Em busca da liberdade
Em busca da liberdade
Por Sérgio Alpendre
Determinadas estreias revelam linhas de força que serão melhor ou pior trabalhadas ao longo de uma carreira. Assim é Charles Mort ou Vif (1969), primeiro longa de ficção realizado por Alain Tanner, após inúmeros documentários, curtas e telefilmes. Em um preto e branco atmosférico, temos muito do que veremos nos filmes futuros do diretor, principalmente até meados dos anos 1980. Um rico industrial abre mão de sua família e de sua fortuna para viver com um casal de pequenos latifundiários, numa fazenda simplória, mas com aquilo que ele mais buscava, sem sucesso, em sua vida pregressa: liberdade. É justamente essa busca pela liberdade que estará presente em todos os filmes do diretor até certo ponto (digamos, 1987), seja explicitamente, como o grupo sui generis de Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000 (1976), seja por um viés inesperado em uma personagem que não tem a menor ideia do que pode ser viver em liberdade, mas acaba encontrando-a na tentativa de acabar com sua dependência de sexo, em Uma Chama do Meu Coração (1987). É por liberdade que a doidinha de A Salamandra, personagem impactante de Bulle Ogier, tenta matar seu tio. É por liberdade que ela se envolve com dois aventureiros e é por liberdade que ela age totalmente fora dos conformes nesse filme que se autodefine como uma “crônica filmada em cores pretas e brancas”. Também é na busca por liberdade que Bruno Ganz, em Na Cidade Branca (1983), desce do navio e se perde em Lisboa, despreocupado com o que vai lhe acontecer ou se haverá um futuro para ele ali. Conforme ele gosta da cidade, sua liberdade fica ameaçada. Hora então de partir para outra busca. É também por liberdade que as duas jovens de Messidor resolvem errar pela Suiça vivendo de fugas e pequenos crimes.
São alguns exemplos, entre muitos, de personagens ansiosos por liberdade em seus filmes. Essa procura incessante por vezes extrapola o conceitual e aprisiona a forma (ao invés de libertá-la). Ao deixar os acontecimentos soltos, episódicos, Tanner por vezes perde o fio da meada e ameaça ficar desinteressante. É o risco que permeia Jonas Que Terá 25 no Ano 2000, por exemplo. Um risco que Tanner geralmente sabe controlar, mas que aqui, e em outros casos, está por um fio de estourar e jogar tudo por terra (lembro também de Le Retour d’Afrique e A Anos-Luz como filmes na corda bamba nesse sentido, embora tenham resistido ao perigo até o fim). Ou seja, tudo é tao solto que faz parecer uma prisão. Nada pode ser minimamente amarrado sob o risco de romper o arcabouço episódico com o qual a obra se ergue. Livrar-se desse risco não deixa de ser uma demonstração de habilidade, mas o risco, por sua vez, não deixa de existir.
Escrevi na Folha que seus melhores filmes são os que mostram atores e atrizes em estado de graça: Bulle Ogier em A Salamandra, Clémentine Amouroux e Catherine Rétoré em Messidor, Bruno Ganz em Na Cidade Branca, Laura Morante e Jean-Louis Trintignant em O Vale Fantasma (1987). A forma adotada por Tanner dá a brecha para atores brilharem e completarem os filmes à sua maneira (percebam aqui que isso faz parte do risco a que me referia no parágrafo anterior, pois um ator pode, com sua força, levar o filme para um lado não controlado pelo diretor). Claro que o trabalho de atuação normalmente reside nessa contribuição. Mas suspeito que no cinema de Tanner isso se dá de maneira diferente, o que faz com que a escalação do elenco seja essencial para o sucesso de seus filmes. Não se imagina Na Cidade Branca sem Bruno Ganz, como não se imagina atrizes famosas em Messidor, ou outra doidinha que não Bulle Ogier (mesmo pensando no registro que Miou Miou adota em Jonas...). Pode ser acrescentado a essa lista Francis Simon em Charles Mort ou Vif. Simon brilha também em dois filmes de Goretta, Le Fou (1970) e L’Invitation (1973). É um excelente ator, daqueles que engrandecem um filme, e é fundamental para que seu personagem Charles comande o rumo do navio Tanner em direção a outros personagens libertários. Consigo imaginar Le Fou com outro ator no lugar dele, e isso me parece impossível em Charles Mort ou Vif.
