Ano VII

Um Limite Entre Nós

sábado fev 17, 2018

fences

Um Limite Entre Nós (Fences, 2016), de Denzel Washington

A despeito do que pode se dizer acerca de Um Limite Entre Nós (Fences), da adaptação da peça homônima, escrita em 1983 por August Wilson, partamos do princípio que estamos diante de um filme de cinema. Por mais arbitrário que possa parecer tal termo, a importância do mesmo mostra-se essencial ao nos depararmos com o filme e constatarmos a inteligência de Denzel Washington enquanto adapta a peça original.

Se as marcas centrais da peça de Wilson encontram-se no filme de Washington – o palco da ação, o quintal da casa de Troy (interpretado pelo próprio Washington) e Rose (Viola Davies), o texto –, este expande o território desbravado para além do fundo da casa. Apesar de poucos, há importantes e belos momentos construídos em ambientes externos, nas ruas, na porta da fábrica, no balcão do bar. Mais importante que os espaços físicos, porém, é o meio com que cineasta se relaciona com a matéria da qual ele procura extrair seu filme.

Desde a primeira cena dentro da casa de Troy e Rose, é demonstrada uma preocupação e um cuidado aos silêncios, às reações das personagens, aos momentos em que meio à verborragia do protagonista sua esposa procura assimilar o que está sendo dito. Lyons, filho mais velho de Troy com outra mulher, logo no início do filme vem à casa do pai e pede uma pequena quantia de dinheiro emprestado. Desse primeiro embate pai/filho nos é apresentada a lógica moral rígida sob a qual vive a personagem de Washington, assim como a dinâmica daquela casa – a montagem em que planos próximos nos aproximam ao rosto de Rose observando a situação nos revela ainda mais acerca daquela família para além do texto falado.

Conforme o mundo pessoal de Troy vai ruindo a sua volta e suas relações – com sua esposa, seu filho mais novo Cory, seu irmão Gabe (que vive com sequelas profundas da guerra) seu amigo Bono e seu filho mais velho – vão sendo colocadas à prova de seu temperamento e de sua brutalidade, a mise en scène de Washington trata por adentrar naquele universo expondo seu núcleo dramático através de intensificar suas rupturas emocionais explorando as beiradas da cena, os detalhes, os pequenos espaços vazios abertos entre um cômodo e outro, o fundo da casa e a cozinha, a rua e a varanda – as palavras e diálogos que são ouvidos por nós de um outro ambiente, junto daquele que reage calado.

O trabalho de adaptar uma peça de teatro para o cinema, dentre os muitos problemas nos quais a adaptação resultaria se realizada por olhos pouco atentos, poderia acabar em uma transposição protocolar da mesma; poderia também se direcionar para um caminho oposto e descambar à diluição completa da peça em uma forma cuja a atenção chamada ao aparato cinematográfico suprimiria qualquer substancia do texto escrito. André Bazin em seu famoso texto Por um cinema impuro – defesa da adaptação alinhava que sua defesa da adaptação deveria seguir caminho oposto daqueles trabalhos cujo resultado nada mais era do que “sinopses bem desenvolvidas”. O crítico continuava e colocava Robert Bresson e sua adaptação de Georges Bernanos em Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un curé de campagne, 1951) em oposição a Sam Wood adaptando em 1946 o grande romance de Ernest Hemingway Por quem os sinos dobram (For Whom the Bell Tolls). Se Bresson fazia de sua transposição literal da palavra à tela um filme que nada devia ao material original, Wood dirigia um filme que devia tudo ao livro, que não conseguia sobreviver sem o endosso do escritor norte-americano – para Bazin a literatura nada perdia com tal exercício realizado por Sam Wood e muitos outros, quem perdia era o cinema. Ele ia além e diria que as adaptações, ou serviriam como um repositório de ideias e inspirações dos romances e peças originais que dariam aval ao filme ou utilizariam a total transposição do texto à tela, respeitando o espírito das obras originais e tentando elevar o cinema ao nível da obra adaptada.

A adaptação de Wilson em Um limite entre nós busca o texto original, mas dele vai ainda além em sua forma. A inteligência de Washington enquanto diretor consiste em nem fixar-se cegamente à matéria dramatúrgica da qual dispõe, nem buscar escorar-se em um exercício histriônico de sofisticação técnica esquecendo-se do próprio drama a ser retratado e construído – busca-se a contenção e o olhar atento à sua volta. Um caminho mais calcado naquilo que de melhor pode se extrair do coração da peça. Do trabalho com o texto procura-se a modulação exata na direção de atores, a entonação que pode ir do sussurro ao grito. Da encenação procura-se fixar no que importa – dando vazão àquilo que de mais central a mesma possui: suas personagens e a relação entre as elas. Permite-se o desvio da atenção do palco central da ação para que, somando à espinha dorsal na qual constitui seu drama, possamos enxergar todos os meandros nos quais aquela família está disposta.

A importância na apresentação da espacialidade das locações principais e sua exploração pela câmera permite que se construa e se intensifique o drama atendo-se às reações das personagens que ouvem tudo em outros cômodos da casa. Ainda mais duro que ouvir Troy conversando com a morte e desafiando-a sozinho em seu quarto após saber do nascimento da filha e do falecimento no parto de sua amante, é observar Rose e Cory abraçados no corredor da casa enquanto ouvem o protagonista alucinado ao lado. Tal procedimento será repetido por Washington durante todo o filme. Em um deles, já perto do fim, Troy chega em casa carregando a filha recém nascida, fruto de um adultério, e pede à Rose que os aceite. Rose os ignora e continua lavando a louça na cozinha. Troy então senta-se na escada do quintal e começa a conversar com o bebê. Durante sua fala, um corte nos leva à cozinha e permanecemos com Rose enquanto ouvimos seu marido.

Naquele que talvez seja o momento mais importante do filme o protagonista revela à esposa seu adultério e a gravidez de sua amante. Ambos estão na cozinha e no meio da discussão acalorada Gabe entra pela porta de trás e inocentemente entrega uma rosa para a mulher. Ela sai do local e, chorando, vai para o fundo da casa e se apoia em uma cerca. Troy também deixa o local. Neste momento uma sequência de montagem nos revela o rosto de Gabe sozinho na sala, um plano próximo da rosa nas mãos de Rose que acompanha a flor ao cair no gramado, seguido de um diálogo no qual a mulher coloca para fora tudo o que estava segurando durante os anos de casada, no qual planos e contraplanos são filmados tendo a cerca que delimita o espaço externo como espécie de moldura no enquadramento.

Desse momento em diante a força de Rose, que já era intensa, toma de assalto a narrativa com uma energia apenas equiparada ao trem descarrilhado que é Troy, culminando com o monólogo final em um momento de embate mãe e filho, no dia do enterro do protagonista. Daí até o final: o retorno de Gabe, o toque da corneta e a dispersão das nuvens – um pequeno milagre encerrando um filme que não tem medo de mergulhar no melodrama, o fazendo com a segurança e sensibilidade de alguém cujo julgamento perante as personagens é o mesmo que o desejo de explorar a dramaturgia da peça olhando-a de frente, da maneira mais digna possível.

Washington se limita a filmar com o interesse de quem faz cinema sobre seres humanos e dessa execução retira do texto sua tradução cinematográfica: a preocupação com o corte, a relação entre os planos, as zonas de sombras que permeiam as personagens, a entonação nas falas dos atores – o resultado assombroso que se provoca ao filmar, entre discussões e desabafos desesperados, um rosto que ouve e reage a tudo.

Rafael Dornellas

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