Ano VII

Alain Tanner em três momentos: lirismo e intensidade

sábado fev 17, 2018

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Alain Tanner em três momentos: lirismo e intensidade

Por Rafael Dornellas

Em Jonas que terá vinte e cinco anos no ano 2000, filme de 1976, Alain Tanner utiliza imagens documentais de arquivo interrompendo abruptamente a narrativa enquanto seus personagens – trabalhadores, professores, intelectuais, e jovens desiludidos – discorrem sobre seu papel no mundo, sobre a sociedade em que vivem e também sobre aspectos fugidios de seus cotidianos, prevalecendo uma urgência decalcada da distensão formal, do choque, de um cinema que se constrói sob a ótica da modernidade.

Seus filmes de maturidade ao longo das décadas como Dans la ville blanche (1983) e os mais recentes Requiem (1998) e Fleurs de sang (2002), apesar de não optarem por vias diametralmente opostas daqueles apontados no início de carreira, apresentam em sua construção uma unidade estética, uma via retilínea de mão única pela qual Tanner transita através de suas personagens e seus enredos sem grandes chances de muitos meandros, desvios ou redenção. O interesse em depositarmos um olhar atento sobre esses três momentos de sua carreira, além da clara ponte entre os filmes de 1983 e 1998, reside também em apontar uma progressão formal que Tanner desenvolveu ao longo dos anos e que de certa forma subverteu no filme de 2002.

Além da ambientação em Portugal, em Dans la ville blanche e Requiem, parece haver uma busca por um lirismo que, ao esgueirar-se por entre as personagens e as locações presentes nos filmes, transborda os limites do quadro. Tanner trabalha, aqui, sob um rigor cênico, um cuidadoso movimento constantemente realizado por sua câmera em inúmeros travellings que privilegiam a unidade do plano em relação ao corte mas que também personificam um estado de graça e cautela, em que os diálogos e ações das personagens são circundados, observados cuidadosamente, estudados por todos os ângulos possíveis pela câmera, e ditam a encenação sobretudo – o movimento incessante da mise en scène de Tanner é regido pelas intensidades dramáticas da cena: uma mudança de tom, uma sutil movimentação dos corpos, uma fala, um aumento na intensidade interna das personagens, uma reorganização das ações que subsequentemente irá desembocar na reorganização do quadro, na aproximação ou afastamento da câmera.

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Os fantasmas de Requiem são materialmente palpáveis, filmados da mesma maneira com que se filma as pessoas do plano terreno. Tanner não está interessado na metafísica dos reencontros de Paul – o protagonista francês que vai à Portugal para encontrar-se com o falecido poeta Fernando Pessoa e acaba realizando uma espécie de acerto de contas com pessoas próximas a ele que já partiram (seu pai, sua amante, seu amigo) – muito menos em uma abordagem etérea e abstrata da diluição das fronteiras entre mortos e vivos.

Um lirismo lusitano emerge principalmente da feliz insistência de seu diretor em buscar entender aquele universo a partir daquilo que de mais concreto dele representa e também de como os entornos de um estrangeiro que busca algumas respostas em um país que não o seu de origem se faz presente. Cada plano parece um novo enigma, uma revelação a uma figura despida de barreiras e imagens pré concebidas. O estado mais bruto da matéria filmada pode trazer em si todos os significados que qualquer jornada espiritual pudesse expor. Logo, a intensidade de uma caminhada à beira do rio, uma corrida de táxi ou um breve diálogo com um grupo de ciganas mostram-se tão intensos quanto os encontros com entes queridos que se foram.

Seu procedimento formal traduz-se com a mesma impassibilidade durante todo o filme. Paul diz a um taxista, ainda no início do filme, que precisa trocar de roupa. O taxista responde que naquele dia somente as ciganas na porta do cemitério poderão vender camisetas novas à ele. Em determinado momento, antes de que o assunto gire em torno das ciganas à porta do cemitério, Tanner interrompe a cena dentro do táxi e com um movimento lento de aproximação sua câmera enquadra três ciganas sentadas, apresentando-as antes que o protagonista chegue no local e dialogue com elas. Uma vez no local, um novo movimento de câmera, agora em confluência com o encontro entre Paul e elas aproxima-se de seus rostos.

A repetição, a aproximação e o afastamento marcam os diálogos e andanças do protagonista. Desde o garoto morador de rua e viciado em drogas que surge logo no início do filme (e antes que aborde Paul, Tanner se detém instantes sobre seu rosto), até mesmo o travelling que o cineasta realiza repetidamente quando Paul finalmente se encontra com Pessoa e ambos conversam em um restaurante.

Em um dos momentos mais bonitos do filme, o “fantasma” de seu pai, ainda jovem, aparece para ele no quarto da pensão em que está hospedado. Ele pergunta a Paul como vai morrer. Apesar do caráter fúnebre do diálogo e do tom melancólico do protagonista, há um sentimento reconfortante entre a atitude de Paul perante as coisas em seu entorno e a abordagem entre o mesmo e seus fantasmas do passado. Ao final de sua jornada, e após um longo dialogo com Pessoa caminhando à noite pelas ruas de Lisboa, ele é, então, filmado sozinho, liberto, sorrindo.

