Paterson
Paterson (2017), de Jim Jarmusch
Halloween, como se sabe, é um dos grandes filmes americanos sobre quarteirões. Se traçássemos um mapa usando como linhas os trilhos empregados por Carpenter no filme de 1978, poderíamos observar a precisão realmente cartográfica dos movimentos de câmera. Com os travellings laterais que seguem os personagens e dobram as esquinas, Carpenter, delimita as fronteiras do subúrbio que serão psicoticamente invadidas pelo mal. Seja então pelo travelling cartográfico ou pela própria janela 2:35, também ela cartográfica, Carpenter trabalha e retrabalha a ideia de fronteira (e a fronteira só existe para potencializar o horizonte), em diferentes contextos. Jarmusch, cineasta bem mais urbano do que o bigodudo dos sintetizadores, também se expressa no travelling-linha-traçada-no-papel, embora dê ao movimento lateral outra vibração: um tanto errático e bastante pulsante, o inesquecível plano de Estranhos no Paraíso em que a câmera viaja longamente pela rua estabelece o espaço em que viverão seus personagens (ou, a maioria deles) dali em diante: um existencialismo de calçada, experimentado por pessoas que sabem uma ou outra coisa da vida (ou estão prestes a saber), como tão bem traduz a expressão “been around the block”. A sabedoria das ruas é isso mesmo: conhecer o mundo a partir da vila e da presença.
Paterson poderia muito bem ser o concorrente motorizado ao título de grande filme sobre quarteirões. Tudo aqui é extensão: o ônibus comprido, mostrado de perfil no plano, dirigido pelo protagonista é como a materialização, a representação concreta da ideia de travelling lateral, que nós vemos, em diversos momentos no filme, dobrar a esquina com a paciência oriental tão propagada na filmografia de Jarmusch; a carona esticada de Adam Driver (e não escapa a ninguém que o sobrenome do ator seja uma extensão de sua profissão diegética) mostrado em pino, de tempos em tempos, deitado na cama; Paterson, a cidade, Paterson o motorista, com sua rotina bem traçada de acordar, escrever linhas no caderno de anotações, percorrer a linha (a do ônibus), sentar no banco no parque e observar a ponte (com suas simples e bonitas linhas) voltar para casa, ir para o bar, dormir, acordar. Tudo de novo. E sempre novo.
Como a poesia de Ron Padgett e William Carlos Williams, a beleza de Paterson está na apreensão do mundano, do ínfimo detalhe desprovido de qualquer qualidade pitoresca herdada da pintura (folhas ao vento, um riacho ao pôr do sol), promovendo, e agora parafraseio Van Morrison, a satisfação de não se precisar ler as entrelinhas. Bastante incomum que o cinema se coloque como extensão tão natural da poética de dois autores (Padgett é extensão de WCW, inclusive), de modo a parecer não se tratar de adaptação ou tradução o que vemos em Paterson. O que acontece, então?
Um ônibus virando a esquina, na tela, é tão belo quanto o restinho de café no fundo da xícara (Coffee Corner, de Padgett), na linha. Colocar o mundo diante da câmera ou da ponta do lápis e cerca-lo de limites, até sobrar apenas o familiar, trocando a jornada pelo passeio na calçada com o cachorro. A segunda-feira é um bom dia. A terça também. E a quarta. A quinta. Oi, bom dia. É interessante estar vivo.
Wellington Sari
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