A travessia do fogo
Primeira Etapa da Filmografia de Alain Tanner ou A Travessia do Fogo
Por Guilherme Savioli
Alain Tanner nasceu em 1929 (Genebra, Suíça), começou a rodar seus primeiros longas-metragens no final dos anos 1960 – num momento, portanto, em que o cinema moderno já passava por uma certa inflexão de suas formas, já quase uma década após sua eclosão – e num país sem tradição cinematográfica alguma. Ele realiza sua obra mais famosa em meados dos anos 1970, atravessa os anos 1980 e 1990 sem muito alarde no circuito de festivais e, por fim, resolve encerrar sua carreira em 2004, igualmente de forma discreta. Alain Tanner nunca foi um cineasta que esteve na moda e seu filme mais conhecido – Jonas queterá 25 anos no ano 2000 (1976) – não raramente é interpretado de forma extremamente equivocada, como uma irônica e derrotista interpretação do legado de Maio de 68. No entanto, olhar em retrospecto sua filmografia hoje, nos impõe não só uma mera revisão do percurso de um cineasta, mas também uma impressionante revelação de como se articulou com uma radicalidade ímpar, nessa trajetória, uma série de procedimentos formais e temáticos desdobrados a partir de certos impasses colocados pelo cinema moderno.
Ainda jovem, Tanner estudou economia da Universidade de Genebra. Lá, fundou um importante cineclube, em conjunto com Claude Goretta (outro cineasta fundamental do novo cinema suíço) e Freddy Buache (fundador e por anos diretor da Cinemateca Suíça). Sem perspectivas de carreira em sua formação inicial, passa um tempo trabalhando em um navio cargueiro (dado biográfico presente na elaboração de um de seus filmes mais emblemáticos, Dans la ville blanche) e ao retornar à Suíça, já interessado em se dedicar totalmente ao cinema, encontra um cenário desolador, igualmente sem nenhum prognóstico. Assim, em busca de oportunidades, parte para a Inglaterra, onde consegue um emprego como tradutor de legendas e revisor de cópias no British Film Institute/BFI.
Em meados dos anos 1950, irrompe no cenário britânico o que ficou conhecido como Free Cinema, um movimento de jovens ansiosos por filmarem de maneira livre, com estilo próprio (ficaram conhecidos como angry young mens) e se distanciando de uma certa tradição do documentário britânico, encampada no passado por figuras como John Grierson, já que eles apreciavam uma certa vocação realista do cinema, mas em prol de uma captura mais crua da realidade da classe trabalhadora londrina, se relacionando com o que nas artes cênicas do período ficou conhecido como kitchen sink realism. De articulação um tanto quanto vaga, pelo menos em seus postulados iniciais, o mérito principal do movimento foi revelar nomes importantes como Lindsay Anderson, Tony Richardson e Karel Reisz, os quais tiveram seus primeiros curtas exibidos dentro dos ciclos organizados pelos integrantes do movimento, a fim de exibirem, dentre outros filmes, as suas próprias produções. No meio desses jovens realizadores, o estrangeiro Alain Tanner consegue uma verba do fundo para o cinema experimental do BFI e, em conjunto com Claude Goretta (que fora à Inglaterra a convite do amigo), realiza seu primeiro curta, Nice Time (1957), um registro de uma noite no bairro de Piccadilly Circus, região de Londres conhecida por sua intensa vida noturna.
Além da primeira experiência atrás das câmeras, algo notável nessa fase é um artigo que Tanner escreve para os Cahiers du Cinéma em 1958, intitulado “O impossível cinema inglês”. Isso porque apesar de fazer um diagnóstico acerca da conjuntura da arte e do mercado cinematográfico britânico, as preocupações que Tanner expõe parecem reverberar os questionamentos que irá expor acerca de seu próprio país, a Suíça, cenário privilegiado de seus primeiros longas. No artigo em questão, em linhas gerais, Tanner aponta uma certa característica burguesa, revestida de um falso bom gosto aristocrático, em boa parte da produção britânica naquele momento. Ecos dessa preocupação para com uma formação nacional virão num dos primeiros médias filmados por Tanner, já em 1964: Ramuz,Passage d’un Poète, relê a obra de um dos principais escritores suíços – Charles Ferdinand Ramuz – contrapondo trechos de sua obra na qual se discorre sobre uma truncada formação do povo suíço – debitaria de uma tradição francófona, porém separada da França – sobrepostos a imagens de camponeses trabalhando as diversas regiões e topografias do país.
