Ano VII

Domino

terça-feira jun 25, 2019

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Domino (Domino, 2019), de Brian De Palma

Uma cartela estabelece que Domino se passa no futuro, em 2020, um dia após a ida dos astronautas para o planeta vermelho em Missão Marte. Quem conhece o humor depalmiano, sempre muito sacana, já sabe que irá se esbaldar. Aliás, baldes e baldes de tomates aparecem durante diversos momentos do filme. Dada a proeminência dos frutos do tomateiro na primeira cena, o espectador disposto a jogar o jogo antecipa o suculento set up: estra obra é 100% CERTIFIED FRESH.

O universo de Domino é o duplo doidão, o Cain, de Missão Marte: um mundo bizarro onde a tecnologia não nos direcionou a vislumbrar imagens que nos pegam pelas mãos e nos levam a uma jornada pela vastidão do universo, mas a permanecer confinados em celas rodeadas por janelinhas (de YouTube?) minúsculas. Domino é um filme pequeno, mundano, B-zão mesmo. E esse mundo é muito louco: Tudo vigia, desde o olho de deus (que, em De Palma, demonstra muita afeição pelo zoom in) até o de Jesus (a cômica quantidade exagerada de crucifixos presos à parede, são três ou quatro, atrás de… Christian, vistos durante a visita à casa de Lars) e tudo é uma construção complexa. Jihadistas montam complicadíssimos dispositivos para obter imagens horripilantes de um close e de um POV. Chefão da CIA inventa todo um aparato imagético só para fazer um personagem, Ezra, observar o filho ver fotografias chocantes. CIA e ISIS, uma sopa de letrinhas, quebram a cabeça apenas para realizar um simples plano e contraplano. Realmente, um mundo insano, de um humor desconfortável. Só em um filme de Brian De Palma, de fato.  Ou será que…?

Tudo é cinema (B)

Um vídeo gravado num hotel em Paris, exibindo as ações de Neymar, famoso jogador de futebol e Najila, modelo brasileira.  Objetivo: fazer da câmera testemunha ocular “infalível” de uma cena que pode ou não ter sido orquestrada por uma das partes. Trilha sonora diegética: Every breath you take (“i´ll be watching you”). Um frame capturado do vídeo “vaza” na imprensa e nele vemos a moça de pé diante da cama e os pés de Neymar próximos do rosto da jovem. A imagem parece “dizer” que o jogador agride a modelo. Em seguida, quando o vídeo se torna público, entende-se que o rapaz tentava se levantar e afastar os tapas que recebia de Najila. O que esse duvidoso espetáculo nos revela, além da insólita semelhança com o final de O Pássaro das Plumas de Cristal, em que a testemunha ocular descobre ter “lido” de maneira equivocada uma cena, trocando as bolas entre os papéis de atacante e vítima? (refiro-me exclusivamente ao que se passa nesse vídeo, não ao caso em si).

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O que os mais de 1 milhão de acessos no vídeo de YouTube intitulado A Facada No Mito nos conta? O produto reorganiza os eventos, a partir dos vários pontos de vista obtidos por câmeras de celulares, que se desenrolaram durante a facada recebida pelo então candidato Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, no ano passado. É o nosso Zapruder Film? Nosso Renner film? Nosso Riachuelo film? (Abraham Zapruder, vale lembrar, apenas pela deliciosa coincidência, era proprietário de uma pequena fábrica de confecção de roupas). A facada é tão verdadeira quanto a luta de boxe em Olhos de Serpente, a versão depalmiana, ao estilo estátua da liberdade de estacionamento das lojas Havan, do atentado a JFK? Grandes conspirações governamentais, no universo De Palma, são vigiadas por múltiplas câmeras e acontecem em um hotel cassino em Atlantic City (o simulacro do simulacro!) durante uma luta de boxe entre dois atletas claramente fora do peso ideal. São investigadas por policial de camisa florida semi-aberta no peito e dentinho de ouro (não vemos o mimo dourado de Cage, mas quem é que duvida de sua existência?). Vinte e um anos depois do lançamento de Olhos de Serpente, temos nossa própria conspiração com o presidente chinelão (Havan-ia-nas) tomando uma estocada diante da Renner. O que tudo isso nos ensina?

