Na Praia à Noite Sozinha
Na Praia à Noite Sozinha (Bamui haebyun-eoseo honja, 2017), de Hong Sang-Soo
Em um diálogo na sequência que configura o clímax de Na praia à noite sozinha, a protagonista Young-Hee (Kim Min-Hee) afirma que “fazer um filme sobre histórias pessoais é entediante, é cansativo falar de si mesmo”. Já Hong Sang-Soo, ao realizar o presente filme, parece discordar do texto que colocou na boca de sua protagonista e prova o contrário. Estamos justamente diante de um filme que concretiza a catarse ou o desabafo com relação à repercussão negativa que o romance entre o cineasta (casado) e sua atriz alcançou na imprensa sensacionalista sul-coreana.
A verdade é que, além de uma exposição de fatos pessoais, Na praia à noite sozinha aparece como um oportuno sopro de renovação na obra de um diretor com estilo e assinatura autoral dos mais marcantes no cinema contemporâneo. Após atingir o máximo de perfeição em sua fórmula com Certo agora, errado antes, uma busca por novos caminhos se fazia premente. E surge sem que o autor abandone de fato o brilho de seu estilo.
Estão aqui presentes as duas partes distintas, só que agora, ao invés de oferecer uma releitura ou visão complementar dos fatos narrados, temos sim a sequência da trajetória da personagem em lugares e tempos diversos. E, pela primeira vez com uma protagonista feminina, temos a perfeição da atuação de Kim Min-Hee, atriz cuja sutileza no domínio de pequenos gestos, atitudes e olhares, casa – sem trocadilhos – de forma irreversível, com o estilo desenvolvido por Hong Sang-Soo ao longo de seus 18 longas-metragens anteriores, como também dos dois que foram lançados desde então.
A primeira parte, ambientada na Alemanha, é a que marca uma distinção maior quanto ao Hong Sang-Soo ao qual estamos acostumados. Temos uma utilização maior de planos abertos ou gerais, principalmente nas sequências ambientadas em parques. Os diálogos loquazes, outra de suas marcas registradas, tornam-se lacônicos e impregnados em uma melancolia rara, onde se faz ausente o peculiar senso de humor ao qual Hong nos acostumou, transmitindo os sentimentos de Young-Hee, que passa os dias banhada na tristeza da apreensão com relação ao que viverá dali para frente. Curioso é a forma como o autor explicita seu desconforto quanto ao ato de filmar em outra língua e longe de sua terra natal, usando a voz da amiga de Young-Hee que a acompanha durante todo esse primeiro ato, quando durante um jantar ela afirma não se sentir à vontade para se expressar em inglês. Isso se torna ainda mais flagrante quando trazemos à memória a lembrança que Noite e dia (2008), todo rodado em Paris, é o menos coeso e o mais problemático entre todos os filmes de Hong.
O retorno, na segunda parte, à Coréia, traz de volta muito do estilo essencial do autor, sem abandonar, no entanto, o clima de tristeza. Esse se agrava ainda mais e temos aqui Young-Hee encarnando uma tristeza que vem do desencanto e da frustração. Há que recomeçar, mesmo sem saber como. A forma como essa parte é introduzida se faz de forma não menos que brilhante. O rosto de Kim Min-Hee, a principio esboçado na escuridão, se torna claro ao acender das luzes de uma sessão de cinema, onde ela aparece chorosa e sozinha, numa reconexão imediata com algumas cenas finais de Certo agora, errado antes. É também uma reconexão maior ao Hong Sang-Soo, digamos, tradicional. Voltam os bares e cafés, voltam os longos diálogos, voltam as bebedeiras de soju, mas não some a melancolia. Curiosamente, apesar das falas dos personagens nessa segunda parte caracterizarem de forma mais explícita as razões do sofrimento de Young-Hee, e consequentemente a catarse proposta pelo autor, é nos momentos sem diálogo que o filme se faz mais expressivo, como quando a protagonista fuma e cantarola sozinha à porta do café.
Primeira e segunda parte do filme são fechadas pelo diretor com os sutis reenquadramentos em um mesmo cenário – no caso as praias – que tanto contribuíram para a consagração do seu estilo. O domínio narrativo fica evidente, mesmo em um filme que foi visivelmente construído de forma mais livre e ao sabor das emoções, em contraste ao planejamento milimétrico do restante da filmografia. Com isso se torna claro que Hong Sang-Soo já há muito assumiu completa maestria no ato de fazer cinema e pode dar-se ao luxo de experimentar sem prejuízo à essência de sua arte, o que faz de Na praia à noite sozinha uma experiência ímpar onde um delicado momento na vida pessoal é aproveitado com raro oportunismo para que se possa repensar essa arte.
Gilberto Silva Jr.
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