E o que ameaça mais a liberdade do que as fronteiras? Hoje a Europa ainda respira os bons ventos de uma união que diminuiu temporariamente esse mal. Mas vejam por exemplo No Man’s Land (1985). Nesse filme, o primeiro após Na Cidade Branca, um grupo ocupa uma antiga estação alfandegária e lá bota para funcionar tanto uma danceteria quanto um posto de troca para contrabandistas. Dentro do filme, um episódio que poderia servir como um curta independente mostra uma mulher que não tem como entrar na Suiça, nem voltar para a França, pois não tem os papeis adequados para um e para outro. Com a ajuda de um dos contrabandistas, ela resolve esperar no alto de uma colina para atravessar a pé no lusco-fusco, quando a visão é diminuida e a guarda é relaxada. Mas o que diferencia a paisagem francesa da suiça? Nada. Como dizia o oficial em A Grande Ilusão, de Renoir, a natureza nao tem fronteiras. Tanner comenta também a própria natureza de seu país. Nascido em Genebra, sabe que ser suiço, mesmo na chamada Suiça francesa, é ser um pouco de lugar nenhum, e de todos os lugares. Dividido em quatro idiomas, e sujeito às influências dos outros países que o rodeiam, é um país, segundo os filmes de Tanner mostram, em que as fronteiras parecem mais cerceadoras da liberdade, ao mesmo tempo em que incitam ao contrabando e à fuga. Nesse sentido, No Man’s Land é seu filme mais suiço, aquele que mais procura um entendimento do que é esse país. Ele sempre filmou na Suiça e em outros países, mas parece ter preferido Paris a partir da segunda metade dos anos 80. Tornou-se quase um apátrida, ao menos cinematográficamente.
1987 é um ano importante na carreira de Tanner. É desse ano Uma Chama no Meu Coração, em que a atriz Myriam Mézières, com quem Tanner já havia filmado algumas vezes, escreve e interpreta a história de uma mulher dependente de relações sexuais com outros homens. A personagem será retomada, implicitamente, em dois filmes posteriores, e inferiores: O Diário de Lady M (1993), que flagraria uma nova dependência de sexo da personagem, e Flores de Sangue (2002), que mostra sua terrível decadência física e mental. Ao contrário dos filmes anteriores de Tanner, essa personagem de Uma Chama no Meu Coração não busca a liberdade, mas o compromisso. Quer se sentir amarrada a alguém, dependente. Esse movimento de oposição é uma marca que será perseguida também no filme seguinte, O Vale Fantasma, em que o cineasta vivido por Jean-Louis Trintignant está atado a uma obsessão por uma atriz italiana, Laura Morante, que na verdade já nada mais quer com cinema. No processo, o jovem assistente desse cineasta, enviado na procura da atriz reclusa, se apaixona pela atriz, iniciando um possivel triângulo amororo que não se desenrolará por muito tempo. Afinal, o cineasta finalmente se descobre um solitário de vocação. Essa é sua liberdade. Mas também porque percebe que não faz sentido lutar pelo amor de uma mulher muito mais jovem que ele, com um outro homem também muito mais jovem. Ele não entende mais esse mundo de pulsões que o próprio Tanner registrou em Jonas Que Terá 25 Anos no Ano 2000. Na recusa da luta, encontra a paz.
A partir desses dois filmes libertadores, a carreira de Tanner se torna mais palatável, e um tanto mais previsível também. A forma de seus filmes a partir daí se assemelham mais à fórmula do cinema autoral forjada já nos anos 1960 e que chega fortificada comercialmente nos anos 80. Por esse caminho podem surgir obras irregulares como La Femme de Rose Hill (1989), com suas oposições simplórias entre homem bruto/mãe grosseira vs homem doce/mãe adorável e depois entre senhora e imigrantes indefesas vs poderosos inescrupulosos; como também obras de intensa poesia como Réquiem (1998), baseado em livro de Antonio Tabucchi em que um homem encontra diversos fantasmas, entre eles o de Fernando Pessoa. Mesmo assim, a beleza desse filme lisboeta não disfarça que Tanner está repisando obras melhores. Réquiem volta a Na Cidade Branca de um jeito mais lúgubre, apesar do calor que abate a verdadeira cidade luz. Do mesmo modo, Jonas et Lila, à Demain (1999) é um retorno a Jonas Que Fará 25 Anos no Ano 2000, mas um retorno que não consegue encontrar a liberdade estrutural que no filme anterior já estava por um fio (lembremos dos riscos). E Fleurs de Sang (2002), como já dito, retoma, atabalhoadamente, a personagem de Uma Chama no Meu Coração, com a mesma Myriam Meziéres agora entendendo-se com sua filha adolescente e a decadência, naquele que é provavelmente o filme mais frágil do diretor.
Voltando à busca pela liberdade, sinto que Jonas et Lila retoma também isso, ao defrontar personagens e situações com os correlatos do filme de 1976: a volta de Paul como o personagem aventureiro, a funcionária honesta que procura orientar os clientes (lembram de Miou-Miou passando mercadorias por fora do caixa?), estrutura solta ao sabor dos humores das personagens. E chegamos a Paul S’en Va (2004), a despedida de Paul, personagem sempre presente nos filmes de Tanner, ausente aqui porque todos os personagens têm nomes começados com a letra M. E por isso faz sentido que seu último filme seja também o mais livre. Sente-se que o fôlego já não é o mesmo, que esgotou-se totalmente com Réquiem, definitivamente seu último suspiro. Mas com a liberdade encontrada, enfim, Tanner pode deixar o cinema para os jovens, seres que sempre habitaram seus filmes.
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