A Pele Que Habito
A Pele que Habito (La Piel que Habito, 2011), de Pedro Almodóvar
As referências trabalhadas por Almodóvar neste seu novo e sombrio longa-metragem são diversas: Os Olhos Sem Rosto (Georges Franju), Frankenstein (Mary Shelley), Gêmeos – Mórbida Semelhança (David Cronenberg), entre outras. Mas trabalhar com citações não é novidade em seu cinema, então podemos passar para o que realmente impressiona em A Pele Que Habito: a naturalidade com que o diretor explora temas como a mudança de sexo e a pulsão sexual (o que também não é novidade, mas que aqui atinge um patamar que só seus melhores filmes haviam conseguido). Há também a submissão de um filme de gênero (o drama noir) às regras de seu próprio mundo, à sua visão sui generis das coisas primordiais da vida.
Almodóvar consegue falar de temas tabus sem parecer agressivo ao espectador mais careta. Consegue, também, trabalhar elementos de outros gêneros (comédia, melodrama, ficção-científica) com extrema liberdade. Parece um milagre que seus filmes sejam bem recebidos por esta cinefilia cada vez mais conservadora e sem imaginação. O diretor conta, obviamente, com o endosso da crítica cinematográfica, o que abre portas e mentes, independentemente da qualidade do artista (que neste caso é inegável). Inácio Araujo escreveu em 2004, em uma brilhante resenha sobre o filme Tropas Estelares, de Paul Verhoeven: “é verdade que se engole um melodrama, desde que venha de Almodóvar. Mas aí é Almodóvar, não é melodrama, se é que dá para seguir o raciocínio. O critério de autoridade parece muitas vezes determinar nosso prazer”. Inácio estava certo. O público aceita as mais desembestadas loucuras e pieguices, desde que tragam o nome de uma grife. O que acontece, neste caso em particular, é que tal grife é assinada por um diretor realmente talentoso, longe dos corriqueiros Ozon e Bouchareb, para ficamos só em dois baluartes do atual circuito de arte.
A Pele que Habito tem duas partes distintas, que podemos separar em antes e depois do flashback. Antes, as situações são estranhas, os personagens parecem muito frágeis, não sabemos direito o que esperar do filme e o tédio ameaça se instalar a qualquer momento. Após um flashback corajoso por seu forte lado brega, tipo “ou vai ou racha”, o filme finalmente decola. Porque Almodovar geralmente se sai muito bem quando coloca as cartas na mesa. Desse modo, após um começo em que é difícil nos interessarmos por alguém, passamos a acompanhar com outro olhar a personagem de Elena Anaya, e também o de Antonio Banderas. É um convite à revisão, pois o conhecimento dos acontecimentos de seis anos antes fazem com que a história que se passa em 2012 fique muito mais instigante, tanto a que foi vista antes quanto o que acontece após tal flashback.
Nenhum dos personagens é vilão. Todos são vítimas do acaso e de uma sequência de equívocos. Algo que, por sinal, também não é novidade no cinema de Almodóvar. O que não parece equívoco é a substituição de Vicente por Vera, já que Elena Anaya, que faz o garoto já transformado em mulher, é uma atriz e tanto, e aqui vive seu melhor papel no cinema.
Em A Pele que Habito vemos um diretor em plena inspiração, trabalhando dentro de sua seara preferida com atores formidáveis (além de Banderas e Anaya, temos Marisa Paredes), e brincando de fazer cinema de gênero. O plano final é sublime, pois indica toda uma outra história, um outro mundo que ficamos com vontade de desbravar. Almodóvar nos faz voltar para casa aprisionados (mesmo sem querer) em seu mundo imperfeito.
Sérgio Alpendre
FILMOGRAFIA COMENTADA – PEDRO ALMODÓVAR
Pepi, Luci, Bon Y Otras Chicas del Monton (1980)
Transgressão mal ajambrada que lembra muito os filmes de John Waters nos anos 1970. A imagem de uma mulher urinando, presente em vários filmes do diretor, tem aqui seu momento mais infame e escatológico.
Labirinto de Paixôes (Laberinto de Pasiones, 1982)
Cecilia Roth brilha, mas o filme não funciona por inteiro. Talvez porque Almodovar estivesse ciente de que seus anseios pelo escândalo não estavam sendo muito bem trabalhados. Um filme até mais transgressor que o primeiro, mas em uma dosagem mais equilibrada.
Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983)
O primeiro grande filme de Almodóvar mostra uma cantora junkie que após a morte do namorado vai parar num convento pouco convencional. A transgressão está muito bem inserida na trama, ao contrário dos filmes anteriores, e o espírito compreensivo do diretor se mostra aqui com força máxima. A grande cena é aquela em que a cantora faz um dueto com a madre superiora enquanto toca um bolero no rádio. As duas são filmadas em plano e contraplano, com câmera subjetiva. Logo depois, se drogam, livres do julgamento da câmera.
Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (¿Qué he hecho yo para merecer esto!!, 1984)
Ora lembra Fassbinder, ora lembra Wenders, com direito até a canções alemãs na trilha. Mas é outro filme que prova a maturidade de Almodóvar. Carmen Maura tem talvez o melhor papel de sua carreira, só igualado pela mãe de Volver. Como no filme anterior, há uma natural adaptação de sua verve transgressora ao todo, formando um filme coeso, ainda que exista a liberdade para os famosos vôos libertários do diretor.
Matador (1986)
O filme mais ousado e estranho de Almodóvar. Paradoxalmente, foi seu primeiro grande sucesso de público e crítica. Tem sexo, gozo, morte, e os três se interligando. O começo já dá o tom do filme: um homem se masturba enquanto vê, na TV, cenas de intensa violência.
