Ano VII

Cavalo de Guerra

quarta-feira jan 11, 2012

Cavalo de Guerra (War Horse, 2011), de Steven Spielberg

De todos os golpes baixos já desferidos por Steven Spielberg, Cavalo de Guerra é o mais deliberado, o mais traiçoeiro. Nele, o cineasta conta o martírio de um cavalo e de seu jovem dono, durante a Primeira Guerra Mundial. Aproveitando a estrutura episódica do roteiro, Spielberg encontra lugar para fazer com que suas pequenas narrativas funcionem como uma coletânea de sua filmografia, sobretudo o drama familiar – no caso, de uma família pobre, na Irlanda, tentando manter o pequeno pedaço de terra em que vive -, e, em menor grau, o filme de guerra – desta vez, sem balas acertando as cabeças de soldados que admiram com surpresa a funcionalidade de seus capacetes, mas com muito de garotinhas de vestidos vermelhos correndo inocentemente de um lado a outro, em meio ao pandemônio de mocinhos e bandidos que são, invariavelmente, seus campos de batalha.

Diferentemente dos trabalhos mais recentes do diretor, Cavalo de Guerra escancara uma mal contida vontade de se utilizar da História para perpetrar polarizações simplistas através de antíteses extremas como coragem/covardia, benevolência/crueldade, guerra/paz. Spielberg quer dar ao mundo um modelo de ordem, amplificando a fraternidade até o despropósito de torná-la perene. Para tanto, faz de seu cavalo um acontecimento incorpóreo, um instrumento para segregar o mundo entre aqueles que praticam a solidariedade e a compaixão, daqueles que só servem para desarranjar a paz que um dia reinou, neste mundo por hora decaído.

E é dessa serenidade que o início do filme trata, no cotidiano humilde e sonhador dos Narracott e, se já foi percebido que Spielberg sabe mais como começar um filme do que como acabá-lo, fazendo, às vezes, com que todo o resto seja comprometido por isso (O Resgate do Soldado Ryan sendo o caso mais explicito, mas longe de ser o único), percebemos ser este o seu intuito quando, à moda dos filmes mudos, vemos todo o desenvolvimento da amizade do garoto com o animal. O problema maior (a despeito de toda a forçosa humanização do cavalo) é que, desde este primeiro momento, a música de John Williams parece trazer, com toda a sua grandiloqüência, um artificialismo apelativo e exagerado, até mesmo se comparada a outros trabalhos do compositor, com o cineasta inclusive – que, juntos, ninguém irá discordar, já haviam estabelecidos uma dosagem bastante elevada de açúcar em suas fórmulas. Analogamente, a fotografia de Janusz Kaminski – que afirmou ao Estado de São Paulo ter usado como referência para seu trabalho o cinema de John Ford, em particular nos planos abertos e na resplandecência do céu – caminha de acordo, conferindo não exuberância, mas superficialidade ao todo, compondo com o idílio do começo e do final dessa jornada alguma coisa que remete mais ao Condado dos hobbits, em O Senhor dos Anéis, do que a vila galesa, em Como Era Verde Meu Vale.

Neste mais pastoral dos paraísos, Spielberg parte à sua narrativa de predestinação, uma em que nada parece de fato existir: alternando entre o relacionamento do rapaz com seu animal e a dureza da vida em tempos de guerra, o filme nunca chega a impor o equilíbrio oportuno de emoções de um filme realista arejado por uma fábula pueril (ou vice-versa), como supostamente intencionado pelo diretor. E as poucas exceções (pois elas existem, sendo Spielberg, sem dúvida, um realizador muito acima da média), como na seqüência que parece ter sido a razão da realização de todo o projeto, quando o cavalo corre (em um glorioso CGI) pelos campos tremulantes de uma noite escura e acaba por se enroscar em arames farpados, causando uma piedosa trégua momentânea, servem apenas para confirmar a regra: a força do instante convém tão e somente para reavivar a fragilidade do todo e, junto a ele, manter o plasma sentimental dos espectadores, a essa altura já há muito chorando por inércia.

Em sua busca por suscitar um elo entre E.T. (ainda seu melhor filme, sua retomada sina?) e O Império do Sol – na onda “revival anos 80” -, Spielberg faz de seu novo filme um inesperado retrocesso. Desestruturado, Cavalo de Guerra torna-se, desde cedo, uma indulgência compassiva em formato de catálogo de erros. Com todo seu barulho, ressoa histérico.

Bruno Cursini

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