Antes de rodar seu primeiro longa-metragem em 1969, após retornar ao seu país natal, Alain Tanner trabalhou um tempo em alguns projetos avulsos para a televisão da Suíça Romanda. Para além do filme sobre Ramuz, outros dois são cruciais para a compreensão das preocupações (formais e temáticas) que irão tomar conta da principal fase da obra do autor. O primeiro deles é Une Ville à Chandigarh (1966), na qual Tanner foi filmar a cidade planejada que um outro suíço, Le Corbusier, projetou como nova capital do estado do Punjab, na Índia. O que se vê aqui, para além de um fascínio com a cultura indiana, é a preocupação de Tanner em captar uma certa tensão espacial, sem necessariamente resolvê-la: tanto na narração, quanto na composição dos planos, salienta-se a engenhosidade do planejamento de Le Corbusier, contrapondo-o com uma não-organicidade em relação ao meio social no qual fora implantado (em alguns momentos, o filme chega a lembrar Brasília, contradições de uma cidade (1968), de Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo). Outro projeto crucial para entendermos o arco descrito pela obra de Tanner é Docteur B., Medécin de Campagne. Nesse média-metragem, oriundo de uma vocação do cinema direto apreendida por Tanner em sua estadia na Inglaterra, acompanhamos a trajetória de um médico que trabalha incessantemente por alguns vilarejos suíços. De acordo com o próprio diretor, após a exibição do filme na televisão suíça, o próprio personagem se deu conta de seu vazio existencial, remodelando sua própria vida. O personagem inspirou outro protagonista, aquele do primeiro longa-metragem de Tanner. Para além desse caráter anedótico, é necessário apontar como se lança mão aqui de uma técnica (o 16mm usado como 35mm) e de uma mise en scène (a vocação documentária do cinema direto) que o autor buscará domar e evoluir, articulando intimamente com suas preocupações temáticas, descrevendo um arco que caracteriza aquela peculiar radicalidade nos desdobramentos dos impasses do cinema moderno da qual falávamos.
Em 1967, Michel Soutter roda La Lune avec les Dents, primeiro rebento do cinema moderno na Suíça, com um dinheiro levantado através do apoio de um mecenas. No mesmo ano, Jean-Louis Roy lança L’Iconnu du Shandigor, uma tentativa de ficção científica (vagamente inspirado no Alphaville de Godard), tentando viabilizar uma espécie de cinema com vocação comercial, distante, portanto, da tentativa de Soutter. No ano seguinte, em meio a esse cenário de terra arrasada no cinema suíço, articula-se o que ficou conhecido como o “Grupo dos 5”, uma associação entre Michel Soutter, Jean-Louis Roy, Jean-Jacques Lagrange (posteriormente substituído por Yves Yersin), Claude Goretta e Alain Tanner. O que se viabilizou foi uma associação com televisão da Suíça Romanda a fim de se co-produzirem longas-metragens cinematográficos (e não mais reportagens, como vinha fazendo Tanner já há alguns anos, então) que, após estrearem nas salas de cinema, seriam exibidos na TV. Dentre as importantes obras realizadas nesse contexto (com destaque para os filmes subsequentes de Soutter e o primeiro longa de Goretta), Tanner conseguiu, finalmente, realizar seus três primeiros longas.
