Missão Impossível
Missão: Impossível – Protocolo Fantasma (Mission: Impossible – The Ghost Protocol, 2011), de Brad Bird
Muita água passa por debaixo da ponte quando se trata de um filme como Missão Impossível: Protocolo Fantasma. Resumir uma análise a “gosto”, “não gosto”, “a cena de Dubai é deslumbrante” ou “a montagem se parece com videoclipe” não passa de bobagem, é ignorar a simbologia de poder e dominação da cultura – consequentemente, do cinema – norte-americana sobre o resto do mundo.
A começar que é um sinal óbvio dos tempos que um filme de ação se passe em vários lugares do mundo e que uma parte fundamental de seus eventos aconteçam em um não-lugar que atende pelo nome de Dubai, do qual conhecemos muitíssimo pouco, uma cidade cuja presença no cenário geopolítico internacional (inclusive no futebol) foi recentemente reinventada pelo dinheiro.
Um bem acabado produto – porque o filme é, de fato, seguro na sua realização e nas convenções do gênero – com cara de moderno: está lá a ideia de mundo conectado e diminuição das fronteiras. Ou seja, facilmente vendável para qualquer parte do globo. Por outro lado, o herói continua sendo o americano, enquanto o vilão (adivinha?) são os… russos!
A proporção que o filme toma numa projeção em Imax é a definição perfeita do espetáculo: é algo que simplesmente arrebata e aliena, com muitíssima eficiência, quem está à sua frente. Arrisco: a magnitude das cenas, dos planos abertos e das hipérboles que precisamos utilizar ao falar do filme me parecem uma demonstração de força do próprio cinema americano como indústria e máquina que domina o imaginário.
É o tamanho colossal de Missão Impossível: Protocolo Fantasma, especialmente na sequência que Tom Cruise escala o Burj Khalifa, o mais alto edifício do mundo, que me deixam com a sensação de que, mais do que entregar um bom produto para quem pagou o salgado preço do ingresso, haja a intenção de dizer: nós ainda fazemos o cinema mais espetacular do mundo – tomando “espetacular” num sentido mais próximo que o pensador francês Guy Debord tomou ao criticar a mediação pela imagem.
Há mais um porém: estamos tão acostumados com a ideia de ter os Estados Unidos dominando cultural e politicamente durante o Século 20 que todas as traquinagens impossíveis do agente secreto Ethan Hunt parecem possíveis. Fomos, e somos, educados quase que diariamente para acreditar na imagem que o cinema americano constrói dele mesmo e de seu país: um herói que não falha.
A verossimilhança e a capacidade de acreditar numa afirmação, verdadeira ou não, estão ligadas a quem a faz. Essa é uma das razões pelas quais é um sofisma apontar como solução para o cinema brasileiro a simples importação dos modelos ou das representações de Hollywood.
Quando Ethan Hunt sobe o tal do prédio em Dubai ou escapa da explosão fictícia no Kremlin, há uma operação lá no subconsciente que acessa tudo que já vimos, escutamos ou lemos sobre os Estados Unidos. Talvez seja por isso, pelo que há fora do filme, que aconteça a suspensão da consciência durante um filme de ação como esse. Quiçá seja pela força de quem construiu aquela indústria que as impossibilidades do agente Hunt tornem-se possíveis. Melhor: que não a olhemos como forçadas.
É essa a imagem que os Estados Unidos venderam como nação: um negócio colossal com tentáculos pelo mundo inteiro. E o cinema sempre foi peça-chave na construção de sua imagem para outros países. Me parece equivocado, então, o cinema brasileiro copiar esse modelo como se isso refletisse a maneira que nos enxergamos.
Me parece inevitável que um cinema que se pretenda verdadeiro passe pelo caráter terceiro-mundista do nosso cinema e do nosso país. Se não lidarmos com nossas contradições, como fazer o público crer no que está na tela? Por isso que frente à nossa tentativa de tentar fazer um filme de ação como Segurança Nacional, a reflexão peça algo mais complexo que “ainda não temos o expertise para o gênero”.
Antes do expertise, acho que existe a operação de verossimilhança e capacidade de crer no que está na tela. Nós, nossos pais e nossos avós cresceram vendo filmes com heróis americanos, com burocratas e geeks em grandes salas rodeados por máquinas, botões, sistemas operacionais. Quando surge mais uma produção norte-americana do gênero, um imaginário é acessado no subconsciente.
Por isso soa fora de lugar, desencaixado, quando Thiago Lacerda banca o policial durão em Segurança Nacional ou Lima Duarte o tira esperto em Assalto ao Banco Central. Olhamos para esses filmes e lá no fundo pensamos: mas não é essa a polícia brasileira que eu conheço!
Aí entra Tropa de Elite, que é um caso isolado de rara felicidade, mas que me parece estar sendo visto como a Meca para a qual o cinema brasileiro precisa caminhar. Incorpora-se, sim, algumas convenções do cinema americano, mas a condução do filme está nas mãos de um anti-herói contraditório. Uma representação da polícia e do Estado que estamos cansados de ouvir: abusiva e ineficiente. Quando Nascimento, capitão no primeiro filme e coronel no segundo, surge na tela, aos poucos acontece a identificação ou ao menos a operação de verossimilhança: surge a sensação de que o personagem está autorizado a falar de corrupção, pobreza, burocracia oficial, politicagem, assuntos que estão no rol das nossas contradições.
Então, seria a mímese a frente certa para o nosso cinema abraçar? É na cópia desse modelo e de seus arquétipos que está a força da produção brasileira? Eu acho que não: a produção brasileira, se se pretende verdadeira, deve passar por nossas contradições. Basta olharmos para os melhores longas lançados neste ano. Trabalhar Cansa, um filme de monstro, mas com as relações de trabalho, de poder e raciais delimitadas do jeito que conhecemos; O Palhaço, o tipo caipira/engraçado/inocente que há muito frequenta nosso imaginário; Os Monstros, realização de poucos recursos que justamente questiona o que é fazer arte num país de Terceiro Mundo.
Se não passarmos por nossas contradições no nosso cinema, realizaremos apenas produtos tão falsos quanto o suposto ar acolhedor/seguro/asséptico de um shopping center.
Heitor Augusto
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