1. Vivemos em um filme de De Palma.

2. De Palma previu o futuro.

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bolsonaro

Tudo é publicidade, a guerra, a política, a própria imagem não passa de hospedeiro para algum tipo de propaganda. Em Passion, o cineasta demarca a inauguração desse novo universo com o logotipo da Apple: o filme abre com um plano detalhe da maçã a brilhar na parte de trás da tela de um Macbook. O pecado original é não ter uma ideia brilhante: e lá vai a personagem inventar mirabolante dispositivo para filmar um comercial para a Samsung. A câmera subjetiva da bunda, a ass-cam é um achado maravilhoso, ridículo. É a auto-sátira à filmografia que tem como uma das obsessões encontrar novas maneiras de se questionar a percepção que se faz do mundo por meio da imagem (e do som, em menor escala), em desnudar as relações entre o sujeito e a imagem, pressuposto do simulacro, para citar o Ismail Xavier de O Olhar e a Cena. O De Palma recente está muito longe do maneirismo florentino de Obsession, contente com o virtuosismo à Pontormo, em que havia uma ideia de harmonia para ser rompida por meio de invenções formais. O cineasta sempre esteve atento às mudanças políticas e tecnológicas (talvez não haja separação) e no resultado que se poderia obter com tal conjuntura. Quando o próprio mundo se torna uma câmara octogonal de espelhos, que dispositivo construir para observá-lo, se ele já é o próprio dispositivo? (Da Vinci idealizou tal equipamento, com a intenção de posicionar objetos no centro e assim ter acesso múltiplo à sua superfície). Não existe “harmonia” no real a ser rompida pela arte. As outras instâncias já o fizeram. Resta, então, o exagero, a sátira, a doideira, a maquinaria onírica dos surrealistas, a autorreflexão. Jihadistas começarem a registrar seus atentados terroristas com o auxílio de travellings de drones é uma ideia ridícula, grotesca, quase engraçada. E absolutamente verossímil.

O olhar e a cena

Christian é um protagonista falho e trapalhão. Bem na tradição de Carter de Síndrome de Cain, Jake de Dublê de Corpo ou do glorioso Jon Rubin das sátiras em parceria com De Niro em Greetings e Hi, Mom! O homem cai em cima de tomates. Esquece o revólver debaixo de um sutiã. Pede a arma emprestada ao parceiro Lars, o que indiretamente provoca a morte amigo: mais tonto que o Scottie de Vertigo, com sua acrofobia de meio metro, Christian é o veículo subversivo de De Palma, em um roteiro que, sob os olhos da maioria dos diretores, seria sobre a vitória na guerra do mundo ocidental (cristão) contra porção extrema do oriente (jihadistas).

Como ocorre desde Femme Fatale e se intensifica muito em Passion, não é só que algum evento imagético, uma cena, absorvida pelo olhar de um protagonista/testemunha precise ser reorganizada e ter suas imagens descascadas para se chegar à camada primária, onde se encontraria a verdade (por exemplo: Jake assiste ao espetáculo de Holly Body através do binóculo e descobre a verdade depois de investigar fitas pornô). Desde pelo menos 2002, o filme como um todo, a própria narração, deve ser colocada sob suspeição, não do protagonista, mas principalmente do espectador: o narrador, pela ótica do protagonista, é quem nos engana (o que Isabelle está vendo, em Passion, é o espetáculo de ballet ou o interior da casa de Christine, sua algoz? O split screen da narração cria a ilusão de continuidade espaço temporal por meio de um falso plano-contraplano apresentado simultaneamente na tela). Ainda que Christian corra de lá para cá e, junto de Alex, pareça bem sucedido em sua jornada de vingança, o filme mesmo implode essa percepção. O final bombástico, um dos mais impressionantes da carreira de De Palma, rivalizando apenas com o de A Fúria, em que o diretor explode John Cassavetes, parece nos indicar o seguinte: todos esses movimentos da trama, os motivos baratos, as convenções “de linguagem”, toda a violência, não passam de propaganda.

