O Medo Consome a Alma
O Medo Consome a Alma (Angst essen Seele auf, 1974), de Rainer Werner Fassbinder
É conhecida a admiração de Fassbinder pelos melodramas de Douglas Sirk, aquele que “fez os filmes mais cuidadosos que já vi, filmes de quem ama os semelhantes e não os deprecia”.
E em O Medo Consome a Alma bastam alguns poucos minutos para compreendermos exatamente o que isto significa. Emmi, a senhora alemã, e Ali, o imigrante marroquino vinte anos mais jovem, vão dançar pela primeira vez. Eles ainda mal se conhecem, mas desde logo sabemos que algo improvável irá acontecer.
A cena é simples, descritiva, clara à evidência. Lentamente, os dois cruzam o bar, sob os olhares meio descrentes, até chegar ao fundo do salão. Neste exato momento, ao som de uma música meio triste, a luz comum do bar é apagada – e em seu lugar surge uma iluminação vermelha (nem discreta demais, nem extravagante demais) que vem do alto, formando um belo efeito de contraluz nos corpos.
Aos poucos, tudo mais parece perder interesse, até os olhares dos demais freqüentadores. Antes distante, atrás de uma mesa, a câmera agora avança e passamos para um plano aproximado do casal. E, mesmo que por um breve instante, aqueles dois seres estarão descolados (o contraluz, o close) do resto do mundo. Livres dos preconceitos, eles poderão, de fato, se conhecer: a solidão e a tristeza que sentem é, no fundo, a mesma. E ao se conhecer, eles irão se desejar.
Se o amor entre Emmi e Ali jamais nos parecerá absurdo, é porque Fassbinder aprendeu a lição de Sirk: cada gesto dos personagens, cada centímetro da tela, é digno do olhar o mais cuidadoso possível. Nosso olhar está sempre ao lado do casal (e nunca com os demais personagens), junto com o diretor, graças apenas à luz e ao enquadramento escolhidos.
Mas estamos num melodrama (a tragédia transposta para a vida burguesa, como já foi dito). E pode-se acusar Fassbinder de tudo, menos de escapismo: seus personagens vivem num mundo preciso, quase sempre cruel, a Alemanha do pós-guerra. De modo que o amor Emmi e Ali, cedo ou tarde, terá que prestar contas ao seu entorno. Pois um desejo como este é uma forma de transgressão – e deve, portanto, ser punida.
E aqui, o elenco de personagens é rico e diversificado. Há, em primeiro lugar, a vizinha mexeriqueira, que vive em sua jaula de ressentimento (a primeira vez que a vemos, por trás da grade de sua porta, é magnífica). Há, também, a família: o genro xenófobo e raivoso (interpretado pelo próprio Fassbinder) acima de todos. E há, claro, o dono do mercado, pequeno capitalista hipócrita.
Com eles, Fassbinder cria uma trama de significados: cada personagem é como que um fio, e cada fio uma força de repressão (família, trabalho, dinheiro, moral) que se entrelaça, formando uma tecido social francamente doente. Mais do que seres abjetos, porém, eles nos parecem uns pobres coitados – presos a algo que não conseguem compreender, tampouco escapar: um medo que a nada lhes serve ou ajuda.
Filme relativamente simples, rodado rapidamente (como sempre com Fassbinder), o que mais impressiona em O Medo… é o incrível trabalho de cenografia. Aqui, cada espelho, cada degrau de escada, cada poça d’água é importante. É pela cenografia que Fassbinder melhor dará conta da solidão que domina o filme: o espaço parece feito ora para constranger nossos movimentos, ora para isolar os desviantes (o casal só, sentado à mesa sob uma chuva fina, ninguém à volta).
E se tudo isto pode parecer uma história de três vinténs (isto é, um tanto antiga e barata), o leitor não se engane: O Medo Consome a Alma é um grande filme.
Juliano Tosi
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