O Filho de Joseph
O Filho de Joseph (Le fils de Joseph, 2016), de Eugène Green
Vincent, um jovem garoto de Paris vive sozinho com Marie, sua mãe e enfermeira de profissão. O rapaz é circunspecto, ríspido. No primeiro diálogo entre ambos sua mãe pergunta como foi o dia e completa que o seu foi cansativo, ao que o garoto responde de forma seca: “você escolheu sua profissão”. Marie, com uma expressão plácida no rosto, responde dizendo que gosta de ajudar as pessoas e que o garoto também irá ajudar as pessoas à sua maneira. Vincent diz: “eu não quero ajudar as pessoas. Eu não amo ninguém e ninguém me ama”. No fim do diálogo ele pergunta quem é seu pai. Marie responde que ele não tem pai. Esse será o tom de praticamente toda a primeira metade do filme – o garoto, com os meios que possui ao seu alcance, procura saber quem é seu pai, enquanto Marie tenta manter a calma na casa e agradar o filho. Delimitar bem as personagens e seus papéis neste último filme de Eugène Green é necessário se desejarmos nos atentar para a brusca mudança que se dá, principalmente na figura de Vincent, da metade do filme em diante, a partir do momento em que ele e Joseph se encontram.
Após descobrir o paradeiro do pai (Oscar, um importante editor do mercado literário), perceber que o homem é um ser humano repugnante (que trai a esposa com a secretária e nem sequer sabe quem são seus filhos ou se importa com eles), se infiltrar escondido em seu escritório com o objetivo de mata-lo e desistir do ato repentinamente, Vincent esbarra em Joseph ao fugir do local. Joseph é irmão de Oscar, mas conhecendo a personalidade do irmão também não consegue se relacionar bem com ele. Desse encontro repentino entre Joseph e Vincent inicia-se uma longa sequência no filme em que homem e garoto caminham por parques, conversam, contam piadas um para o outro e se conhecem melhor. Algo muda no garoto. Assim como o ato de matar o pai é interrompido bruscamente por uma visão do jovem (uma luz que invade o quarto e ilumina a parede), a personalidade de Vincent e a maneira com que o mesmo lida com o mundo a sua volta é invertida. O jovem, que até então era assombrado e obtuso, passa a ser mais aberto, alegre, como se um milagre, uma iluminação, atingisse-o desse encontro.
Já no final da sequência citada, Vincent e Joseph entram em uma igreja. Em uma espécie de altar eles se deparam com um homem tocando um instrumento acompanhando duas mulheres – uma delas declama e outra canta. O ambiente é pouco iluminado, algumas velas dão o tom das sombras nas paredes. Green posiciona sua câmera fixa apontando ao palco, filmando a apresentação musical, e corta para então se deter no rosto de Vincent, em sua reação. O rosto do jovem é iluminado, e sua expressão é de descoberta, como se finalmente saísse das zonas escuras nas quais se encontrava. A apresentação termina e o jovem aplaude entusiasmadamente. Um corte seco nos tira daquele ambiente pouco iluminado e intimista e nos leva abruptamente para um plano da cidade durante o dia, do ponto de vista da janela do apartamento de Vincent e Marie. O garoto está parado em frente à janela olhando para a cidade. “Fará uma noite agradável”, diz sua mãe. “A luz que brilha lá fora ainda está muito bonita”, completa o filho. Está realizado, por fim, a iluminação espiritual e transformação no diapasão sentimental do protagonista. Com um simples corte e algumas falas Green delineia a curva que se dará na trajetória, não somente do jovem Vincent como também de sua mãe Marie e de Joseph.
Green trabalha sob um sistema formal muito rigoroso e particular, um léxico burilado e progressivamente explorado desde de seu primeiro, e já grande, longa metragem Todas as noites (Toutes les nuits, 2001). Apesar de a cada filme o diretor parecer se deter sobre um assunto especifico – a música em A ponte das artes (Le pont des Arts, 2004) e a arquitetura em La sapienza (idem, 2014), por exemplo – a religião e espiritualidade parecem uma constante – principalmente em O Mundo Vivente (Le monde vivant, 2003), A religiosa portuguesa (idem, 2009) e em O filho de Joseph. Como colocado em prática nos seus filmes pregressos – e longe de realizarmos a tarefa simplista de elencar pontos de interseção e temas na filmografia do diretor –, em O filho de Joseph Green parece continuar no desejo de limpar todas as possíveis arestas da construção dramática, da encenação e daquilo que se deseja tratar tematicamente. O que precisa acontecer simplesmente ocorre frente à câmera, ou é falado abertamente, sem grandes justificativas ou meandros técnico-narrativos. O milagre aqui, ou iluminação espiritual, se dá a partir de um encontro, uma música ouvida em um igreja e um corte para um rosto que observa o mundo de um outro lugar que não mais aquele no qual se encontrava no início de sua trajetória.