O cinema mente e, há muito, foi absorvido por outras formas de expressão audiovisual, incluindo aí os atos terroristas dos jihadistas. É preciso estar sempre atento, não como um paranoico, que de tanto vigiar acaba guardando a própria sombra. Como um satírico, capaz de se distanciar (o olho de deus depalmiano também emprega o zoom out, como na primeira conversa ao telefone entre Christian e Alex) e encontrar o ridículo em qualquer situação. A sátira quase sempre vem acompanhada da provocação, e o quão jovem e sacana é o espírito de um senhor de quase 80 anos que elabora a desconfortável cena do massacre no tapete vermelho do festival de cinema? O velho De Palma de agora é o mesmo fanfarrão que faz um documentário registrando os comentários bastante pertinentes de Rudolf Arnheim durante uma mostra de op art no MoMa e encontra maneiras para tirar sarro da elite econômica nova-iorquina. Aquela, que vai à exposição e muito ligeira se distrai das obras em troca do jogo social (ooooooi, querida, você por aqui?), em The Responsive Eye, de 1965. Ou, o da famigerada Be Black, Baby, filme dentro do filme em Hi, Mom que registra faceiros intelectuais brancos sofrendo brutal violência física e psicológica em uma peça de teatro composta só por atores negros e dizendo-se maravilhados por terem podido viver a experiência.

Se o cinema foi absorvido por outras formas de expressão, se o cinema está fixado no mundo nas mais diversas manifestações – é preciso voltar num pulo ao caso Neymar/Najila e dizer que a escolha, consciente ou não, do hit do The Police é um gesto de direção fascinante; é de se perguntar se no restante do vídeo, que ainda não se tornou público, emanará pelo quarto a melodia de Relax (Don´t do it) – a cena no tapete vermelho de Domino merece dupla atenção.

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O que vemos ali se desenrolar é Salah Al Din, líder jihadista, atuando como um diretor de cinema. Observando a ação pelo monitor, o metteur em scène organiza os movimentos da terrorista Fatima. Tendo preparado um set up de duas câmeras, possivelmente para agilizar a rodagem, o cineasta encoraja a atriz, que titubeia e se sente insegura em relação ao seu papel de mártir. Ao final do massacre cinematográfico, depois de a jovem se explodir, Al Din ordena que o material bruto seja montado. A cena pronta, repetida ao final do filme, é cinema da decupagem clássica, que privilegia o ponto de vista ideal, proporcionando a identificação entre o espectador e o olhar da câmera. O montador de Al Din incorpora imagens feitas por cinegrafistas presentes no massacre; além do close de Fatima e do seu POV, temos planos gerais que possibilitam a vista ideal para o momento em que a atriz explode a si. Com narração em off, gravada pelo próprio diretor, e uma heroína destemida (obviamente os momentos de hesitação e medo foram removidos na montagem), temos uma “perfeita” sequência de ação, baseada na vingança. Exatamente como a que vimos antes, no filme propriamente dito, o que é dirigido por De Palma, no clímax de Domino, quando Alex, determinada, atira em Ezra, completando assim a jornada de vingança.

O que antecede a vendeta de Alex é mais uma daquelas sequências depalmianas antológicas. O maneirista Al Din com seu trackin shot de drone orquestra virtuosa explosão na Plaza de Toros de Las Ventas. Assim como Carlito em O Pagamento Final, que lança mão de elaborada estratégia cênica ao redor da mesa de sinuca, apenas para posicionar o capanga de óculos espelhado na posição privilegiada, que permita ao personagem de Al Pacino ver o que se passa atrás de si sem precisar virar a cabeça, Al Din precisa de um complicado aparato para dar a ver. O tracking shot perfeitamente coreografado é atrapalhado por um engraçado chute no saco e um ferimento no pescoço com a hélice do drone que remete à conclusão da perseguição com o helicóptero ao trem em Missão: Impossível.  A missão de De Palma, no fim das contas, e não há nada de original na minha constatação, é a mesma de Al Din, Carlito e tantos outros: é dar a ver, é colocar em exposição. Se o aparato visual, seja ele qual for, tende sempre à ilusão e à falsidade, quanto mais elaborada e amalucada for a maquinaria construída para mediar o olhar do sujeito e a “natureza”, melhor. Agora que o mundo se parece muito com um filme de Brian De Palma, podemos aprender uns truques com o velho rebelde e aplicá-las no “real”. Um filme depalmiano e o próprio universo, tocando lado a lado, em split screen. Que Domino não seja celebrado e discutido com entusiasmo é só mais uma contradição desse mundo meio demente.

Wellington Sari

 

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