Baderna digital
Baderna Digital
Por Fernando Watanabe
2011 fica marcado como um ponto de virada simbólico da transição da película para o digital, não apenas no que diz respeito ao estágio da produção de um filme, mas também à sua distribuição/exibição. A fase de produção de um filme há muito tempo é pensada e executada tendo em vista a digitalização total do processo: barateamento dos custos. Paralelamente (mas na verdade o elemento motor principal), ocorre o aumento do lucro das grandes empresas de eletrônicos que ganham bilhões ao vender filmadoras digitais amadoras e profissionais. Hoje, todo mundo pode fazer um filme.
Qualquer pessoa que não seja necessariamente um profissional do cinema, se tiver acesso a uma filmadora digital das mais simples, ocasionalmente pode realizar algo com potencial de ser mais interessante do que um trabalho profissional. Seja documentando um casamento, seja filmando a vizinha que troca de roupa na janela do prédio em frente, as possibilidades de filmes realizados de maneira instantânea e acidental são infinitas. É um verdadeiro “baby boom” no mundo dos filmes (ou vídeos, já que tecnicamente não há mais filme fotográfico envolvido no processo). A profusão de imagens é avassaladora, e a tarefa dos críticos/curadores é ter aquela visão (rara) de longo alcance que vai saber detectar aquilo que artisticamente é relevante, sem que tal distinção rebaixe formas amadoras a um nível necessariamente muito mais baixo. Há espaço para tudo, e se um vídeo caseiro postado no youtube não permanecerá para sempre na história da arte, ele tem uma certa importância e um certo alcance que variam de acordo com os interesses de quem faz o vídeo e de para quem ele é destinado. Nem tudo precisa ser (reconhecido como) arte, nem tudo precisa ser profundo ou conceitualmente sofisticado. Ao contrário, aqueles que vivem no âmbito da mais alta esfera artística podem se alimentar da vastidão de imagens disponíveis na rede (o exemplo mais direto é Godard usando gatos do youtube em seu “Film Socialisme”, podendo eles transitar por entre aquilo que é médio, e fundamentalmente por entre aquilo que na visão deles é considerado baixo). O vídeo já possui o status da escrita da caneta no papel: pode-se fazer uma mensagem de amor, um pedido de casamento, um protesto às autoridades e piadas em vídeo, com a grande vantagem sobre o papel e a caneta de que quem faz vídeo não precisa ser necessariamente alfabetizado na linguagem audiovisual (a escrita à mão até hoje esbarra na barreira intransponível do analfabetismo). No audiovisual totalizado, não há regras que não possam ser quebradas, agora com mais espaço aberto para que as subversões e o experimento apareçam.
Infelizmente, as escolas de cinema ainda são muito conservadoras no que diz respeito aos modos de produção de filmes. Não tenho grande conhecimento sobre todos os cursos universitários de cinema/audiovisual do Brasil, mas aquilo que vi ainda é muito desanimador: o digital foi encarado apenas como uma forma da escola economizar no orçamento anual do curso. Uma simples troca dos meios. Ao invés de uma câmera em 35mm que antigamente era disputada a tiros, a escola hoje pode ter cinco filmadoras digitais que podem circular mais pelas mãos dos alunos, e isso é bom. O grande problema persiste na mentalidade de produção derivada de um tal “surto” de profissionalismo audiovisual que está fatalmente ligada à necessidade de sustentar a crença de que o Brasil possui um mercado forte no setor. A maioria dos professores, por alguma questão inexplicável, ou na verdade, por raramente colocarem para si mesmos qualquer tipo de questão, insistem em ensinar que um filme só pode ser feito por uma equipe de 25 pessoas. Dessa forma, eles corroboram a mentalidade do mercado, que precisa sempre oferecer emprego para os técnicos. Se o “grande segredo” (nem tão secreto assim) fosse revelado, isto é, de que também é possível realizar grandes coisas com uma equipe de três ou até mesmo sozinho, os poucos técnicos profissionais do mercado brasileiro ficariam desempregados da noite para