Ano VII

Em chamas

quarta-feira mar 27, 2019

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Em chamas (Beoning, 2018), de Lee Chang-dong

Em determinado momento do filme, com sua duração já avançada, temos a impressão de que descobrimos a chave central de seu mistério. Lee procura desesperadamente sua amiga desaparecida Shin. Em um diálogo banal entre Lee e o nebuloso Bem (então amante da moça), o espectador fica com a sensação de que Ben representa um perigo maior e que a moça pode não estar mais viva. Momentos depois em um novo diálogo breve entre Lee e Ben o filme nos entrega aquilo que acabamos de conjecturar. Ben, se utilizando da metáfora que ele mesmo havia criado anteriormente diz que a garota desapareceu “como fumaça”. Fica claro, então: a garota está morta e foi assassinada pelo amante. Esse movimento de revelação realizado pelo filme, nada mais é do que a confirmação de que aquilo que está em jogo vai muito além do mero segredo e descoberta de “quem matou”.

Ben, jovem milionário, bon vivant, após encontrar acidentalmente Shin no aeroporto voltando à Coréia do Sul, entra na vida dela e do protagonista Lee (seu amigo de infância que a havia reencontrado e parecia estar se apaixonando por ela), invadindo-a aos poucos, impondo-se sobre eles. Ele parece não se envolver o bastante com ninguém ao seu redor, não parece entregue a nada, como se estivesse sempre blasé, enfadado. Seus amigos (também todos ricos) e seus lazeres parecem completamente incompatíveis com o extrato social e universo ao qual pertencem Lee e Shin – dois jovens provenientes de um bairro periférico, de propriedades de pequenos agricultores, muito distantes do ambiente cosmopolita e urbano do qual pertence Ben. Essa relação improvável e até absurda grita aos olhos de Lee, a quem acompanhamos desde o início, mas parece que somente ele nota algo de estranho no jovem milionário – até mesmo quando perguntado sobre sua ocupação ele é vago dizendo-se apenas um “jogador”.

Um dos momentos chaves se dá em um diálogo regado à maconha entre Lee e Ben, em uma visita que o casal faz à casa do protagonista. Ben discorre sobre uma de suas atividades preferidas, atividade essa que ele necessita realizar a cada dois meses (como uma espécie de vício incontido): o ato de atear fogo em celeiros abandonados. É esse diálogo que irá ressoar na tensão permanente em Lee, que passa a vigiar os celeiros vizinhos à sua casa, e que irá servir de metáfora para a real atividade do enigmático personagem. Os celeiros são as jovens que ele atrai para perto, jovens “abandonadas”, que não possuem contatos próximos ou família, e que morrem e desaparecem em suas mãos – Shin é a vítima perfeita.

A excepcional adaptação do conto “Queimar celeiros” (de Haruki Murakami) por Lee Chang-Dong não se apressa para mostrar ao espectador a que veio. Ao contrário, como um exercício de paciência e meticulosidade, atendo-se aos pequenos detalhes e ações, Em Chamas aposta na atmosfera e, sobretudo, em seu suspense para tomar forma. Ao final, a tensão é quase insuportável. Um dos melhores exemplos desse refinamento com o qual o cineasta articula suas cenas é um plano estático e aparentemente banal de um jogo de facas na casa do protagonista ainda no início do filme. Na última cena (quando Lee se vinga do assassino) compreendemos que tal ato se dá através de uma daquelas facas – após matar Ben, ironicamente, Lee acaba queimando-o junto de seu carro, materializando o ato descrito metaforicamente pelo assassino dias antes.

Para além de sabermos quem é o assassino, o que aconteceu com a garota ou ainda como Ben mata e o que faz como corpo de suas vítimas, Lee Chang-Dong nos arremessa em um jogo recôndito em que a sensação de vazio absoluto e impotência dão o tom e são ainda mais intensos do que a morte frente à câmera ao final: importa mais aquilo que o cineasta não nos mostra, aquilo que fica subentendido. Assim como em Corrente do mal (It Follows, 2014, de David Robert Mitchell) e a diversa linhagem de filmes de horror e suspense através da qual o norte-americano se filia como um dos grandes filmes do gênero dos últimos anos, Em chamas também se utiliza da metáfora de uma interpretação crítica de um grupo de pessoas em um contexto social, econômico e geográfico: simboliza sobretudo a desesperança e a falta de horizonte de uma juventude perdida. No filme de Mitchell, uma representação desoladora de uma Detroit fruto de um país em crise, empobrecido; no sul coreano, o retrato brutal de um mundo implacável, vazio e perigoso, que oferece para seus habitantes nada mais do que o espelho de seu presente.

Rafael Dornellas

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