E é justamente dessa suposta simplicidade com que Green encena que a complexidade de sua operação se manifesta. Um rosto é filmado por Green de frente, nos encarando conforme ouve ou fala. A iluminação cênica, salvo algum momento especifico, é tal que enxerguemos a totalidade de sua expressão. A fala é direta, expõe tudo o que se deseja expor. Marie, desde o seu primeiro momento no filme, é filmada com uma pureza, com expressão quase sempre cândida, se dirigindo sempre com um amor profundamente maternal para com o filho. Joseph caminha no mesmo sentido. Em seu primeiro diálogo com o irmão Oscar, a posição de câmera filmando seus rostos não poderia ser mais apropriada para nos revelar o grau de extrema oposição que ambos se encontram. Enquanto Oscar é vil, Joseph é honesto, transparente. Uma expressão de um rosto, em Green, contém em si toda uma curva dramática, densa e reveladora. Se no rosto de Vincent há uma amargura de início, esta é transformada em placidez e deslumbramento, para então se completar na segurança da união entre Marie e Joseph, formando finalmente a família pela qual buscava.
Então chegamos ao óbvio diálogo com a Bíblia – seja do título do filme, do nome das personagens (Marie e Joseph), do nome dos capítulos que dividem o filme, dos quadros que Vincent e Joseph visitam em sua passagem pelo Louvre, do quadro pendurado na parede do quarto do rapaz, na alegoria do ato final do filme. O que deve ser extraído desse paralelo? Ou melhor, qual abordagem buscar a partir da óbvia simbologia e relação entre filme e história da religião, cristianismo?
Primeiramente podemos recusar uma análise calcada na descoberta de significados, no desvendar o que no filme parece criptografado, na abordagem crítica vazia em demonstrar virtuosismo, cultura e sagacidade ao “solucionar” o subtexto ou escancarar mensagens subliminares – deixemos tal tarefa para aqueles que se divertem no exercício regressivo em demonstrar para seus leitores todas as mensagens presentes e escondidas em um Magnólia (idem, 1999, de Paul Thomas Anderson), em quantas vezes Brad Pitt surge piscando na tela em Clube da luta (Fight club, 1999, de David Fincher), ou em algum outro produto publicitário por exemplo. A abordagem de Green é como um antídoto contra tal exercício espúrio – ele escancara sua simbologia e isso basta; tudo o que precisa-se saber a respeito do paralelo filme/bíblia está sobre a mesa ao alcance dos olhos e o diretor não sente a necessidade de mostrar-se um erudito ou um sábio – o que jamais vem de sua codificação de temas mas sim da elegância com que filma seus atores e do rigor com que encena.
Em segundo lugar, um caminho possível em enfrentar O filho de Joseph seria realizar um exercício comparativo colocando-o em um lado oposto de um filme como Mãe! (Mother!, 2017, de Darren Aronofsky), por exemplo. Chega a impressionar em como Aronofsky consegue enganar a muitos com sua constelação de signos, os quais se apega cegamente e constrói seu castelo de areia que nada mais é do que um exercício completamente esvaziado de alegoria bíblica cujos paralelos, quando não gritam seus significados, enterram-se no choque pelo choque. Felizmente Green não precisa disso e está muito bem em seu caminho, se distanciando cada vez mais de um tipo de cinema que, não percebendo sua farsa estrutural, ainda procura enganar o espectador através da suposta inteligência e virtuosismo do realizador.
Em um diálogo, já na segunda metade do filme, Marie e Joseph após uma sessão de cinema conversam sobre O deserto vermelho (Il deserto rosso, 1964, de Michelangelo Antonioni). Ela diz: “filmes daquela época sempre nos dão esperança. Mesmo quando o tema é grave. Eu preciso de esperança para ordenar a vida. Hoje em dia as pessoas parecem se revoltar em desespero.” Joseph completa: “ou em cinismo. Elas nem sequer percebem o seu desespero.” Perfeita e elegante tradução de um sentimento latente naqueles que ainda creem na arte através de um ponto de vista honesto. À sua maneira Green deixa seu recado – traduzido em O filho de Joseph lindamente.
Rafael Dornellas
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