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Bruno Ganz, cujo personagem protagonista de Dans la ville blanche também chama-se Paul, e, assim como em Requiem, também é um estrangeiro em terras lusitanas, interpreta um mecânico que trabalha nos motores de um navio e, ao aportar em Lisboa, decide ficar, alugando um quarto em uma pensão barata. Lá ele se apaixona por Rosa, empregada da pensão, e passa seus dias escrevendo cartas para uma outra mulher na Suíça assim como enviando à ela pequenos filmes que capta em sua handycam.

Muitos dos procedimentos utilizados por Tanner em Requiem estão presentes no filme de 1983. Porém, aos movimentos constantes que espreitam a cena e reorganizam a mesma conforme suas variações internas, são somados uma intensidade dramática que tornam os constantes travellings duros movimentos intensificadores do caráter trágico do protagonista, de seus olhares vazios, de suas cartas lidas em voz alta, da percepção de um não pertencimento ao mundo realizada meio a sua trajetória em Portugal – “amo meu país, o mar é meu país” afirma em uma das suas últimas cartas lidas no filme. Aqui, o lirismo lusitano, além de apontar para procedimentos que seriam alcançados em sua totalidade em Requiem, é traduzido principalmente pelas inserções das imagens captadas pelo protagonista em sua câmera portátil.

Se a mise en scène de Tanner se intensifica ao filmar um Bruno Ganz opaco e introspectivo, as imagens captadas pela câmera amadora de seu personagem irrompem durante todo o filme e carregam consigo um sentimento revelatório de alguém que ainda inconscientemente permite-se invadir pela sensação do novo, pelo desvendar de um universo então escondido sob as lentes de sua câmera. A imagem final do filme pode ser tomada como síntese máxima da mise en scène de Tanner: um deslumbramento perante a imagem do mundo que se faz exprimir de uma parede deteriorada de um prédio antigo de Lisboa até um olhar do rosto de uma mulher que encara a câmera de Paul – agora aderida à narrativa de do filme – e sorri envergonhada antes de se afundar nas sombras e subirem os créditos finais.

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Notável, já nos últimos anos de sua filmografia, que Alain Tanner, em uma nova parceria com Myriam Mézières, realiza um filme em que suas escolhas estéticas de certa forma se distanciam de Dans la ville blanche e Requiem. Apesar de em Fleurs de sang, filme de 2002, ainda estar contido um direcionamento uniforme da narrativa, atendo-se a poucos personagens e observando-os ao longo de um determinado período de sua vida, ao invés da encenação que busque uma serenidade de olhar, uma possível cautela de observar o ambiente, modificar-se e movimentar-se com a mesma leveza que os movimentos dos atores e do drama narrado se modifica, a vida da dançarina Lily e sua filha é filmada com uma câmera inquieta.

A instabilidade emocional das personagens do filme se materializa em sua forma e em uma câmera que sai do tripé e busca livremente transitar pelo entorno daquela presença centralizadora e hipnotizante da personagem de Mézières em uma atuação digna de nota – apesar das duas atrizes que interpretam sua filha Pam em diferentes idades estarem em perfeita harmonia com o todo no filme e a interpretarem de maneira visceral, o filme é a protagonista Lily. A espiral descendente na qual encontram-se mãe e filha é acompanhada de perto por nós e Tanner não dá outra opção que não a de um mergulho inadvertidamente irreversível no universo da dançarina que, pouco a pouco, com a mesma intensidade com que ela age perante sua vida, vai se despedaçando em nossa frente.

O plano final do filme não poderia resumir melhor todo o percurso representado por quase duas horas que passam Pam e Lily. A jovem garota, após fugir no meio da noite do internato no qual se encontra e encontrar sua mãe dormindo em uma espécie de local imundo para moradores de rua com o rosto coberto de feridas como se tivesse sido espancada horas antes, corre para a casa de seu namorado e o surpreende na cama com outra mulher. Após uma longa sequência em que ambos discutem, Pam, com o dia já amanhecendo, enfia uma faca no peito do rapaz em um gesto desesperado e inconsequente. Depois de ligar para o socorro e descobrir que o jovem acabou perdendo a vida ela encontra sua mãe na delegacia.

Ao contrário do início do filme em que vemos a garota aos prantos ao receber a notícia da morte do rapaz em uma rápida cena que nos apresenta a situação mas não explica muito – o filme então retorna 5 anos no tempo e só no final Tanner filma passo a passo o assassinato – o último plano nos mostra o encontro entre mãe e filha já no fundo do poço. Pam chega ao local e Lily se levanta, ainda ferida no rosto e com lágrimas nos olhos. Ambas se olham e em um plano fechado no rosto da filha a vemos sorrir. É com esse plano simples porém aterrador que Tanner finaliza seu penúltimo filme sintetizando toda a curva vertiginosa da projeção e nos lançando sem amparo à escuridão na qual se encontram a dupla protagonista, em um movimento desafiador e, no mínimo, significativo, realizado por um diretor veterano e abrindo um flanco, se não totalmente novo, em sua carreira, que demonstra coragem e uma necessidade constante de desafiar os próprios procedimentos.

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