O Último a Rir (Charles Mort ou Vif, 1969) é a primeira parceria de Tanner com o diretor de fotografia Renato Berta, figura fundamental na evolução do método do diretor. Escrito e rodado sob a sombra de Maio de 68, o filme narra a história de um industrial suíço – do tradicional ramo de relógios – que abandona tudo e vai viver com um casal recém-conhecido, nas montanhas. Apesar de sua posição marginal na sociedade, o casal não possui um discurso politicamente articulado, nos moldes das tendências da época, como aquele ostentado, por exemplo, pela filha do industrial, uma estudante-militante ativa nas manifestações, que visita frequentemente o pai e resolve transmitir algumas lições, obrigando um dos personagens a decorar uma série de frases de efeito, slogans políticos e trechos de obras, dia após dia. O último a rir é um filme que se filia diretamente à vertente dos filmes que vão revolver os discursos propalados pelas manifestações da época, confrontando-os com os seus resultados principalmente no que diz respeito ao seu efeito na práxis cotidiana. O assunto do filme é justamente a série de slogans e frases que a filha do protagonista passa, como lição diária, para serem decorados por pessoas que ainda não estão em sintonias com os mesmos. É na circulação superficial desses pensamentos, nos seus deslocamentos e questionamentos de sentido quando propalados pelos personagens (que logo após proferirem algo do gênero, parecem sempre encarar o horizonte, literalmente perdidos no vazio), que reside não só o tema desse filme, mas também uma constante fundamental nessa primeira (e principal) fase da obra de Tanner.
Em A Salamandra (1970) Tanner mantém essa temática, adicionando um outro ponto que se mostrará constante em sua filmografia: a tomada de um fait divers como ponto de partida de uma deambulação pelo território suíço. Nesse seu segundo filme (provavelmente, sua segunda obra mais famosa, também), acompanhamos um jornalista e um escritor que tem que escrever um roteiro a partir de um estranho acontecimento real. Um tio acusa uma sobrinha de ter disparado contra ele, ferindo-o no ombro; a sobrinha rejeita a acusação e os tribunais arquivam o caso, uma vez que não há provas suficientes. Procedendo a partir de diferentes métodos (uma verve que busca de ater mais aos fatos e uma outra que busca uma recriação através de uma imaginação mais poética), ambos os autores acabam se envolvendo com a misteriosa figura da acusada. Como a salamandra, que é capaz de atravessar incólume o fogo (como é salientado pelo personagem do escritor), ambos os autores tentam atravessar o fogo-cruzado dos discursos, com a missão de reorganiza-los de uma forma coerente, inventando uma narrativa. O roteiro não sai e, assim como o protagonista do filme anterior, os próprios autores é quem são reescritos tanto por esses discursos que pretendem reorganizar, quanto pela travessia que empreendem, juntamente com a acusada, pelo desolador território vazio do interior da Suíça.
Seu filme seguinte, Le Retour d’Afrique (1973), marca um ponto de viragem crucial em sua técnica. Igualmente fotografado por Renato Berta (que a essa altura já havia trabalhado com Straub-Huillet), Tanner trouxe especialmente da Itália os maquinistas Claudio e Aldo Ricci (sendo que esse último já trabalhara com Sergio Leone em Por uns dólares a mais), a fim de preparem os elaborados travellings do filme. Na história acompanhamos um casal de jovens, já perto de seus trinta anos, que vive em Genebra e, repentinamente, resolvem abandonar tudo e partir para viver no Terceiro Mundo, mais especificamente na Argélia. Por um contratempo envolvendo o contato que eles tinham naquele país, a viagem é cancelada e ambos acabam por se enfurnar no apartamento, remoendo a ansiedade, a expectativa e a desilusão de um ideal repentinamente desarticulado. No mais garreliano[1] dos filmes de Tanner, o espaço externo é convocado a exercer uma pressão existencial quase insuportável naquele hui-clos e, para tanto, a encenação inspirada numa vocação de cinema direto dá lugar ao extremo controle exercido pelos travellings, que parecem esculpir e adentrar unidades de espaço-tempo cada vez mais deslocadas entre si, desorientando a consecução temporal do filme. A Suíça (e Genebra mais especificamente), espaço por excelência do alto capital financeiro despersonalizado, esmaga violentamente as ilusões do casal, por mais que eles queiram se apartar daquela realidade.