A Lei do Desejo (La Ley del Deseo, 1987)
Depois de um prólogo brilhante, com a dublagem de uma cena gay de um filme, entram os créditos com a mesma música que é tocada no auge de Que Fiz Eu Para Merecer Isso? Depois de A Lei do Desejo, seu melhor filme até então, só restava a Almodóvar buscar novos caminhos. Daí a série de filmes irregulares que se seguiram. No DVD brasileiro, a imagem dos olhos que se fundem às rodas do carro em movimento é muito prejudicada pela tela cheia no lugar do widescreen.
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1988)
A primeira meia hora é de tirar o chapéu, com o diretor apresentando os personagens com uma câmera inventiva, que passeia pelos cenários. Depois o filme se perde, talvez porque o diretor ainda não tivesse a mão firme para ilustrar em imagens os grandes dramas que pretendia explorar. É o melhor exemplo de que Almodóvar deveria dosar mais o humor em favor do melodrama, gênero com o qual ele trabalharia muito bem a partir de A Flor do Meu Segredo.
Ata-me (Átame!, 1990)
Até hoje é o mais comercial de Almodóvar. Tem defensores de respeito, mas muitos torceram o nariz para o filme. Segundo estes últimos, parecia um inventário de transgressões adaptadas para o gosto médio. Não é a toa que o filme fez bastante sucesso no circuito de arte. Mas há sempre a explosão carnal de Victoria Abril para desequilibrar positivamente as coisas.
De Salto Alto (Tacones Lejanos, 1992)
Não é o primeiro filme de sua carreira que sugere uma volta, no caso, a da mãe de Victoria Abril. Mas certamente é o filme que dá um novo sentido à sua carreira e, apesar de mal-sucedido em suas intenções melodramáticas, iria desembocar em obras maduras e mais completas como A Flor do Meu Segredo e Tudo Sobre Minha Mãe.
Kika (Kika, 1993)
Apesar de não ser necessariamente inferior a De Salto Alto, é um retrocesso na carreira do diretor, por não desenvolver seu lado melodramático, muito influenciado por Douglas Sirk e que reapareceria com força nos filmes posteriores, e por voltar a um tipo de escracho no qual Almodovar já não parecia tão habilidoso. Andrea Caracortada é a óbvia crítica à mídia televisiva. Mas o humor do filme simplesmente não funciona.
A Flor do Meu Segredo (La Flor de mi Secreto, 1995)
Este é o filme mais centrado em diálogos de sua carreira até então. A escritora que tenta se recuperar de uma crise matrimonial passa da fragilidade encantadora para a segurança. O cinema de Almodovar definitivamente entra na releitura do melodrama, e trabalha muito bem com clichês estéticos, como na cena em que um focar e desfocar é muito bem resolvido durante um grande diálogo.
Carne Trêmula (Carne Trémula, 1997)
A procura pelo ângulo mais inusitado, ou pelo efeito ótico causado por algum objeto entre a lente e o ator é, em Almodóvar, muito mais do que uma emulação de Max Ophuls ou de Fassbinder. É, na verdade, a percepção da mente humana por um outro viés que não o oficial, da sociedade. Também há o jogo entre suas imagens e as imagens de outrem. Assim, um tiro que ricocheteia na vida real atinge a personagem do filme visto na TV. Qual filme? Ensaio de um Crime, de Luis Buñuel, uma das maiores influências do diretor.
Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre, 1999)
É o primeiro filme de Almodóvar a tratar diretamente da AIDS, sem entrelinhas ou comedimento. É também o filme no qual sua preocupação formal mais transparece, com a câmera sendo notada em vários momentos, seja em angulações bizarras, seja em movimentos inesperados. Tudo Sobre Minha Mãe é uma ode à maternidade, e um inventário sobre a condição feminina, ou melhor, sobre a busca da feminilidade.
Fale Com Ela (Hable Con Ella, 2002)
Este filme chega bem perto de resolver todas as questões religiosas e sexuais trabalhadas pelo diretor durante sua carreira. Um perfeito ensaio sobre o poder do amor e do sexo. A direção de Almodóvar consegue extrair de cada cena o máximo de sua capacidade dramatúrgica, além de ser de um brilhantismo que, mesmo sem evitar os excessos, comprova sua habilidade de encenador. Raramente os letreiros foram tão bem usados dentro das cenas.
Má Educação (La Mala Educación, 2004)
Um filme intrincado e difícil, pouco apreciado mesmo entre os fanáticos pelo diretor. Seria loucura negar o talento de suas imagens, mas parece-me que Almodóvar procurava um outro estilo, uma outra veia em sua filmografia. Foi uma experiência necessária, mesmo que não completamente bem-sucedida.
Volver (2006)
Um ótimo filme sussurrado, Volver é também o mais feminino de Almodóvar. Carmen Maura está ótima, e o tema do incesto recebe um tratamento tão belo que podemos nos perguntar como Almodóvar trata tudo com tanta naturalidade, como coisas da vida, do mundo, que estão aí e com as quais temos de lidar.
Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, 2009)
Filme de crise, de olhar para o próprio umbigo e só ver sujeira, de deslumbramento com a profissão, não importa. O fato é que há muito tempo não me sentia tão desinteressado no que se passava em uma obra de Almodóvar quanto ao ver Abraços Partidos. O filme parece girar em falso o tempo todo. E é interminável, parece ter mais de três horas. Por vezes é um suplício acompanhá-lo. Em Má Educação, outro filme de crise, vários momentos me chamaram a atenção. Neste, uns dois ou três planos, apenas.
Sérgio Alpendre
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