o dia. Logo, a lógica é a seguinte: o “baby boom” alavancado pelo digital e enaltecido pelos amadores é secretamente odiado pelos “profissionais”, não porque estes temam que os primeiros tomem seu lugar (afinal, há espaço para todos), mas porque os profissionais do metier precisam se convencer de que aquilo que eles fazem é realmente especial e que, portanto, não se diluirá em meio à vastidão da produção atual. Os profissionais precisam se iludir de que eles são portadores de um grande segredo ao qual os meros mortais não têm acesso. Todo mundo tem necessidade de se sentir especial, e se o cinema até o fim dos anos 90 era um carimbo de distinção na testa do cidadão, hoje não mais o é. Deve ficar bem claro que é para fazer o dinheiro circular que os sets de um curta-metragem de 5 minutos têm 25 pessoas, e não porque isso é realmente necessário para se fazer um bom trabalho. Mentalidade publicitária que domina o mercado, que por sua vez é derivada do modo de produção norte-americano. Necessidade de pagar as contas, por um lado. Por outro, os créditos de 3 minutos em um curta-metragem de 10 denunciam um pouco de síndrome de “quero ser grande”, desejo de distinção e arrivismo subdesenvolvido. O cinema, mais do que pouco tempo atrás e de certa forma retornando às suas origens, é algo vulgar, precisamos aceitar isso.
No circuito de festivais, aos poucos já tratam os filmes digitais em pé de igualdade com os feitos em película. Mas os filmes digitais de mais sucesso poderiam ter sido feitos em película e foram em sua maioria realizados naquele esquema de produção inflado para poder justificar o dinheiro público dos editais. Alguns ganham mais “moral” com a curadoria se enviam uma cópia de exibição vinda de um transfer. Realizadores renomados como Robert Rodrigues e Steven Soderberg utilizam pseudônimos para eles próprios nas funções técnicas porque os distribuidores os levariam menos a sério se descobrissem que eles fazem quase tudo sozinhos nos seus trabalhos. Filmes feitos de forma acidental ou que incorporam uma linguagem “caseira” (na falta de termo melhor) ainda são tratados como experimentos, e isso pode ser constatado quando se compara a seleção do Festival de Brasília com a da Mostra do Filme Livre, e não é à toa que o primeiro é levado mais a sério que o segundo. A cada ano vão sendo lançadas novas filmadoras cada vez mais sofisticadas, que na verdade eles já têm na gaveta há anos, mas, por que não ganhar dinheiro com uma tecnologia ainda ruim por enquanto e guardar a mais evoluída para ganhar mais dinheiro depois? É como funcionam todos os mercados em que alguma tecnologia está envolvida, e essa lógica tem um lado grotesco e hipócrita, pois os constantes upgrades tecnológicos são alardeados como “evolução”, quando na verdade trata-se apenas de mudanças de paradigmas impostas por interesses comerciais, e não por interesses necessariamente qualitativos.
A conclusão óbvia deste curto ensaio não é nada nova: filmes não apenas são, como na verdade sempre foram, tecnicamente fáceis de se fazer. No entanto, essa facilidade é desencorajada pela necessidade de se fazer o dinheiro circular. Se você fizer um filme fácil demais, corre o sério risco de não ser levado a sério pelas curadorias e menos ainda pelos exibidores. A grande esperança residiria no fim do cinema enquanto tal e na consolidação de todas as formas de difusão audiovisual colocadas em pé de igualdade: youtube, DVD, arquivos flutuantes na rede, tudo a custo zero. A pirataria seria legalizada e vista como algo positivo para a cultura de uma sociedade e tudo estaria acessível a qualquer hora e em qualquer lugar, assim como a música hoje o é de certa forma. Mas isso seria anarquia demais, e antes que tais caminhos virem uma plataforma de liberdade de criação, tenho certeza de que os homens de terno vão achar uma forma de domesticar o monstro que as ameaça a fim de torná-lo um negócio mais rentável ainda. Eles já estão trabalhando nesse sentido, enquanto a gente briga pelas migalhas dos editais.
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