apresentação de seu mais recente álbum solo, “Several Shades of Why”, som acústico levado apenas por guitarra e voz. Bom aquecimento!
Em seguida, correria rumo ao show da neozelandesa Kimbra, no palco principal, considerada uma das promessas da música pop local. Dona de uma voz potente com uma levada soul e uma energia no palco que levantou o público.
Mudamos de palco novamente, e a próxima parada foi com os franceses do Nouvelle Vague, banda que toca versões de grandes sucessos, alterando ritmos e arranjos, e usando muito da nossa bossa nova como base. Show gostoso de ouvir e dançar, mas nem tivemos tempo para relaxar, e seguimos novamente para o The Valley, para assistir Aloe Blacc, representante do hip hop americano, com influências de soul. Na verdade um show com levada mais funk e uma das boas surpresas do festival.
Um dia inteiro com atrações energéticas e, ufa!, sentamos no gramado por duas horas para aguardar um dos shows mais esperados de todo o festival: os ingleses do Arctic Monkeys, banda que, com seu primeiro álbum, “Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not”, ultrapassou o grupo Oasis como o álbum de estreia mais vendido no Reino Unido. Na primeira semana do lançamento, o Artic Monkeys faturou 360 mil cópias e ultrapassou a soma de todos os outros Top 20. O público delirou quando a banda entrou no palco, e foi isso. Essa energia toda da entrada não se sustentou ao longo do show: grandes intervalos entre as músicas, uma certa postura arrogante e blasé fizeram deles a grande decepção do The Falls. Para não fugir do clichê, o melhor estava reservado para o final…
Terceiro dia – 31/12/2011
O festival realmente veio em uma crescente: primeiro dia para aquecimento, segundo com bandas boas e uma decepção, e o terceiro…
Nosso dia começou devagar, como se estivéssemos nos poupando para a festa da virada, e a agenda do festival contribuiu. O primeiro show que queríamos assistir aconteceria às 14h – a Banda Beirut – e aproveitamos a pequena distância com o palco principal para curtir o show sentados na frente do nosso trailer, só relaxando! Som gostoso de ouvir, e a opção de escutar o show deitado na grama foi perfeita. Em seguida, os representantes brazucas do CSS (Cansei de Ser Sexy) tocariam no palco principal. Naturalmente fomos prestigiar os compatriotas, e a plateia esvaziada não foi obstáculo para eles demostrarem o que têm de melhor: animação. Mas infelizmente não deram a mínima para a única bandeira do Brasil, que balançávamos incansavelmente.
Corremos para o show do Easy Star All Stars, que estranhamente se apresentou no palco menor. Mas houve um lado positivo: vimos um dos melhores shows do festival como plateia VIP. A releitura do clássico álbum “Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, com uma batida dub, fez o palco Field ficar pequeno para tamanha empolgação do público. Gostamos tanto do show que aproveitamos da pegada mais relax que rolava no palco menor e fizemos o que qualquer membro de fã-clube faria: não demos trégua aos seguranças até conseguir uma foto com os Easys. Os caras tocaram um som de primeira e, além de tudo, eram muito simpáticos.
Com o cronograma apertado, seguimos mais uma vez para o palco principal, dessa vez para ver Fleet Foxes com seu som indie folk.
Todas as vezes que entrei na área de imprensa ou espaço reservado aos fotógrafos, eu me senti meio diferente dos caras: estava quase sempre sem camisa, dançava, dava beijos na minha namorada que também fotografava, isso sem falar no meu tipo físico: cara de índio contrastando com a pele clara e os olhos claros dos outros companheiros de profissão. E especialmente no show do grupo que mais ouvi nos últimos seis meses – John Butler Trio – virei um membro da plateia, as três primeiras músicas passaram voando e, quando olhei, praticamente não tinha tirado fotos. Show mais do que especial: assistir ao virtuoso John Butler tocando seu violão de 12 cordas foi o espetáculo que grande parte de nós sempre quis para celebrar o Ano-Novo.
Um fim que é também começo
Após a epifania, vimos a contagem regressiva ser conduzida por súditos da Rainha – The Kooks – após um recesso de três anos dos palcos. Os caras esqueceram o indie que os credenciava e voltaram impregnados de pop. Resultado: fizeram a alegria dos tens; ficamos meio bravos no começo, mas celebramos junto com os garotos a chegada de 2012!
Estávamos quase lamentando o final do festival quando resolvemos passar pela tenda de circo, na Village, e esperar a apresentação do Babylon Circus. E enfim a conclusão perfeita para começar 2012: os franceses que integram essa banda misturaram ska, punk e reggae com influências de música balcã e uma pitada de jazz, e assim incendiaram a pequena plateia com uma apresentação incrível, de lavar a alma – e lavamos mesmo com o suor que escorria pelo corpo de todos que assistiam ao show.
Depois do festival, os 11 amigos seguiram por mais 11 dias rodando 2 mil quilômetros pela Tasmânia – a ilha que ficou conhecida mundialmente por um personagem de cartoon. E valeram os seis meses de planejamento, muita vontade, alegria e amizade para começar 2012 com baterias recarregadas e todos prontos para uma nova aventura.
*As aves marinhas tão presentes na cena australiana.
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Marco Estrella é fotógrafo que se mistura com a plateia dos melhores shows, escritor e demônio da Tasmânia.
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