Amantes no Meio do Mundo (1974), realizado já fora do contexto do “Grupo dos 5”, é uma espécie de filme a parte na filmografia (no que condiz à temática), apesar de dar continuidade e intensificar sua evolução formal. Uma história de amor entre um proeminente e jovem candidato “apolítico” e uma imigrante italiana que trabalha como garçonete filmada como um experimento: até que ponto essa relação resiste às paisagens desoladoras, que já pontuavam sua filmografia desde pelo menos Docteur B., Medécin de Campagne, e que ganharam uma nova feição a partir de Le Retour d’Afrique? Para além dos impasses sociais e pessoais dados, o que parece minar o relacionamento são justamente as desérticas paisagens que Tanner filma entre uma cena e outra. Esses planos vão se tornando cada vez mais longos e intensos no decorrer do filme, e são justamente eles que vão minando a entrega emocional da personagem feminina.
Chegamos, enfim, a Jonas queterá 25 anos no ano 2000 (1976), obra mais famosa de Tanner. Sempre se falou muito da inspiração brechtiana em alguns autores do cinema moderno, muitas vezes apenas pelo fato de trabalharem, em alguma medida, com procedimentos de distanciamento na identificação entre espectador e protagonista. Com Tanner não foi diferente. No entanto, seu filme verdadeiramente brechtiano é Jonas. Não só pelo humor que confere à confecção da obra (algo inédito em sua filmografia), mas principalmente pelo princípio segundo o qual ele e John Berger (seu parceiro em diversos roteiros, com especial destaque para esse) constroem o painel de personagens. Retrabalhando o que restou dos discursos de Maio de 68, Tanner e Berger atingem o ápice do motivo deslanchado a partir de O Último a Rir: o impulso em organizar e conferir uma certa ordem a tudo aquilo que embalou os impulsos de mudança. O ponto nodal do filme é justamente questionar a forma como isso é escrito e transmitido e se tal escrita poderá ou não fazer sentido para as gerações vindouras. Na configuração desse painel, apesar da simpatia despertada por alguns traços individuais de personalidade, travamos uma ambígua relação não com personagens específicos, mas sim com o painel como um todo. Filme mais verbal de Tanner, totalmente atípico em sua filmografia, não carrega consigo uma visão cínica ou derrotista, mas sim uma visão cética que leva às últimas consequências o propósito contido desde o início na filmografia do autor (desdobrar e reorganizar os impasses desdobrados pelo cinema moderno, interligados diretamente aos ideais encarnados pelo Maio de 68).
O filme que encerra o que podemos chamar de primeira etapa da filmografia de Tanner é Messidor (1979). Às vésperas de adentrar a árida década de 1980, Tanner realiza uma obra que basicamente implode todo o sistema que desenvolvera até então. Se Jonas é o filme mais “falado” do diretor, Messidor é o filme mais silencioso: todo aquele impulso de organização dos discursos se dispersa nas errâncias aparentemente despropositadas das duas protagonistas pelo território suíço. Mais do que nunca, a Suíça enquanto um espaço impossível (desdobramento cruel e inevitável daquilo que fora antevisto pelo Ramuz filmado nos anos 1960), o “meio de um mundo” que é um nada, a travessia de um fogo que nunca se extingue e que exaure, já de antemão, quem se lança em sua cruzada.
[1] Numa entrevista a Antoine de Baecque, nos Cahiers du Cinéma nº 455-456 (1992), Alain Tanner faz uma dura crítica ao cinema francês “de apartamento”, calcado no restrito universo parisiense. A única exceção é feita justamente a Philippe Garrel, que mesmo naquele universo restrito, promove um corte vertical profundo dos dilemas existenciais desdobrados das crises pós-Maio de 68, expandindo as fronteiras de seu cinema à distâncias tão longínquas quanto a de um realizador que aparentemente se encontraria no polo oposto: o “viajante” Alain Tanner.
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