Suspíria
Suspíria – A Dança do Medo (Suspiria, 2019), de Luca Guadagnino
Chama muito atenção a vontade louca de Luca Guadagnino em inscrever a sua versão de Suspíria no real. É como se o celuloide fosse mergulhado em um balde onde jornais tivessem sido deixados de molho e o líquido resultante ficasse impregnado no filme (que eu possa romantizar um pouco e me expressar filtrado por um imaginário pré-fotoquímico e semi-antiquado, assim como faz o próprio filme em relação à Berlim dos anos 70). O resultado da operação é justamente a de imagens construídas com tinta de periódico. A falta de tons vibrantes que nos faz pensar que se a cidade fosse tão cinza quanto o que se vê na tela, qualquer jovem com sangue nas veias teria mesmo vontade de se juntar à Fração do Exército Vermelho. Mesmo que fosse apenas para envolver-se em cor. Vale lembrar que o Suspiria de Dario Argento, para expor logo o quadro comparativo, que será necessário, mas não fundamental para a argumentação deste texto, é um filme obtido a partir da solução LSDisney. É que ácido derrete Fantasia, resultando em vermelho pulsante para banhar a película do longa-metragem (a maior preocupação técnica de Argento durante a feitura de sua obra-prima era relacionada à cor e, de fato, uma das instruções dadas a Luciano Tovoli era de que a fotografia obtivesse um vermelho Disney).
Ao tom cinzento de pigmento que se solta de um tabloide soma-se um desejo incandescente de se forjar a palavra no campo da imagem. Não só o filme é separado em capítulos, anunciados logo nos primeiros segundos em pedante cartela (“um filme em seis capítulos e um epílogo numa Berlim dividida”), como há um constante retorno à grafia, seja por analogia ou pelo uso sistemático de tropos da palavra escrita como forma de reiteração do esqueleto conceitual do filme. Temos lá o psicanalista anotando expressões chave na caderneta (“simulacro”), pouco depois de um plano detalhe de certo livro na mesa de canto (“C. Jung”); temos, ainda, Blanc, uma das professoras, voltada para a câmera, lendo a Der Spiegel, de capa cor de chumbo e tempestade, estampando a palavra “Terror!”; para completar a lista de verbetes, vemos “Suspiria” aparecendo como o nome de uma estação, durante a chegada de Susie Bannion a Berlim. Interessante como essas palavras entregam também as chaves para as fraquezas do filme. Guadagnino faz, mesmo, no máximo, um simulacro apequenado, tímido e encolhido da fantasia de luz, encanto e medo do Suspiria de 1977 (em Argento temos um arco-íris de esplendor, o que seu conterrâneo transfigura em algo equivalente à mistura dos filtros light leak e light streak, do Instagram); ainda no universo jungiano, vemos uma narrativa montada em torno do arquétipo da mãe se dissipar muitas frentes, enfraquecendo a ideia central até pela própria repetição do tema. A ambiguidade, que parece ser a força motivacional do projeto de Guadagnino sofre do mesmo problema: o terror estampado na capa revista semanal alemã é “o espelho” (Der Spiegel) que faz do filme reflexo de conturbados acontecimentos políticos da Alemanha em 1977, como o sequestro do voo 181 da Lufthansa, orquestrada com auxílio da Fração do Exército Vermelho. E também, como obra do gênero terror, um remake, o que implica a existência de um outro, indissociável de sua imagem refletida. Essa construção em camadas, refratária, como a sala dos múltiplos espelhos em que dançam as meninas, acaba por se mostrar frágil, ao conciliar vontades muito díspares. O desejo em comentar/documentar um momento histórico, construindo um muro entre o real e o mundo da fantasia acaba se dando de maneira pobre, literal. É possível confiar na imaginação de um filme que banalmente escreve o seu título – misterioso, lúdico, um suspiro de segredos inomináveis, que apela à capacidade de abstração – na placa de uma estação qualquer de trem?
Não é que Guadagnino não possa violar a obra de 1977, que não possa matar a mãe ou que sejam inconciliáveis os terrores do real e os do fantástico. O problema é a falta de criatividade, é a iconoclastia de cinzeiro de bar. Transformar Escher em ashes e sequer pensar em soprá-las ao vento? Quando Guadagnino troca a obsessão pelo literal e pela materialização da palavra impregnada no plano, partindo para a analogia (note-se que o mesmo assim o diretor não consegue afastar-se por completo da, cabe aqui o trocadilho, “língua materna”), Suspíria traça interessante caminho. Blanc explica a Susie que dança não é movimento, é uma escrita, é poesia, o que poderia ser apenas mais uma das associações ao verbal, não fosse pelo fato de o cineasta ter ilustrado a ideia (com algum grau de contradição ao que é o núcleo conceitual do longa), momentos antes, com uma pavorosa dança macabra. É, sem dúvida, um momento inesquecível do filme: enfeitiçada por Blanc, Susie entrega-se a um número bastante agressivo, espasmódico, que afeta diretamente o corpo de outra aluna, que está sendo punida em outra sala. A coreografia (escrita da dança) é “copiada” involuntariamente pela vítima do outro espaço, em uma hipérbole, que vai aos poucos abandonando a grafia e o figurativo para culminar em massa abstrata. O corpo da vítima dobra-se em posições impossíveis, até atingir a desconfiguração plena e… indescritível. A montagem paralela em que se desenrola a cena acentua a noção de movimento, que não redige nada, que não forma, mas deforma.
Há outros lampejos que passam pela de-formalidade, como no clímax depalmiano, quando Susie entra em modo Carrie. Ou nas ilustrações dos delírios da moça, curtos em duração, intensos em plasticidade. São ligeiros esses pesadelinhos, pois Guadagnino deve acreditar que um abstract não pode ser abstrato, tem de ser claro, literal e amigável ao processo de indexação. Enfeitiçado pela cultura do logos, o cineasta prefere confinar-se entre os muros do real, sustentado pelo discurso bem construído, paradoxalmente cheio de aberturas para análises temáticas vindas “de fora” mas completamente fechado ao mundo. Fechado, portanto, à arte. O filme, pescador faminto ou impaciente, lança uma dúzia de anzóis ao mar: viés histórico, viés da “videodança”, do feminismo, da psicanálise, que diabos, alguém estude minha obra aqui!
Falta arte no projetão artisticão de Guadagnino. O que é arte? Melhor resposta fica para amanhã, mas acredito que uma canção possa soar como uma laranja, tal qual instruiu Lennon a George Martin e que se você não é capaz de imaginar como seria ver o mundo através dos olhos de uma aranha, não deveria se meter com Dario Argento.
Wellington Sari
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