Woody Allen
Tiros na Broadway (Bullets Over Broadway, 1994)
Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997)
Poucas e Boas (Sweet and Lowdown, 1999)
Revisões são reveladoras. No final da década de 1990, fiquei muito entusiasmado com Desconstruindo Harry, que me pareceu um dos melhores filmes de Woody Allen. Por outro lado, me decepcionei bastante com Poucas e Boas, que pareceu frouxo, e incomodou por retratar um personagem bem desagradável. Revendo os dois filmes nos últimos meses, Desconstruindo Harry se revelou menor dentro da carreira do diretor, ainda que com momentos ótimos, e Poucas e Boas tornou-se, a meu ver, um belíssimo retrato de um músico fictício de jazz. Tiros na Broadway, diferentemente dos dois que foram afetados de alguma forma pelo passar dos anos, permanece igual: a mesma obra-prima que foi quando estreou no Brasil em 1995. É, aliás, seu melhor filme nos anos 1990, sem concorrência.
Na primeira metade daquela década, Allen realizou dois fracassos em seguida, Simplesmente Alice e Neblina e Sombras. Parecia que sua carreira havia degringolado. Surge, então, Maridos e Esposas, recolocando-o nos trilhos do bom cinema e permitindo um fio de esperança de que sua carreira voltasse a brilhar. O que de fato aconteceu, primeiro com Um Misterioso Assassinato em Manhattan, depois com o magnífico Tiros na Brodway, num crescendo de qualidade que o reestabelecia como um dos grandes diretores americanos contemporâneos.
Eis que após Tiros na Broadway, Allen começou a alternar longas inspirados (Todos Dizem Eu Te Amo, Poucas e Boas) com obras mais corriqueiras (Poderosa Afrodite, Desconstruindo Harry, Celebridades). Dessas três últimas, a melhor ainda é Desconstruindo Harry, apesar de seu início desequilibrado e (de forma inédita) grosseiro. É o melhor entre os menores sobretudo por algumas sequências bem sacadas (dentre as quais a do inferno comandado por um impagável Billy Cristal – o diabo em pessoa, que liga o ar condicionado no máximo para acabar com a camada de ozônio). O filme é impregnado de uma estética propositalmente suja, e é curiosamente um dos raros (senão o único) filmes de Allen que tem cenas de nudez (na sequência do inferno). Desconstruindo Harry é o corpo estranho neste grupo de filmes lançados agora em DVD. Seus cortes interrompem fluxos, sua câmera é nervosa (embora não tanto quanto em Maridos e Esposas), seu ritmo é ainda mais acelerado que o habitual em Allen.
Tiros na Broadway e Poucas e Boas são mais parecidos. Além de serem filmes de época (anos 20 no primeiro caso, anos 30 no segundo), demonstram a habilidade de Allen como encenador. Há uma preferência pelos planos longos, com a câmera perseguindo os atores com elegância, e um uso brilhante e rosselliniano do zoom. Se estes dois filmes revelam atrizes em performances fantásticas (Diane Wiest em Tiros na Broadway, Samantha Morton em Poucas e Boas), Desconstruindo Harry não fez o mesmo para Judy Davis, atriz acostumada a brilhar, que é engolfada pela estética escolhida por Allen.
Poucas e Boas é um falso documentário, como Zelig, embora menos radical. A vida de um guitarrista fictício de jazz, vivido por Sean Penn, é mostrada como num desses documentários de TV, mas os acontecimentos surgem de maneira ficcional, como sketches custurados pelo formato memorialista e pontuado com entrevistas. A doce Samantha Morton quase rouba o filme como a adorável mudinha que se apaixona pelo arrogante e alcoólatra guitarrista. Só não o faz porque Sean Penn está realmente sublime.
Mas o tesouro do pacote é mesmo Tiros na Broadway. Neste filme hilariante, as cenas de puro humor se harmonizam perfeitamente com o enredo, o que nem sempre acontece em sua carreira. Normalmente as gags surgem como respiros ou ruídos, e em algumas vezes até atrapalham o andamento da narrativa. Outro achado é o elenco perfeito, sobretudo Chazz Palminteri como o gangster transformado em dramaturgo pelas circunstâncias, Jim Broadbent como um guloso ator que não consegue seguir sua dieta, e Diane Wiest, inesquecível com sua famosa fala: “don’t speak”. Tiros na Broadway é uma das conjunções mais felizes entre a reflexão sobre o mundo artístico e a comédia maluca, e deve tanto ao classicismo de George Cukor quanto à encenação estilosa de Sacha Guitry.
Sérgio Alpendre
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